A Amazônia em “Os Sertões”

A Amazônia em Os Sertões

José Veríssimo, crítico literário amazonense, pouco após a publicação de Os Sertões, emitiu sobre o livro o seguinte juízo:

O livro, por tantos títulos notáveis, do sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contato do homem, e estremece todo, tocado até ao fundo d'alma, comovido até as lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as “secas” que assolam os sertões do norte brasileiro, venha da estupidez ou maldade dos homens, como a campanha de Canudos.

Almejando um “consórcio entre a ciência e a arte”, Euclides da Cunha compôs uma “obra híbrida”, como afirmou Roberto Ventura, marcada, ao mesmo tempo, por uma preocupação científica e por um enfoque literário. Para fornecer ao público o seu relato da guerra de Canudos, Euclides se utilizou do aparato das ciências naturais para compreender o meio no qual ocorreu o conflito e que impunha sérias privações ao homem. Fez uso também do ideário cientificista para analisar o sertanejo e construir uma interpretação determinista, definindo a mestiçagem como um problema a ser superado. À literatura coube o papel de transmitir a dramaticidade do cotidiano sertanejo e da guerra e de denunciar o abandono secular do interior do país.

A partir da concepção naturalista de Hippolyte Taine, Euclides da Cunha dividiu seu livro em três partes – “A Terra, O Homem e A Luta” –, para explicar o conflito em Canudos.

Para Taine, esclarece-nos Lilia Schwarcz, “nenhum fenômeno aconteceria sem uma causa exterior a motivá-lo” e o indivíduo seria “resultado imediato do grupo constituidor”. O meio, isto é, o ambiente físico e geográfico, determinaria a raça, e ambos determinariam o acontecimento.

Identificando o homem como resultado do meio em que vive, o escritor ocupou-se, na segunda parte do livro, do estudo dos diferentes tipos étnicos brasileiros, no qual a miscigenação era a questão mais importante e mais complexa a observar. Uma mistura dos elementos étnicos, sem uniformidade, originando vários outros tipos de combinação, como ressaltou Walnice Nogueira Galvão, causou um “nó conceitual” em Euclides e em muitos outros letrados de sua geração, devido à dificuldade em avaliar as respectivas contribuições do branco, do índio e do negro, e encontrar o autêntico brasileiro.

Para superar essa dificuldade o autor procurou explicar as diferenças entre os tipos étnicos (brancos, índios, negros, mamelucos, mulatos e cafuzos) a partir das correntes de povoamento que trilharam o mapa do país e da ação do(s) clima(s) sobre o homem. Assim, Euclides estabeleceu comparações entre as diferentes regiões e seus habitantes, observando os graus de influência e adaptação ao meio.

Em sua crítica, José Veríssimo dedicou maior espaço a “O Homem” do que às outras duas partes, por considerar a primeira “técnica” e cheia de uma linguagem científica e, talvez, por ser também um dos letrados preocupados com a autenticidade do brasileiro. Debruçaremos aqui nossa atenção, como Veríssimo, à segunda parte do livro, onde o escritor apresenta breves considerações acerca do caboclo amazônico. Era outro chamado da selva.

“Avançando para o Norte”, Euclides inicia sua análise do homem amazônico pelo clima local. Segundo o escritor, as altas temperaturas e o regime de chuvas do Pará não eram compreendidos nas demais regiões do país devido ao tamanho contraste que se observava: era possível, nas proximidades da linha do Equador, experimentar até três diferentes estações em um só dia. Euclides, sem ter conhecido a região pessoalmente, fez tais apontamentos embasado nas “lúcidas observações” do viajante naturalista Henry Walter Bates.

Em Um naturalista no rio Amazonas, Bates teceu elogios ao clima paraense, considerando-o “um dos mais privilegiados da face da terra”, pois as chuvas periódicas e a presença das brisas marinhas atenuariam a temperatura na estação seca. Entretanto, registrou em sua passagem pelo Alto Amazonas a “singular maneira” como o clima 20SCHWARCZ,op. cit., p. 63 equatorial afetava os índios e os negros. O naturalista afirma ainda que os europeus suportavam, com mais facilidade do que os nativos, o clima da região, porque adaptavam-se melhor. Nas épocas de seca, os índios ficariam “irritadiços” e “nervosos”, e o viajante apresentou a seguinte conclusão:

Aos poucos fui chegando à conclusão de que o índio não passa de um estranho, ou imigrante, nas regiões tropicais e que, originalmente, sua constituição não era adaptada ao clima, nem mais tarde se adaptou inteiramente a ele.

Guiando-se pelas observações de Bates, Euclides da Cunha considerou que a vida no Pará “se equilibra numa constante imperturbável”, porém, no Alto Amazonas – do mesmo modo que o viajante britânico – o autor de Os Sertões identifica um “novo habitat”, que “impõem aclimação penosa a todos os filhos dos próprios territórios limítrofes”.

Euclides condenou o clima da região e construiu uma representação do habitante local pautada em sua relação com o meio. Em primeiro lugar, afirmou que o regime de chuvas condicionava o homem, que durante o período das cheias dos rios não podia desenvolver suas atividades. Caberia a ele somente aguardar, passiva e parasitariamente, demonstrando um “estoicismo raro” ante a “fatalidade incoercível”. Na época das vazantes, retomaria a sua atividade grosseira e continuaria à mercê das manifestações da natureza que tornavam “impossível a continuidade de quaisquer esforços”. Em segundo lugar, as temperaturas seriam as responsáveis por abrir um “novo hiato nas atividades”, causando migrações, mortes e desaparecimentos de espécies, inclusive o homem, nas épocas mais frias.

A partir dessas observações, o escritor considerou um erro as generalizações que defendiam a ação de um único clima tropical em terras brasileiras, e as variações de temperaturas e chuvas da Amazônia comprovariam isso. Possivelmente influenciado pelas teorias do determinismo climático de Buckle, o autor de Os Sertões referiu-se desse modo ao clima amazônico:

O calor úmido das paragens amazonenses, por exemplo, deprime e exaure. Modela organizações tolhiças em que toda a atividade cede ao permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas das funções periféricas fortemente excitadas e a apatia das funções centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões; inervações periclitantes, em que pese a acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses incompletas.

Para o escritor, tais condições climáticas moldariam, da pior maneira, o habitante, influenciando sua maneira de agir e pensar, fazendo-o se levar mais pelo instinto que pela razão. Henry Thomas Buckle defendia a idéia de que os fatores físicos poderiam explicar os graus de desenvolvimento de uma civilização. Os europeus, supunha o teórico, haviam subordinado a natureza ao homem; fora da Europa, o homem estava subordinado à natureza, que “inflamava a imaginação” e causava um “mal enorme” como a distribuição desigual de riqueza e a impossibilidade de pensar racionalmente.

A temperatura elevada seria também responsável por alterar o funcionamento do organismo, levando o homem a perder o temperamento enérgico e o equilíbrio. Euclides caracterizou essa influência do clima como uma “evolução regressiva”, na qual a seleção natural não privilegiaria o desenvolvimento intelectual e físico, e sim o comportamento impulsivo e a fraqueza moral. Adaptar-se a esse clima seria regredir, continuamente, até a própria extinção, impondo uma derrota ao colonizador branco e civilizado:

Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.

Tanto para o forasteiro quanto para o nativo daquelas paragens, a aclimatação seria muito difícil. Ao longo de toda a segunda parte do livro, voltada justamente à compreensão dos tipos étnicos brasileiros e de sua relação com o meio, não encontramos visão determinista maior do que a direcionada à Amazônia. Podemos considerar, portanto, que, para o escritor, em nenhum outro ponto do território o meio exercia tanta influência sobre o homem e impunha adversidades à conquista do lugar.

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Fonte:
FABRÍCIO LEONARDO RIBEIRO: “FEBRE NA SELVA: A Amazônia na interpretação de Euclides da Cunha”. (Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pósgraduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, para obtenção do Título de Mestre em História. Orientadora: Prof (a). Dr (a). Márcia Regina Capelari Naxara). Franca, 2007.

Nota
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