

Lima Barreto e a concepção trágica da existência
A   concepção   pessimista   e   ao   mesmo   tempo   trágica   da   existência   humana   de Schopenhauer servirá de base aos dois grandes escritores brasileiros da virada do século XIX, Machado de Assis, que, procedendo à investigação da alma humana, empreende, através da ironia, a corrosão das relações entre essência e aparência; e Lima Barreto, que, desenvolvendo uma análise tendo como foco as ações humanas num mundo em desencanto, apresenta a dimensão trágica da existência humana. Se, no primeiro, o conceptismo quase barroco vai ser o eixo dessa   desconstrução do  mundo como representação,   desde   as   representações metafísicas religiosas (Esaú e Jacó), até as representações  metafísicas   científicas   (O alienista), no segundo, é a tragicidade da existência humana que norteará o universo ficcional, apresentando de forma recorrente o vácuo da existência dos personagens ante a consciência do hiato presente entre o desejo de viver e as representações metafísicas que lhes são adversas (Policarpo Quaresma, Gonzaga de Sá e Isaías Caminha).
Se em Machado a dose de pessimismo e até mesmo ceticismo que atravessa o texto se revela  de  imediato  através   de  uma   tensão  no  próprio  corpo  do  texto  entre  enunciação  e enunciado, que corrói a representação metafísica naquilo que ela tem de próprio, que é a identidade entre o enunciado e a enunciação, entre a palavra e a coisa; 
Em Machado, as personagens parecem marionetes que são guiadas por uma força invisível (a vontade de viver) que as  conduz  no auto-engano sem nunca chegarem  a ter consciência do erro em que se encontram; 
Nesse sentido, pode-se dizer que, enquanto a narrativa machadiana é tomada por uma concepção   pessimista   do   mundo,   presente   tanto   no   enredo   quanto   no   enunciado,   já   nas primeiras palavras do texto (veja-se a introdução de Memórias póstumas... de um defunto autor ou atente-se a assertiva do tipo “A ocasião faz o furto, o ladrão já nasce feito”); a narrativa de Lima Barreto apresenta uma relação dialógica entre uma visão idealista, que vai se degradando, e uma visão pessimista, que vai tomando corpo no decorrer da narrativa até se instaurar, num desenlace trágico, como uma perspectiva presente na existência humana. O pessimismo, nesse caso, se apresenta como um efeito dos erros de avaliação produzido por uma visão idealista. Pode-se inferir, nesse caso, que as representações sociais que legitimam as   ações   humanas   são   ilusórias   e   não   têm   referentes   sólidos   que   as   sustentem incondicionalmente. Ao contrário, como diria Schopenhauer, a representação – condicionada pelo tempo, espaço e causalidade – nada mais é do que um instrumento da vontade de viver, essa sim incondicionada. É nesse sentido que os personagens de Lima Barreto que melhor encarnam esse aspecto trágico da vida são Gonzaga de Sá e Policarpo Quaresma, cujas visões de mundo, conformadas por conceitos éticos e altruístas temperadas por bons sentimentos, vão pouco a pouco dando lugar à consciência da impotência dos homens de boa vontade frente aos pactos sociais cruéis em que a vontade se revela nas representações da razão prática que legitimam o poder.
Esse embate trágico da existência é muito bem definido por Schopenhauer que afirma que o objetivo da tragédia é
mostrar-nos o lado terrível da vida, as dores indescritíveis, as angústias da humanidade, o triunfo dos maus, o poder do acaso que parece ridicularizar-nos, a derrota infalível do justo e do inocente: encontramos nela um símbolo significativo da natureza do mundo e da existência. O que vemos nela é a vontade a lutar consigo mesma com todo o pavor desse conflito. [...] A tragédia mostra-nos isso descrevendo os sofrimentos humanos, quer provenham do acaso ou do erro que governam o mundo sob a forma de uma necessidade inevitável, e com uma perfídia que quase podia ser tomada por uma perseguição voluntária, quer tenham uma fonte na própria natureza do homem, na mortificação dos  esforços e volições  dos  indivíduos, na perversidade e na ignorância da maioria deles. A vontade que vive e se manifesta em  todos os homens é uma só, mas as suas manifestações combatem–se e despedaçam-se mutuamente. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 266).
Considerando essa concepção trágica do mundo, pode-se dizer que em dois romances de Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e Triste fim de Policarpo Quaresma, há uma modulação dessa visão que se revela na existência dos dois personagens que dão nome aos romances: Policarpo Quaresma, o mais conhecido sonhador entre nós, brasileiros, depois de Dom Quixote, que é o exemplo mais completo do homem idealista, cujos preceitos morais   são   apresentados   como   uma   deficiência   de   caráter   que   o   debilita   na   luta   pela sobrevivência e o leva a um trágico fim; e Gonzaga de Sá, personagem do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, o qual descobre, próximo do termo de sua existência, que sua vida, dedicada ao estudo e à preservação da tradição, foi em vão, já que ele vê a cidade do Rio de Janeiro e toda a sua população se transformarem com os ventos da modernidade. Nesse romance,   a   melhor   expressão   da   concepção   trágica   da   existência   são   as   ruínas   que   o personagem encontra nos seus passeios pela cidade. Esse romance apresenta, ainda, uma outra faceta   da   existência   humana   que   se   coaduna   perfeitamente   com   uma   outra   perspectiva filosófica   de   Schopenhauer,   a   visão   de   Augusto   Machado,   que   se   configura,   em   vários momentos do romance, como a do sujeito da contemplação, que é definido por Schopenhauer como aquele que supera a servidão da vontade através de uma contemplação intuitiva do objeto.
Em  Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, o que se pode ver é a história de dois homens, Augusto Machado e Gonzaga de Sá, cujos destinos se cruzam e que, unidos por uma simpatia mútua, deixam entrever, a partir dos seus atos e de suas reflexões sobre a existência, os conceitos filosóficos do mundo como representação e vontade que, se em Schopenhauer se configuram teoricamente, nesta obra de Lima Barreto se apresentam de forma exemplar na biografia escrita por Augusto Machado.
Gonzaga de Sá é o personagem que tem sua biografia narrada por Augusto Machado e cuja vida se confunde com as tradições da fundação da cidade do Rio de Janeiro. Por isso, já ao final da vida, o personagem toma consciência de que o mundo do qual fazia parte se encontra em ruínas e até mesmo a arquitetura da cidade, suporte de uma memória toponímica, é destruída inescrupulosamente para dar lugar a uma nova estratificação da cidade. Pode-se dizer que o mundo em ruínas, que caracteriza simbolicamente a essência do trágico, nesse romance se apresenta como a ruína do próprio personagem Gonzaga de Sá, na medida em que sua memória e sua relação identitária com o mundo têm fortes referências nas construções e na paisagem da época do regime monárquico e mesmo da época colonial.
M. J. Gonzaga de Sá
Do ponto de vista do conhecimento íntimo da natureza humana, chegaria  mesmo a  atribuir às biografias, e  principalmente  às  autobiografias, um valor maior do que a história propriamente dita, pelo menos tal como ela costuma ser   tratada.   [...]   A   relação   entre   uma   biografia   e   a   história   dos   povos   deixa-se apreender pela comparação seguinte: a história mostra-nos a humanidade, como a natureza nos mostra uma paisagem do alto de uma montanha: vemos muitas coisas com um só olhar, vastos espaços, grandes massas; mas nenhum objeto é distinto nem reconhecível nas suas particularidades essenciais; a biografia pelo contrário faz-nos   ver   o   homem   como   vemos   a   natureza,   quando   a   estudamos,   passando   das árvores às plantas, às rochas, aos lagos. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 260).
Sabemos desse livro,  Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que ele fora “escrito à mesma época do Recordações do escrivão Isaías Caminha [publicado em 1909], não se sabe se pouco antes ou pouco depois” (BARBOSA, 1952, p. 266), contudo sua publicação só veio a ocorrer em 1919. Durante esse período o autor acrescentou modificações ao texto original, como afirma Francisco de Assis Barbosa: “Fossem poucas ou muitas tais emendas, o certo é que [Lima Barreto] acabou por considerá-lo, de todos os seus livros, o único começado e acabado, quer dizer, a sua obra mais perfeita” (ibidem, p. 266). Em carta acerca do romance disse Lima Barreto a Carlos Süssekind de Mendonça: “É uma mania de todos me dizerem que eu estou decaindo. No entanto, eu te juro, que Gonzaga de Sá foi o único livro que comecei e acabei [...]” (ibidem).
Um dado significativo, sobre o intervalo de tempo entre a criação e a publicação, são as datas que aparecem nas notas assinadas respectivamente por Lima Barreto e pelo narrador Augusto Machado, autor ficcional do livro. A primeira nota, assinada por Lima Barreto e intitulada “Advertência”, traz a data de “abril de 
Outro   dado,   também   importante   para   uma   contextualização   da   obra,   é   que   sua publicação foi possível graças à intervenção de Monteiro Lobato, que em carta enviada a Lima Barreto, comunicando o recebimento dos originais, lhe propõe um bom contrato de edição pela “Revista do Brasil” e lhe dirige palavras de apreço. Lembramos que Monteiro Lobato, por ocasião dessa correspondência, não conhecia pessoalmente Lima Barreto, porém já sabia de sua obra, à qual teceu elogios em carta anterior, datada de 02 de set. 1918, expressando o desejo ardente de tê-lo como colaborador na “Revista do Brasil”, da qual acabara de se tornar editor (ibidem, p. 259-260).
Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá  é uma biografia romanceada do personagem Gonzaga de Sá, amanuense de profissão, escrita e narrada pelo também amanuense Augusto Machado,   que   conhecera   o   protagonista   por   força   do   ofício.   Na   condição   de   amigo   de Gonzaga de Sá, o narrador revela, na nota “Explicação Necessária”, a intenção de fazer a biografia de um homem de outro estrato social, que não o dos ministros, posto que “houvesse um biógrafo para os ministros e outro para os amanuenses”, o que mostra uma preocupação de marcar o lugar social do personagem e do biógrafo e destacar a importância desse aspecto na construção do romance.
Um outro detalhe, na estruturação do romance, segundo palavras de Lima Barreto na primeira nota, é o “fato de muito aparecer e, às vezes, sobressair demasiado, a pessoa do autor”, Augusto Machado, em relação à figura do personagem biografado, Gonzaga de Sá. Isso dá ao leitor a oportunidade de conhecer não só o personagem principal – um homem da tradição  –  como também o próprio narrador, um homem mais incorporado à vida de uma cidade que se moderniza.
Pode-se dizer que Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá é o testamento da existência de   um   homem   que   vê   um   mundo,   o   seu   mundo,   desaparecer   antes   do   seu   próprio desaparecimento. Velho funcionário da Secretaria dos Cultos, responsável pela manutenção de   tudo   que   representava   e   mantinha   a   tradição,   Manuel   Joaquim   Gonzaga   de   Sá   é, ironicamente, apresentado como uma testemunha da destruição de tudo que possa ser prova da existência da cidade colonial e monárquica, que foi o Rio de Janeiro, e por extensão da sua própria destruição. Perambulando pelas ruas, becos e cafés na companhia de seu jovem amigo e fiel escudeiro, Augusto Machado, o velho cavaleiro já não encontra forças para lutar contra aquilo que foi a modernização da cidade do Rio de Janeiro.
Definido pelo narrador, Augusto Machado, como “céptico, regalista, voltariano”, o amanuense da Secretaria dos Cultos é, no fim das contas, um amálgama de vários elementos presentes   na   formação   do   homem   médio   que   se   enfileirava   no   grande   contingente   de funcionários   públicos   federais   necessário   na   manutenção   da   burocracia   brasileira,   uma herança do império que perdurou e perdura durante toda a República. Nas repartições, os amanuenses formavam uma classe distinta, pois a atividade por eles desempenhada impunha um certo conhecimento e até mesmo um certo gosto pela escrita. Isso não quer dizer que fossem   os   amanuenses   homens   letrados,   já   que   seus   escritos   no   ofício   do   trabalho   se limitavam às palavras protocolares dos documentos oficiais, que não exigiam outra qualidade que não fosse o gosto pela rotina e uma boa caligrafia, como disse ironicamente Augusto Machado, biógrafo de Gonzaga de Sá.
No entanto, como era e foi o serviço público federal brasileiro um refúgio para os quantos intelectuais que não conseguiam exercer outro ofício, Gonzaga de Sá representava aquele grupo de intelectuais “sem queda especial para médico, advogado ou engenheiro”, profissões   doutas   que   possibilitavam   o   reconhecimento   pela   elite   política   e   intelectual brasileira. Tinha ele “outras aptidões intelectuais, que a vulgaridade do público brasileiro ainda não sabe apreciar, animar e manter” (BARRETO, 1956b, p. 48).
A   configuração   do   serviço   público   como   refúgio   daqueles   que,   oriundos   de   uma situação financeira desfavorecida ou mesmo de uma situação mais abastada, têm um capital intelectual que os faz se destacarem da multidão analfabeta, se completa com a imagem desse mesmo   serviço   como   um   lugar   estéril   e   esclerosado   ao   desenvolvimento   das   aptidões intelectuais.   Um   ambiente   que,   nas   palavras   de   Augusto   Machado,   é   “uma   aldeia   de gafanhotos”, em que o valor de um escriturário se mede pela beleza de sua letra.
É o Estado republicano um mundo de papel em que o poder se exerce através de uma escritura que se prolonga ao infinito, se enroscando em seu próprio corpo e impedindo o florescimento de qualquer pensamento original. Para fazer esse mundo funcionar é necessário um exército de escriturários que intermediarão e alimentarão com seus ofícios as demandas dos vários poderes da República, de forma a manter intactos ou pelo menos equilibrados os interesses dos vários  grupos que lutam pelo poder. Gonzaga de Sá é um dos  que fazem funcionar esse mundo, em que uma simples discrepância entre o número de salvas devidas a um bispo é capaz de ocupar, não apenas o ministro dos Cultos, ao qual Gonzaga de Sá era subordinado, mas também o Ministério do Exterior e o Ministério da Guerra, consumindo papel e tempo.
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Fonte:
LENIVALDO GOMES DE ALMEIDA: “UM AUTOR À PROCURA DE UMA ALMA: A crise da representação e a dimensão trágica em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação   
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
 
 
 
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