O pensamento e a sociologia de Weber na história da filosofia

Introdução: o pensamento e a sociologia de Weber na história da filosofia

O pensamento de Max Weber fornece uma extraordinária variedade de questões para as ciências humanas, estas questões envolvem tanto problemas teóricos quanto meta-teóricos. Ainda que algumas destas questões extrapolem os limites estritamente teóricos, Max Weber buscou, o quanto pôde, se ater ao caráter metodológico da abordagem. Este limite, isto que conduz o método a reconhecer sua limitação independente do objeto que estuda, e de suas condições, introduziu no método uma desconfiança crítica, tipicamente kantiana. É por essa via que o investigador passa a se interrogar, não mais sobre os limites teóricos específicos, mas sobre o limite da compreensão em geral, o limite entre a razão e a história, a irracionalidade e a realidade.

No entanto, o tema da irracionalidade nunca foi de fato expressado por esse termo em sua origem, em Kant e Hegel. O próprio Hegel usou este termo raras vezes, e se referindo à irracionalidade no sentido matemático. Foi, muito provavelmente, Fichte quem de fato apresentou os limites da razão kantiana sobre o título de irracionalidade. Com isso, uma vasta questão no campo filosófico, que envolvia diferentes noções como a “coisa em si”, as “idéias absolutas” de Deus, mundo, e a imortalidade da alma, passaram a ser reunidas sobre o título genérico de irracional.

Embora, como foi dito, Weber se esforçasse em apresentar estas questões em termos estritamente teóricos, é impossível compreender a fundo estas questões que se reúnem pelo título genérico de irracionalidade sem compreender corretamente sua origem no idealismo alemão.

A época de Weber foi a época do neokantismo e da “renovação do hegelianismo” e toda discussão teórica estava imbuída de questões filosóficas que se originaram em Kant e que ganharam em Hegel um alcance universal no mundo histórico.

O sentido geral da renovação do hegelianismo está na reflexão que é feita sobre a compreensão histórica com base em princípios kantianos. Seu principal interlocutor foi Wilhelm Windelband que consagrou esse título pelo discurso: Die Erneuerung des Hegelianismus em 1910.

Mas antes disso, em 1891, Windelband já havia produzido uma imponente obra, História da filosofia. Nessa obra Windelband já refletira sobre o legado filosófico deixado pelo idealismo. Esta reflexão crítica, que se propagou muito além do meio acadêmico de Heilderbergera muito mais do que um manual, era uma disciplina crítica de história da filosofia.

Sua história da filosofia se opunha a certa “superficial arrogância” da história da filosofia hegeliana. A pretensão hegeliana de formular um “progresso na história da filosofia” era vista então com desconfiança, pelo fato de que esse progresso, segundo juízo do próprio Hegel, quando não correspondia à realidade, isso somente expressaria algum prejuízo para a realidade e não para sua história da filosofia. Este tipo de opinião de Hegel era severamente rejeitada no contexto filosófico de Max Weber. Entretanto, como este limite imposto ao pensamento de Hegel foi amplamente disseminado, esta crítica resultou inadvertidamente na refutação do método dialético das escolas históricas e da filosofia da vida. Embora Windelband imponha certos limites a essa audaciosa abordagem hegeliana, ele reconhecia a importância de seu empenho em colocar a filosofia diante da realidade histórica, e indicava o risco contrário, tipicamente romântico, de negar completamente a razão na história:

O equívoco de Hegel mencionado a cima, consiste, portanto, simplesmente no seu desejo de criar um fator que seria efetivamente, embora com certos limites, o único ou, pelo menos, o principal fator. Ele seria o erro contrário ao negar absolutamente toda ‘razão na história’, ou mesmo ao ver nas sucessivas doutrinas filosóficas, somente confusos pensamentos ocasionais e individuais. (...) Nessas relações se encontram as tentativas de classificar toda doutrina filosófica sobre certos tipos, e estabelecer algo como uma repetição rítmica delas no seu desenvolvimento histórico. (WINDELBAND. 1901, p.12)

Para Windelband, Hegel estava correto em apresentar a filosofia como história da filosofia, mas sua falha consistia em haver designado um fator único que determinasse o rumo desta história da filosofia. Há por outro lado, diz Windelband, o erro oposto, o de negar completamente a razão de um ponto de vista histórico. Assim, impondo certos limites às pretensões hegelianas, mas também, evitando cair no erro oposto, de um irracionalismo absoluto, Windelband reconhecia que:

As grandes conquistas e as novas questões emergentes das ciências específicas, os movimentos da consciência religiosa, a intuição artística, as transformações na vida política e social, todos estes fatores, dão a filosofia novos impulsos em intervalos irregulares, e condicionam as direções por força dos interesses, hora estes, hora aqueles, que regem e conduzem seu tempo (WINDELBAND. 1901, p.13)

Windelband destacava que na história da filosofia não há uma lógica do pensamento que nos permita conceber um sistema tal como Hegel prescrevera, essa lógica geral se mostrava, em determinados períodos, completamente ausente. Nesses momentos vemos se sobrepor ao plano puramente teórico, os movimentos históricos. Pode-se destacar na afirmação de Windelband que o elemento histórico se aplica aos “intervalos irregulares”, ou seja, à momentos que não permitem qualquer tipo de apreciação determinista sobre o espírito que regeria seu movimento. Este parágrafo tem como mote a idéia de que “a história da filosofia é o processo no qual a humanidade européia incorporou suas concepções de mundo e seus juízos sobre a vida em conceitos científicos" (WINDELBAND. 1901, p.9). É justamente em vista desta passagem que Max Weber faz seu elogio a Windelband, indicando o quanto ele compartilhava de sua interpretação da história da filosofia:

A maneira como Windelband na sua História da Filosofia (Gesch. der Phil. § 2, 4ª Ed. p. 8) delimita o tema da sua ‘história da filosofia’ (‘o processo pelo qual a humanidade européia (...) formulou a sua concepção de mundo mediante conceitos científicos’) fundamental como referência para sua pragmática, é brilhantíssima a meu ver, o emprego de um conceito específico de ‘progresso’ [Fortschritts] que se deriva desta referência aos valores culturais (cujas conseqüências se encontram nas páginas 16 e 17) e que, por um lado, de modo algum é evidente em cada ‘história’ da filosofia, mas que, por outro lado, no que remete à sua fundamentação, uma referência análoga ao valor de respectiva cultura, é bem adequada, não somente para uma história da filosofia, ou para uma história de qualquer outra ciência, mas também – diferente daquilo que Windelband sustenta (segundo p. 7, nr. 1, parágrafo 2) – para cada ‘história’ em geral (WEBER. 2001, p.307).

Este é o testemunho textual, não só de que Weber estava ciente do sentido da história da filosofia de Windelband, mais do que isso, que a noção de valor cultural (no caso o “valor de respectiva cultura”) de Weber possuía esta influência. Conforme as palavras de Weber a interpretação de Windelband, apesar de sua opinião que limita a aplicação exclusivamente a história da filosofia, poderia, de fato, ser aplicada à história em geral. Weber fez esta explicação no texto sobre O sentido de “Wertfreiheit" nas ciências sociológicas e econômicas, no qual esta questão neokantiana sobre os valores (“Wert”) era o tema central.

Windelband não só influenciou Weber pelas noções de “valor”, “cultura”, “irracionalidade” e “progresso”, mas pela sua interpretação particular da história da filosofia, que foi aplicada por Weber à história em geral. Algumas considerações de Windelband permitem reconhecer o que foi feito por Weber, e eram, na verdade, o caminho mais elevado para quem visava abordar, não simplesmente a filosofia e a ciência, mas a racionalidade de um ponto vista histórico. Este ponto de vista histórico é obrigatoriamente um ponto de vista crítico:

A história da filosofia, como toda história, é uma ciência crítica; cuja tarefa não é somente recordar e explicar, mas também estimar o que consta como progresso e fruto do movimento histórico, quando somos bem sucedidos em conhecer e compreendê-lo. Não existe história sem este ponto de vista [crítico], e a evidência da maturidade do historiador é quando ele mostra que está claramente consciente deste ponto de vista do crítico, quando não é este o caso, ele procede então, na seleção de seu material e na caracterização dos detalhes, de modo meramente instintivo e sem um padrão claro. (...) Mas aquele que contempla o trabalho dos pensamentos na história, com uma visão histórica ampla, a este lhe será reservada uma reverencia muito respeitosa por haver censurado os heróis da filosofia pela ignorância de sua sabedoria como um epígono. (WINDELBAND. 1901, p.17)

Como será apresentado no quarto capítulo, Max Weber seguiu a rigor essa tarefa crítica de interpretar a história, isso foi feito já em 1904-5 quando publicou a a primeira versão d’A ética protestante e o “espírito” do capitalismo.

Em 1910, Weber reafirma este aspecto de sua obra ao responder as críticas dirigidas à ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Rachfahl havia questionado a maneira como os aspectos éticos fundamentavam a compreensão das práticas econômicas do capitalismo. Para Rachfahl esse argumento de Weber possuiria uma a relativa validade do ponto de vista econômico, Weber respondeu que seu objetivo não era apresentar uma explicação sobre a origem do comportamento econômico capitalista, mas sim compreender algo mais amplo, que corresponde as palavras de Windelband “o processo pelo qual a humanidade européia (...) formulou a sua concepção de mundo”, seu progresso e os valores que envolvem. Nas palavras de Weber:

O progresso de um capitalismo em expansão nunca foi meu interesse central; ao invés disso, era o desenvolvimento da humanidade e como ele foi produto da confluência de fatores determinantes, econômicos e religiosos.(WEBER. 1978, p.1111)

Esse tipo de objetivo teórico demonstra quanto seu trabalho vai além da mera interpretação histórica e sociológica do capitalismo, seu interesse central, que fica nítido ao final da ética protestante, compactua com essa noção de Windelband de progresso da humanidade européia, não como um processo simples, ou como emanação do espírito, mas como a história revista de um ponto de vista crítico dos valores.

Karl Jaspers oferece uma descrição exata da posição de Weber diante destas questões. Jaspers foi o primeiro a denominar Max Weber como um filósofo, algo bastante controverso. Entretanto, esse título se limita apenas ao que o próprio Jaspers entendia por filosofia. Trata-se da maneira particular que ele identificou em Weber uma “existência filosófica”. Mas o que isso quer dizer ao certo, é que Jaspers identificava no pensamento de Weber uma expressão dos seus próprios conflitos valorativos e existenciais como sendo a fonte de sua interpretação dos conflitos éticos modernos.

Jaspers afirmou em 1920, numa homenagem póstuma, que seu título de “sociólogo” não fez de Weber menos filósofo, embora Weber tenha rejeitado o título de filósofo, sendo que ele “estava consciente da sensível diferença que o separava da filosofia – [i.e.] os objetivos finais dos sistemas – ele percebia pela concepção histórica (de Hegel à Windelband) como toda história da filosofia era estranhamente distorcida por esta perspectiva”. (JASPERS. 1989, p.13). Isso, aparentemente, faria de Weber menos filósofo e mais sociólogo ou historiador. Jaspers entretanto se perguntava sobre a diferença entre a filosofia e esta sociologia feita à maneira de Weber. E segundo sua própria definição de filosofia, Weber foi tanto sociólogo como filósofo, mesmo rejeitando tomar parte em algum sistema filosófico:

O que é então sociologia? Sua definição não é em nada mais clara do que a de filosofia. A filosofia tem sido compreendida quase sempre como auto-compreensão do espírito humano, no sentido grego do “conhece-te a ti mesmo” tomado através de Hegel. A sociologia também exige a auto-compreensão do mundo presente. A questão central de Weber, pela qual podemos identificar toda sua investigação em sociologia da religião é: porque temos o capitalismo no ocidente? Esta é uma questão que o mundo presente gostaria de compreender. Max Weber admirava a concepção materialista da história de Marx – e este foi o primeiro passo da auto-compreensão do capitalismo como uma descoberta científica. (...) Isto é sociologia, ou não poderia bem ser filosofia sobre outro nome? (JASPERS. 1989, pp. 6-7)

Entretanto, mesmo que se opusesse a elaboração de um sistema filosófico, segundo Jaspers: “Max Weber se recusava a denominar-se filósofo (...) ele resistiu intensamente aos sistemas filosóficos, por mais que ele pensasse de modo energicamente sistemático” (JASPERS. 1989, pp.12-13). Esta contradição tipicamente moderna, era mais um dos resultados de recusar o papel histórico do absoluto hegeliano, era algo muito próximo do que foi feito por Windelband. O pensamento de Weber seguiu claramente este padrão crítico que Windelband atribuía não só a filosofia mas a história em geral, Weber visava os mesmos fins científicos, “um padrão claro”, que conduz a uma compreensão que refletia os dilemas mais profundos da modernidade, embora raramente tenha ultrapassado a fronteira da história em direção a filosofia. Weber sempre permaneceu no limiar da consciência histórica negando a possibilidade de uma consciência plena.

Esta perspectiva de Weber parece ser limitada, além de outros fatores, pelo que denominaremos adiante “problema dialético” e que será tema central para a abordagem dos capítulos decisivos desta investigação.

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Fonte:
Luis F. de Salles Roselino: “Max Weber e o problema da Dialética: Presença do Idealismo na formação dos tipos ideais”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E METODOLOGIA DA CIÊNCIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA. Orientador: Prof. Dr. Wolfgang Leo Maar). São Carlos – SP, 2009.

Nota
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