O significado de scientia

“Cabe, aqui, identificar dois usos feitos por Tomás de Aquino do termo scientia no sentido de “ciência” ou “disciplina científica”, cuja ignorância pode induzir o leitor do Comentário à falsa crença de que ele se contradiz. O Doutor Cristão introduz a distinção já no livro I, mas a retoma no livro VI, onde faz decorrer da sua consideração conseqüências mais fortes. A ciência pode ser dita, então, especulativa ou prática.

Para que se chegue a esta distinção, cabe proceder a alguns esclarecimentos sobre o modo como Tomás atribui ao homem a capacidade de conhecer cientificamente. Ele parte da divisão da alma em racional e irracional. À primeira, corresponde o órgão dito “intelecto” ou “razão”, à segunda, o dito “apetite”. Pois aquele, o intelecto, se subdivide em duas partes, uma propriamente “científica” e a outra “estimativa”, dependendo do uso que o sujeito cognoscente queira fazer dele (estritamente teórico ou prático), conforme fora visto. A divisão da alma em partes diferentes permite que se conheça coisas de natureza também diferentes, como o são as necessárias e as contingentes. Diz Tomás que “as partes da alma racional diferem em gênero da mesma maneira que as [coisas] conhecidas pela razão”.

A parte que conhece as necessárias é dita especulativa, a que conhece as contingentes, prática. Com efeito, o conhecimento do que é necessário não é dado ao homem da mesma maneira do que o conhecimento do que é contingente. Assim, há uma ciência própria para o tratamento de um e de outro, a saber, a ciência especulativa e a ciência prática, respectivamente.

A ciência especulativa, aquela que Tomás chama de “ciência” em um sentido estrito no decorrer do seu Comentário, descreve uma realidade “objetiva”, conquanto pertença à natureza das coisas em si, independentemente da vontade humana. Refere-se à matéria necessária, à qual se aplica o conceito de verdade, em oposição ao de falsidade. O que é necessário é de uma determinada maneira e não pode ser de outra. Nesse sentido estrito, nota, não existe ciência sobre as coisas contingentes ou incertas, aquelas “que podem ser de algum outro jeito”. Apenas excepcionalmente pode-se admitir o contrário, a saber, quando aquilo que era contingente acontece. Mas, nesse caso, deixa de ser contingente, pois passa a habitar o mundo “real”. Por exemplo, Tomás cita a constatação de que “Sócrates está sentado”. Ele diz que “é próprio à ciência conhecer com certeza e não seguir aproximações para a verdade”, dado, como deve ter ficado claro, consistir em “uma certa avaliação dos universais e das coisas existentes necessariamente”.

A ciência prática, por sua vez, é comparada a uma habilidade por descrever uma realidade “subjetiva” com o propósito de que sua descrição sirva para o desenvolvimento de uma prática humana, não tendo sentido se resumida ao ato de conhecimento ele mesmo. Refere-se à matéria contingente, à qual se aplicam os conceitos de certo ou errado. O que é contingente pode ser, mas não o é necessariamente. Há uma possibilidade maior de que seja de uma determinada maneira, mesmo que não se esteja autorizado a negar a possibilidade do seu contrário. Ela trata do que é particular, sendo útil para direcionar as operações humanas. Tomás afirma em relação à dificuldade de compreensão do fim último da vida humana, bem como de todas as causas últimas, que “nós devemos entender isso em suas linhas gerais, ou seja, com verossimilhança, porque tal é o modo de entendimento que convém às coisas humanas”.

A identificação de que algo ocorre geralmente serve como uma aproximação da verdade. Em se tratando das ações humanas, diz-se serem dignas de um juízo de valor, o certo ou o errado, justamente porque não são necessárias. O homem é livre para agir, conquanto o princípio de causalidade não se insurja de modo absoluto sobre ele. Com efeito, Tomás exclui a necessidade sobre o intelecto e sobre a vontade, os quais são, assim, responsáveis pela escolha. O critério a ser considerado em qualquer caso, entretanto, é dado, pois diz respeito à natureza mesma do homem. É sobre os meios que ele delibera, não sobre o fim a que se dirigem. Por isso, a matéria moral pode ser conhecida, respeitados certos limites. Diz o Aquinate em relação às ciências práticas:

(...) é preciso que se mostre sua verdade de maneira figurada, quer dizer, com verossimilhança; e é isto proceder aos princípios próprios desta ciência.

Uma vez que se tenha claro o que o Santo Doutor quer referir com o termo “ciência” num e noutro caso, não faz sentido atribuir às suas teses a nota da contradição. Contudo, ele é bastante sutil em seu movimento, devendo o leitor atentar tanto ao seu vocabulário como às inúmeras subdivisões constantes de sua obra. Ao afirmar que a ciência conhece com certeza e que não segue aproximações para a verdade, refere-se à “ciência especulativa”. Ao afirmar, por sua vez, um entendimento em “linhas gerais”, ou seja, com apenas a evidência da probabilidade, e que se deve “traçar um esboço da verdade”, ou seja, uma aproximação da verdade, refere-se à “ciência prática”.

Pois a Ética e a Política são ciências no segundo sentido: são ciências práticas, porque tratam da ordem que pode ser trazida à deliberação, escolha e ação voluntária, qual seja, a ordem que envolve os bens do homem. Ora, diz Tomás, só se delibera sobre aquilo que é contingente, como o são as coisas ordenadas a um bem, pois o contrário não faz sentido.

Apesar das indefinições e das dificuldades encontradas para um estudo sistematizado desta matéria, é um imperativo que se o faça. Como fora visto, tudo no universo está dirigido a um fim. É natural ao homem o desejo de alcançar o seu fim, o qual pode, em parte, ser realizado já neste mundo. O seu alcance depende do seu conhecimento. Daí, então, a necessidade da ciência que tem o condão de viabilizá-lo.

---
Fonte:
ANDRÉA TEIXEIRA DOS REIS: “CONHECIMENTO CIENTÍFICO, AÇÃO E FELICIDADE HUMANA NO COMENTÁRIO À ÉTICA NICOMAQUÉIA DE TOMÁS DE AQUINO”. (Dissertação submetida como requisição para a obtenção do título de MESTRE EM FILOSOFIA. Orientador: Professor Dr. Alfredo Carlos Storck. Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Porto Alegre, 2008

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!