Os três tipos de amizade



OS TRÊS TIPOS DE AMIZADE

Tendo em perspectiva as considerações feitas até aqui, faremos uma análise mais detalhada da abordagem aristotélica da amizade.

Inicialmente importa analisar os tipos de amizade que o Estagirita nos apresenta. São três os tipos de amizade:

1 – amigos por causa da utilidade – Ora, os que se amam por causa de sua utilidade não se amam por si mesmos, mas em virtude de algum bem que recebem um do outro (EN VIII, 3, 1156 a 10-11);
2 – amigos por causa do prazer – [...] dos que se amam por causa do prazer; não é devido ao caráter que os homens amam as pessoas espirituosas, mas porque as acham agradáveis (EN VIII, 3, 1156 a 12-13);
3 – a amizade dos bons e iguais na virtude – A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos (EN VIII, 3, 1156 b 6-7).

Aristóteles apresenta uma hierarquia dos três tipos de amizade: em primeiro lugar está a amizade virtuosa, em segundo, a amizade baseada no prazer, e em terceiro, a amizade do interesse, da utilidade. Ross (1987, p. 235) apresenta, por isso, a amizade aristotélica em três planos: no plano inferior estão as amizades úteis que não são auto-suficientes; no intermediário estão as amizades prazerosas que atualizam o prazer da convivência; e no plano superior encontram-se as “amizades por bondade”, em que ocorre o compartilhamento da “melhor vida”, a amizade como fim.

A amizade baseada na utilidade é aquela em que obtemos algum proveito ou benefício, e não pelo amigo mesmo, mas sim à medida que os amigos se utilizam, se beneficiam de algo uns dos outros. A amizade dos que são amigos por prazer também acontece quando não é levado em conta o amigo por si mesmo, mas o prazer que resulta desta relação.

De forma geral as amizades que procuram o prazer e a utilidade às vezes se parecem com a amizade dos que desejam o bem comum porque as coisas boas também dão prazer e são úteis (EN VIII, 4, 1157 a 1-3). Mas estas amizades são transitórias e não permanentes. São amizades efêmeras que duram enquanto houver algo de útil ou prazeroso. Quando acaba a utilidade ou o prazer, nada sobra entre “os amigos”. É o caso das pessoas espirituosas, que dão prazer uma à outra, e dos amantes, cuja amizade desaparecerá por não haver uma amizade do desejo comum do bem, nem uma convivência que os leve a amar o caráter um do outro pela afinidade que existe entre eles, além do prazer que um proporciona ao outro.

A amizade encontrada na velhice geralmente é a baseada na utilidade (EN VIII, 3, 1156 a 25), e a amizade entre os jovens geralmente é buscada pelo prazer, enquanto existe uma espécie de amizade que é mais perfeita: esta amizade, além do mais, também é útil e propicia prazer. A amizade virtuosa nasce da semelhança e só existe entre os bons, as amizades úteis ou prazerosas podem existir entre os velhos e supõem um certo contrário: a complementaridade das necessidades (GAUTHIER; JOLIF,. p. 671).

Há, pois, entre essas três espécies de amizade uma que é a melhor e a mais perfeita. A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos (EN VIII, 3, 1156 b 6-7). Esta afirmação de Aristóteles esclarece que antes de ser amigo é preciso ser virtuoso. A virtude é, assim, um requisito para a amizade dos que desejam o bem comum. Ao mesmo tempo, porém, a amizade possibilita a virtude, fazendo com que o agir virtuoso se torne mais agradável e mais fácil. Se conhecemos o que é o bem, se o bem é desejável e prazeroso, exercitar a amizade é desejar o que é bom para o amigo. Se o que é bom é desejável em si, também será bom para o amigo.

A amizade, principalmente quando baseada na utilidade ou no prazer, é um meio para se chegar a algo, e só tem valor instrumental. Somente a amizade baseada na virtude, no bem, possui valor intrínseco, superando o seu caráter instrumental. Neste caso, a amizade é também um fim.

Assim como a vida política, já vista anteriormente, além de ser meio para a eudaimonia, é também um fim em si mesma, também a philia não é somente um meio, mas também um fim em si mesma, confirmando-se também aqui o que dissemos antes: que a finalidade da existência humana é imanente, e que não se aspira a algo mais do que à vida terrena.

Para Aristóteles, o homem sumamente feliz necessitará de amigos (EN IX, 9, 1170 a 2) e amigos virtuosos. Para ele a amizade é um bem com valor intrínseco, indispensável mas insuficiente para alcançar a eudaimonia.

A amizade é um bem intrínseco, e o livro IX da EN nos possibilita a existência de uma eudaimonia tomada à parte, explicitamente solitária, porque a ausência mesma da filia exclui ou pelo menos diminui, o seu caráter de eudaimonia, por tornar-se uma eudaimonia incompleta. A ausência da filia mostra que a eudaimonia não pode, em nenhum aspecto, prescindir até mesmo dos bens considerados intrínsecos (HOBUSS, 2002, p. 133-134).

Na Magna Moralia, a amizade é apresentada como uma “ajuda para a felicidade” (MM II, ll). O homem, sendo político e estando em sua natureza o viver “em comum”, necessita de amigos virtuosos para poder contemplar boas ações e as ações de um homem virtuoso e amigo são ações dignas, assim como as suas, sendo ele também um homem virtuoso (EN IX, 9, 1170 a 3). Os homens felizes necessitam de amigos que compartilhem e estimulem a sua felicidade.

Mas a quem podemos chamar de bons e virtuosos para que se possa compreender melhor o que é a amizade virtuosa?

Só podemos chamar de bons e virtuosos, em sentido absoluto, aos que possuem a virtude, que serve a eles mesmos e aos outros (EN VIII, 5, 1156 b 13-14). Eles são semelhantes na virtude e o bem que um deseja para si, deseja-o para o outro, e tal querer é incondicional. A verdadeira amizade sempre exige assim, reciprocidade e benevolência.

Estes amigos são, portanto, bons e iguais na virtude; eles querem o bem um do outro enquanto são bons em si mesmos. A amizade virtuosa é baseada em um crescimento moral que acontece através das ações conjuntas, de cooperação, implicando em igualdade. A essência da amizade é compartilhar e nela o homem encontra a mesma relação de respeito ao amigo e também respeito consigo mesmo. A verdadeira amizade ressalta o bem que se encontra nos amigos.

Também na Retórica encontramos o que Aristóteles entende por amigo:

Vê-se agora sem dificuldade o que entendemos pela riqueza em amigos e pela amizade das pessoas de bem, se primeiro definirmos o amigo: o homem que faz em prol de outra pessoa aquilo que julga ser bom para ela. Se muitas pessoas tiverem estas disposições a vosso respeito, tendes muitos amigos; se essas pessoas forem virtuosas, tendes a amizade das pessoas de bem (Ret.I, V, II, l6).

A prática da virtude, para Aristóteles, é um “modo de vida” que “exige” ter amigos porque sem amigos ninguém escolheria viver (EN VIII, 1, 1155 a 5). É com os amigos e para os amigos que praticamos atos virtuosos em primeiro lugar. Podemos afirmar que para viver com virtude no sentido mais amplo, viver de maneira virtuosa, completa, é necessário ter amigos, o que parece reforçar a idéia de que falamos antes: que a amizade representa a realização da essência humana. Ora, se ele [o homem] vivesse como um solitário a existência lhe seria dura, pois não é fácil a quem está sozinho desenvolver uma atividade contínua; [...] mas com os outros e visando aos outros, isso é mais fácil (EN IX, 9, 1170 a 5-6). O Estagirita apresenta, no mínimo, a dificuldade, senão a impossibilidade de ser virtuoso, de ser feliz sem a companhia dos amigos. Em isolamento não é fácil praticar a virtude. É na percepção da conduta virtuosa do amigo que o virtuoso “vê” a sua própria virtude, e tem consciência de ser virtuoso. Com amigos é mais fácil também viver a vida teorética.

Se aqui assinalamos a dificuldade, há de fato momentos em que Aristóteles insiste na necessidade da amizade. Para ser feliz há que se ter amigos e só pode ser feliz quem for virtuoso, por isto só é possível “viver” a própria virtude, isto é, ser feliz, quem possuir amigos. Para ser feliz o homem necessita, portanto, de amigos virtuosos (EN IX, 9, 1170 b 19). Para Aristóteles não é possível ser virtuoso sozinho e não é possível ser feliz sem amigos. Essa dimensão ontológica da amizade, já mencionada anteriormente, é de que precisamos dos outros, e de uma determinada vinculação com estes outros para nos conhecer, para sermos indivíduos, para vivermos agradavelmente. É através do amigo e com ele que podemos nos conhecer melhor. Quando queremos “ver” nosso próprio rosto, olhamos o rosto do amigo. Não podemos ver o próprio rosto a não ser assim. Quando desejamos contemplar nosso próprio rosto, miramo-nos em um espelho, sempre que queremos ver nosso caráter ou personalidade, podemos reconhecê-los olhando para um amigo; porque um amigo é um segundo eu (MM II, 15).

Por sua vez, na amizade perfeita, cada um é bom em si mesmo e para o seu amigo; é útil para si e para o outro; e dá prazer para si e para o amigo (EN VIII, 3, 1156 b 12). Contudo, assim como acontece em toda virtude, a utilidade e o prazer não podem ser o motivo da amizade virtuosa, mas deverão ser decorrência e sinais do comportamento virtuoso, da semelhança com o bem.

Mesmo que a amizade fundada na virtude seja a mais excelente forma de amizade, ela não ocorre com freqüência, e quando ocorre tende a ser permanente, até porque cada um encontra no outro todas as qualidades que um amigo deve ter.

Mesmo tendo alguma similaridade com as amizades que buscam o prazer e a utilidade, a amizade perfeita não é com elas confundida. Sinal da diferença é o fato de serem mais instáveis, precisamente porque prazer e utilidade acabam mais facilmente. Ao mesmo tempo, a amizade verdadeira só ocorre entre homens bons, virtuosos; enquanto as amizades baseadas no prazer e na utilidade podem ocorrer com qualquer tipo de pessoa. Em síntese, Aristóteles afirma:

[...] quando o que se leva em mira é o prazer ou a utilidade, até os maus podem ser amigos uns dos outros, ou os bons podem ser amigos dos maus, ou aquele que não é bom nem mau pode ser amigo de qualquer espécie de pessoa; mas por si mesmos, só os homens bons podem ser amigos. Com efeito, os maus não se deleitam com o convívio uns dos outros, a não ser que essa relação lhes traga alguma vantagem (EN VIII, 4, 1157 a 15-20).

Considerando a amizade prazerosa ou útil, todos podem ser amigos de todos, mas a dificuldade está em detectar se o amigo é virtuoso ou não. Devemos considerar que a verdadeira amizade não é atacável pela calúnia, pois a convivência com homens virtuosos possibilita o reconhecimento e a confiança recíproca entre eles. Assim, tempo, convivência, hábito e experiência solidificam a verdadeira amizade.

A distância não rompe a amizade, mas apenas a sua atividade (EN VIII, 5, 1157 b 10). A presença do amigo implica em convívio e este em práticas de atos de amizade. Já a distância prolongada pode levar ao esquecimento. É próprio dos amigos o convívio, e freqüente a intimidade, e esta só é alcançada com o tempo, com a convivência. É na intimidade que se pode conhecer os sentimentos recíprocos (GAUTHIER; JOLIF, p. 671).

Nem sempre é possível “dizer” a amizade. Muitas vezes as palavras são insuficientes para explicar esta experiência humana, como nos Ensaios, de Montaigne (1533 – 1592), nos quais encontramos uma definição do que era sua amizade com Etienne da La Boétie (1530 – 1563): porque era ele e porque era eu (1991, p. 92). Este caráter inefável da amizade de Montaigne parece estar presente também na Ética a Nicômaco, quando seu autor diz que o amigo ama o amigo porque “ele é o que é” (EN VIII, 3, 1156 a 16). Com o verdadeiro amigo não há cálculos e por isto se pode ser o que se é. É na experiência da amizade que podemos nos “mostrar” como realmente somos; que podemos ser autênticos. Ela permite verdadeiramente revelar quem cada um é.

Continuando ainda a compreender a relação entre as formas de amizade, vemos que para Aristóteles as pessoas boas, virtuosas serão reciprocamente agradáveis e úteis. Por isso, o prazer e a utilidade sempre acompanham a amizade baseada na virtude.

A relação de semelhança ou acidente entre a amizade útil e a amizade prazerosa com a amizade baseada na virtude é apresentada por Aristóteles na Ética a Nicômaco. Por sua vez, na Ética a Eudemo, o Estagirita apresenta-as sob a forma de uma homonímia relativa – referência, que consiste no uso do termo amizade em muitos sentidos, embora todos sejam relativos ao sentido primeiro (ZINGANO, 2001-2002, p. 201). Há uma amizade “primeira” (baseada na virtude) e as demais (baseadas no prazer e na utilidade) são consideradas amizades porque, na definição da amizade primeira, também estão contidas as definições dos outros dois tipos de amizade. Como já dissemos, a amizade baseada na virtude também proporciona prazer e é útil.

De forma geral, o conceito de amizade não é para Aristóteles um conceito unívoco nem um conceito equívoco, mas está numa relação de dependência causal, isto é, os diversos significados da palavra philia explicam-se por referência à amizade primeira, fundada na virtude. Esta amizade primeira é em certo sentido a única, mas em outro sentido, o são todas, não como homônimos entre si, nem como se pertencessem a uma só espécie, mas sim, como referidas a uma espécie única (EE, VII, 2, 1236 b 24-26). Como o ser, a amizade se diz em muitos sentidos. Não há uma essência única da amizade, mas um sentido primordial e soberano ao qual se referem os outros (LAMY, 2003, p.1).

Quando Aristóteles analisa e coteja a amizade com o amor diz que o amigo na virtude dá e recebe, numa relação de troca, o que é agradável e bom em sentido absoluto, sendo a amizade uma disposição de caráter que sempre inclui escolha, não apenas a emoção; e o amor é um sentimento, uma afeição, mas a amizade não é só sentimento.

Ora, dir-se-ia que o amor é um sentimento e a amizade é uma disposição de caráter, porque se pode sentir amor mesmo pelas coisas inanimadas, mas o amor mútuo envolve escolha, e a escolha procede de uma disposição de caráter (EM VIII, 5, 1157 b 28-32).

Sentimos amor por seres inanimados, como o vinho, mas não amizade, porque esta envolve reciprocidade e escolha, e a escolha provém de uma disposição de caráter.

Outro aspecto é o fato de a amizade ser “construída” de forma gradativa. Mesmo que o número de amigos deva ser o maior possível, importa que se possa conviver, pois o amigo não abandona o amigo na tristeza, desfruta da felicidade do amigo e tenta preservar o amigo das dores. Para se alcançar esta intimidade leva-se tempo, exige-se experiência. Por outro lado, só com um número reduzido de pessoas pode haver uma intimidade necessária para a verdadeira amizade. [...] para os amigos também existe um número fixo – talvez o maior número com que se possa conviver (pois essa, segundo verificamos, é considerada como a própria característica da amizade) e é evidente que não se pode conviver com muitas pessoas e dividir-se entre elas (EM IX, 10, 1171 a 01-04). A virtude só pode se realizar entre poucas pessoas considerando-se a necessidade de convivência. Mesmo as amizades baseadas na utilidade e no prazer só serão possíveis para cada um com um pequeno grupo de pessoas.

Retomando a questão agonística, vale lembrar que o Estagirita afirma que a comunidade – homonoia é formada por pessoas diferentes e desiguais que se relacionam (EN V, 5, 1133 a 18) e que a amizade é igualdade (EN VIII, 5, 1157 b 37), isto é, há necessidade de igualdade para a amizade. A amizade pressupõe e leva à igualdade (EN VIII, 7, 1158 b 28); até as pessoas desiguais podem ser amigas e assim podem ser “igualizadas” (EN VIII, 8, 1159 b 2-3). O igualar-se propicia o nascimento da polis, do comum. A troca econômica, como já enfatizamos, é realizada através do dinheiro, mas a igualação e a emulação política, não econômica, acontece pela amizade. Esta igualação pela amizade não faz com que os amigos se tornem os mesmos, que sejam iguais entre si, mas sim que se tornem parceiros igualmente rivais no comum, na comunidade. O espírito agonístico perpassa as relações de amizade no amor, nos jogos, nos tribunais, na política, ressaltando a presença do agon, da rivalidade dos homens livres.

A vida em comum, na polis, é a condição material para o alcance da felicidade, e é a amizade que faz com que se alcance o comum, a vida em comunidade, vivendo uma vida agonística. Somente neste agon é que pode ocorrer a experiência mais profunda de amizade, a mais virtuosa. São os seres diferentes que vivenciam a amizade baseada na virtude. Esta amizade não poderia acontecer entre desiguais por natureza (senhor e escravo, pai e filho, marido e mulher), mas acontece entre os iguais (os cidadãos), que no entanto são diferentes, são plurais.

Mesmo que os que ocupam posições de poder procurem amigos que lhes causem prazer, ou então outros amigos que lhes sejam úteis (EN VIII, 6, 1158 a 27-28), Aristóteles insiste em dizer que o homem bom é ao mesmo tempo útil e agradável (EN VIII, 6, 1158 a 34). A diferença neste caso se torna empecilho para uma amizade perfeita entre quem exerce mando e quem é simples cidadão. Assim a diversidade de relações humanas também define as relações de amizade. Uma pessoa mais virtuosa pode ser amiga de uma menos virtuosa; uma que proporciona mais prazer de uma que proporciona menos, e uma que é mais útil de uma menos útil. Ressaltamos, porém, que para Aristóteles a verdadeira amizade, a amizade plena, acabada, só acontece entre os bons, os virtuosos, os iguais, pois [...] ambas as partes recebem as mesmas coisas uma da outra e deleitam-se uma com a outra ou com as mesmas coisas [...] (EN VIII, 6,1158 a 19).

Neste contexto, Aristóteles apresenta a distinção entre amizades baseadas na igualdade e amizades baseadas na desigualdade, e é na amizade causada pela utilidade que ocorre com mais freqüência a relação entre os desiguais.

Há amizades que contêm uma vinculação de superioridade, uma desigualdade: pais e filhos; idoso e jovem; marido e mulher; governante e súdito (EN VIII, 7, 1158 b 25). Além disso, há a relação entre senhor e escravo. Sobre a possibilidade de amizade entre eles, Aristóteles diz:

Enquanto escravo, pois, não se pode ser seu amigo, mas enquanto homem isso é possível, pois parece haver uma certa justiça entre um homem qualquer e outro homem qualquer que tenham condições para participar de um sistema jurídico ou ser partes num ajuste: logo, pode haver amizade com ele na medida em que é um homem (EN VIII, 11, 1161 b 5-10).

As amizades entre desiguais diferem entre si, mas têm em comum a necessidade de haver proporção e correspondência: [...] isto é, o melhor deve receber mais amor do que dá, assim como ser mais útil [...] (EN VIII, 7, 1158 b 25). Mas a amizade, mesmo entre desiguais, só pode acontecer entre seres da mesma espécie. Para o amigo desejar “... bem ao seu amigo por ele mesmo, este deve continuar sendo a espécie de ser que é; portanto, é a ele, na medida em que continua sendo um homem, que o outro deseja os maiores bens” (EN VIII, 7, 1159 a 10). Para Aristóteles não é comum alguém desejar os maiores bens aos outros (como se tornar deus), pois assim poderia perder o amigo. Somente ao amigo, como homem, que desejamos os maiores bens.

Lembrando o que apresentamos no primeiro capítulo sobre as relações que constituem as famílias, podemos acrescentar que as relações também definem os três tipos de poder ou autoridade, como também relações diferenciadas de amizade, a saber:

a – o poder doméstico do marido sobre a mulher, sendo esta naturalmente dominada pelo homem sem possibilidade de alterar esta situação. Mas isso não impede que Aristóteles fale de uma amizade de mútua ajuda entre homem e mulher;
b – o poder paterno: exercido sobre seres livres e desiguais – pai sobre o filho. O poder é exercido em benefício do filho. Enquanto a criança não se tornar um adulto o pai exerce sobre ela um poder absoluto;
c – o poder despótico: exercido sobre seres não livres – senhor sobre o escravo.

Mesmo que Aristóteles reconheça que seja possível a amizade neste âmbito privado, entende-se melhor porque a amizade verdadeira, para Aristóteles, somente é possível na polis, entre cidadãos. Mas por que só na polis? No caso de homens e mulheres, pais e filhos, livres e escravos, a amizade que pode haver será uma amizade semelhante à amizade perfeita, mas nunca poderia chegar à amizade primeira, pois só na polis, e entre os cidadãos, é possível o exercício da virtude e a realização maior da natureza humana.

Os verdadeiros amigos, os que são amigos sendo virtuosos, não reclamam do que é igual ou desigual entre eles. Para eles o mais importante é a virtude, o que é bom para o outro. Mesmo com as desigualdades materiais que possam surgir, eles não as levam tão em conta. Aliás, a amizade baseada na utilidade é a que ocasiona maiores queixas, porque cada um quer utilizar o outro para seu benefício e reclama que não recebe o que necessita e merece (EN VIII, 13, 1162 b 17-19).

Na Ética a Eudemo, Aristóteles enumera os bens que o homem deseja para o amigo, para si ou que deseja partilhar com o amigo: acontecimentos felizes, a própria existência, a companhia mútua, a colocação em comum das dores e alegrias (EE VII, 6, 1240 b 9-12).

A amizade fundada na virtude deseja simultaneamente ao amigo e para si mesmo: coisas alegres, sua companhia, dividir os sentimentos e que o amigo exista e viva. É deste modo [...] que até os desiguais podem ser amigos, pois é possível estabelecer-se uma igualdade entre eles (EN VIII, 8, 1159 b 1-3). A amizade acontece para que desiguais se tornem iguais e não para que iguais se tornem desiguais.

É bom lembrar que o Estagirita distingue amizade e benevolência. A benevolência é um sentimento unilateral que necessariamente não exige reciprocidade. Já a amizade exige reciprocidade consciente, uma relação interativa. Posso sentir benevolência por pessoas que não conheço, mas só posso ter amizade por alguém com que eu tenha alguma relação freqüente, alguma intimidade (EN IX, 5, 1166 b 35).

Contudo [...] a benevolência, quando recíproca, torna-se amizade (EN VIII, 2, 1155 b 33). Assim, a amizade pressupõe a benevolência, e esta pode ser considerada um início de amizade, uma amizade inativa, que tem potência para transformar-se em verdadeira amizade, pode se tornar benevolência recíproca. O benfeitor sente amor pelo seu beneficiado, independente de haver possibilidade de retorno do benefício, assim como os artífices por suas obras e o poeta por sua poesia. O benfeitor ama o seu gesto, a sua ação, e ama mais do que é amado (EN X, 7, 1167 b 35).

Ao compararmos, de passagem, a amizade aristotélica com a tradição cristã de amor ao próximo, inclusive ao inimigo, constatamos uma distinção fundamental. Para Aristóteles a amizade só é possível entre poucos e há sempre a necessidade de reciprocidade. Já no amor cristão, este sentimento deve existir entre todos, não havendo necessidade de reciprocidade e até mesmo de conhecimento, isto é, o próximo não tem necessidade de conhecer e retribuir o sentimento. Podemos afirmar, neste caso, que ocorre uma aproximação entre Platão e o cristianismo que não há entre Aristóteles e o cristianismo, pelo fato de se ter em vista uma outra vida e em Aristóteles amizade só envolve seres humanos, e não deuses e homens.

A amizade possui, pois, como características: a benevolência – querer bem o outro e simultaneamente querer o bem para o outro; a reciprocidade; e a consciência deste bem-querer. Este bem-querer vai definir que a amizade é baseada no bem, e não na utilidade e no prazer.

Os homens desejam bem àqueles a quem amam por eles mesmos, não por causa de um sentimento, mas sim por causa de uma disposição de caráter (EN VIII, 5, 1157 b 30). Quem ama um amigo ama o que é bom para si mesmo, porque o homem bom, ao tornar-se amigo, passa a ser um bem para o amigo. Ao mesmo tempo em que ama o que é bom para si, retribui com benevolência, prazer e igualdade, como afirma Aristóteles: [...] porque se diz que amizade é igualdade, e ambas são encontradas mais comumente na amizade dos bons (EN VIII, 5, 1157 b 36-37).

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Fonte:
Hilda Maria Warken: “Significado Ético da Amizade na “Ética a Nicômaco”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. Orientador: Prof. Dr. Selvino J. Assmann). Florianópolis, 2005.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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