Resistência e crítica jornalística em Lima Barreto

Resistência e crítica jornalística em Lima Barreto

O mundo relatado em Recordações do Escrivão Isaías Caminha evidencia a crítica às aspirações do jornalismo praticado no país, no período das primeiras décadas do século XX. Lima Barreto foi um dos mais importantes colaboradores dos periódicos nacionais, tendo seus textos publicados desde veículos pequenos até revistas e jornais de grande monta. Beatriz Rezende e Rachel Valença organizaram, recentemente, o compêndio de todos os textos publicados em jornais pelo escritor-jornalista. As pesquisadoras afirmam que a produção jornalística de Lima é tão robusta e significativa quanto a ficcional, e reforçam o pressuposto de que a temática e/ou o estilo de sua escrita de denúncia estariam fundamentados em apreensões muito específicas da sociedade brasileira de então (orientados, assim, pela prática jornalística). Sendo o ano de 1919 o mais produtivo e, impreterivelmente, o mais significativo em termos de produção – e também de certa maturidade intelectual – toma-se como exemplo comparativo, neste trabalho, a elucidação dos pontos de resistência, ambientação e a temática presentes na escrita comprometida de Lima Barreto.

Aliás, acreditamos que esse caminho deva ser percorrido para resolver a questão em torno das preconizações evidenciadas nos momentos anteriores, isto é, de que um dos atributos da prosa de Lima é justamente o pensamento em torno da literatura e do jornalismo. É importante acrescentar que, de certo modo, como em Corpo-a-corpo, ocorre no momento das produções verificadas uma espécie de “tomada de posição social”, em relação a posturas de matizes beletristas. É evidente que os pontos ressaltados por Sevcenko, em relação à critica mais contundente aos costumes nacionais, se evidenciam em crônicas, comentários e tipos de reportagem em que assuntos tão pontuais – e tão tragicamente ancestrais – como o assassinato de mulheres, a questão agrária, o futebol etc, surgem como emblemas. É prudente salientar aqui, mesmo sem uma visualização mais intensa, que se emoldura, na produção jornalística de Lima, uma forma própria de denúncia e engajamento das questões levantadas, sendo que a delimitação em torno da discussão sobre literatura e jornalismo ganha significações maiores. Em “Quem será, afinal” (ABC, 25/01/1919), Lima Barreto pontua as idiossincrasias do mundo das letras e confronta sua pretensa “loucura” com as precariedades em torno da burocracia estatal, dos modos de vida na cidade e da prática rasteira da produção intelectual. Já aposentado do ministério da guerra, evidencia uma espécie de desabafo:

Os parcos níqueis que a minha aposentadoria rende dar-me-ão com o que viver, sem ser preciso normalmente escrever pelinescas biografias de figurões, para comprar um par de botinas.

Há, por parte do jornalista, a edificação de uma briga, ao se chocar com as normalidades do poder e da intelectualidade vigentes:

Esperava desde muito estes dias de completa liberdade, de independência quase total, para dizer da minha pobreza a franca verdade aos poderosos e ricos que, assim, se fizeram por toda sorte de maneiras, honestas e desonestas.

A partir da apresentação de sua condição, um tanto alijada dos processos de participação cultural, evidencia-se uma série de marcadores expressivos de inquietação: “situação burocrática”, “minha indignação”, “desses fariseus”, “sou tomado por doido”. A temática que o jornalista parece empreender é, necessariamente, uma luta anti-beletrista:

Compreendo perfeitamente esse estado de espírito policial ou costumeiro, à vista da carestia de vida e da necessidade em que está o literato que quer ter fama de não dizer nada, andar bem vestido e fazer parte da corte de algum Cunhambemba político.

Com tal colocação em relação à prática da vida literária nacional, o texto utiliza-se de vozes oriundas do contato irônico do narrador, quando evidencia:

- Este Barreto é louco! Dizem que escreve alguma cousa engraçada...” (...) não me aborreceria com essas considerações a meu respeito se elas não envolvessem duas cousas: a loucura e a calúnia à literatura.

Ou seja, ao mesmo tempo em que se choca com a prática literária vigente, preconiza uma defesa intransigente da literatura. Trata-se, ao que se mostra, de uma demarcação em torno de sua condição mais íntima (o problema com o alcoolismo, com a loucura) para, a partir daí, tecer uma espécie de desabafo áspero à política (“poderosos são governados pelas suas próprias vontades”), reforçar seu estamento de pingente (“meus parentes são sem valimento e os meus amigos são fracos”), tentar expurgar sua frágil existência, numa figuração subjetiva muito próxima do “eu ressentido” de Isaías Caminha (“mar de mágoas íntimas em que bacejo”, “respeitem minha desgraça”). Depois de empreender farpas a instituições como a Igreja e o poder militar, estabelece a questão crucial da coluna, ao se perguntar:

- Quem será o maluco? Quem será, afinal? Não há nada como rir-se por último.

É importante dizer que a rebeldia praticada por Lima Barreto se liga à vida cultural e literária do Brasil, no início do século XX. No mais, a escrita se faz em confronto com práticas literárias canonizadas, de certa maneira. Todo o torpor empreendido em “Quem será, afinal?”, uma espécie de grito de revolta com os quadros estabelecidos, ilustra-se em sua prosa de ficção (a indomável exegeta nacionalista do Major Quaresma, a personificação da beleza literária no poeta Leonardo Flores, em Clara dos Anjos, ou ainda, e mais satiricamente, a representação da casta literata como em Bruzundangas (os samoeidas)). Voltando à decodificação da resistência em Lima Barreto, é de suma importância ressaltar que a oponência possivelmente se dá em alguns pontos essenciais. De acordo com Osman Lins (1976)

Os seus pontos de referência, segundo indicam as alusões feitas em várias oportunidades e a sua prosa mesma, são Machado de Assis e Coelho Neto. Neste último, o “culto ao dicionário” tem o ar de uma evasão, um modo hábil de conquistar o aplauso benévolo “dos grandes burgueses embotados em dinheiro.

Em outro momento, Lins identifica a cisão entre duas escritas opostas:

Jamais incide [a prosa de Lima Barreto] no oco ornamentalismo de seu contemporâneo Coelho Neto, contra quem seguidamente arremete: “O Senhor Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual”. “Não posso compreender que a literatura consista no culto ao dicionário”.

De novo, a literatura. Tal entidade surge forte na maioria dos casos, a reforçar, inclusive, o processo de ambientação, no qual seus personagens estão imersos. Osman Lins, em uma espécie de proposição metodológica e ensaística, busca na prosa de Barreto uma baliza interpretativa das mazelas pessoais e biográficas que percorrem sua escrita.

Em “Problema Vital” (Revista Contemporânea, 22/2/1919), Lima Barreto fala novamente do fazer literário. Entretanto, há uma mudança de foco, e seu texto funciona como uma espécie de crítica literária de uma obra seminal de Monteiro Lobato, para traçar um diálogo muito representativo.

O Senhor Monteiro Lobato com o seu livro Urupês veio demonstrar isso [independência e autonomia literárias]. Não há quem não o tenha lido aqui e não há quem o admire. Não foi preciso fazer barulho de jornais para o seu livro ser lido. Há um contágio para as boas obras que se impõem por simpatia.

Quando demonstra a força de representação popular em Monteiro Lobato, presente no livro Urupês ou quando discorda das entrelinhas colocadas pelo escritor paulista no que concerne à higienização dos meios rurais, Lima esclarece, mais do que a discussão em torno dos problemas fundiários nacionais (principal mote ético do livro de Lobato):

Precisamos combater o regímen capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e não ao doutor vagabundo e parasita, que vive na “Casa Grande” ou no Rio ou em São Paulo. Já é tempo de fazermos isto e é isto que eu chamaria o “Problema Vital”.

Rivalizando com a questão higienizadora , presente nas entrelinhas de Urupês, Lima Barreto diagnostica uma simbologia bem maior e mais complexa: a concentração de terras. Nessa conversa desmedida com Monteiro Lobato, desenha-se um espaço de diálogos, numa espécie de conluio estabelecido pela corrente ética que os persegue.

Onde está o remédio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e modos de fazer desaparecer a “fazenda”.

A identificação no aspecto literário surge na análise temática de Urupês:

O seu livro é uma maravilha nesse sentido, mas o é também em outro, quando nos mostra o pensador dos nosso problemas sociais, quando nos revela, ao pintar a desgraça das nossas gentes roceiras, a sua grande simpatia por elas. Ele não as embeleza, ele não as falsifica; fá-las tal e qual.

Em Lima Barreto
, a crítica à falsificação, à mistificação, ao beletrismo são componentes de forte teor elucidativo. Como na prosa memorialística empreendida em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o jornalismo também se finca como estrato de verificação do ato da escrita, da práxis literária.

A técnica jornalística do período permitiu a Lima, com a confecção de suas crônicas, um papel significativo de divulgação de sua obra. Portanto, a produção livresca de Lima dialoga com as crônicas e escritos em jornal, representando facetas pulsantes de sua preconização em torno da literatura e da vida social. É evidente, porém, que tal prática nem sempre é facilmente passsiva ou dócil, havendo a crítica dirigida às precariedades do mundo do jornal, que naquele momento significa um importante, senão, talvez, o mais importante, veículo de mediação social e cultural, como salienta Sevcenko.

Nesse contexto, a ampla prosa jornalística (crônicas, críticas, reportagens) de Lima Barreto sintetiza, de algum modo, as características de resistência e solidariedade, posto que a atividade jornalística permite ao escritor desvelar as nuances mais esquizofrênicas da sociedade em transformação, bem como sugerir, dentro do próprio espaço da produção intelectual brasileira, a disputa entre dois mundos instaurados, ou pelo menos, de visões distintas em relação aos processos de incorporações e convívios culturais.Ao enveredar as transformações técnicas oriundas do processo de modernização da empresa capitalista e da urbanização brasileira (sobretudo, o Rio de Janeiro), Sussekind evidencia “uma nova técnica” de representação dos níveis da rua, da cidade, da realidade que se determina pulsante naquele instante. Assim, diz:

Ao lado da tentativa de aproximar a escrita literária da linguagem jornalística, de capturar a velocidade da movimentação mecânica ou a “fiel reprodução da vida” das imagens obtidas pela fotografia e pelo cinematógrafo, de figurar a impressão de aceleração na passagem do tempo que se acentuara desde os anos 80 do século passado, houve outros confrontos menos miméticos entre forma literária e artefatos técnicos modernos.

Mesmo envolto no que se poderia rotular como “fotografia de uma época”, a obra de Lima Barreto, sobretudo a produção jornalística, mostra-se também interpretativa e argumentativa, na medida em que desfoca os níveis de representação apenas velozes. Muitas das inquietações em relação à modernidade, e do amargor estabelecido pelo “jornalista” Lima Barreto, surgem da tensão entre o “avanço vertiginoso do mundo urbano” e os desníveis e segregações sociais pós-regime escravagista.

Então, nas resistências e solidariedades empreendidas por Lima Barreto, há uma análise crítica e áspera ao próprio universo jornalístico. Em “As pequenas revistas” (26/4/1919), diz:

Nessa questão de publicidade periódica, então, nós, brasileiros, até hoje não nos podemos emancipar de certas crenças de cinqüenta anos passados (...) ora, acontece que os quotidianos respeitáveis têm mais que fazer do que se preocupar com sonhos e outras maluquices (...) entretanto, até hoje, uma grande revista não se pôde manter no Rio e as pequenas que aparecem têm de levar uma vida precária e contrafeita, pois o público não as compra e não as toma sério.

Para Candido (2006), no ensaio “Os olhos, a barca e o espelho”, a condição biográfica de Lima Barreto, em seus escritos romanescos advém, justamente, de sua produção periodística e íntima, na medida em que aplica os componentes pessoais e biográficos que empreende em sua ficção. Nesse sentido, o fazer jornalístico de Lima Barreto está atrelado ao componente constitutivo de “espírito” sobre o qual falava Sevcenko:

Essas “questões particulares” expostas com “espírito geral” exprimem o ritmo profundo da escrita de Lima Barreto, a sua passagem constante da particularidade individual para a generalidade da elaboração romanesca (e vice-versa), que importa numa espécie de concepção do homem e do mundo, a partir de um modo singular de ver e sentir.

A sujeição identitária de Lima Barreto às mulheres, aos pingentes, às massas operárias ou ao amplo leque de atores dos subúrbios é explorada nos diários íntimos e nos textos jornalísticos, numa concepção altamente vinculada às pertinências de sua obra contística ou romanesca. De acordo com Candido

Para Lima Barreto a literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis. Antes de mais nada, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e as idéias do escritor, da maneira mais clara e simples possível.

Nesta concepção empenhada, devido às circunstâncias de sua vida, que justapõe os problemas pessoais com os códigos sociais mais veementes, a análise dos textos jornalísticos e íntimos evidencia, para Candido, a busca pulsante, na prosa de Lima, em relação ao empenho no ato da escrita e da idéia fundadora de literatura:


A literatura, encarada como vida na qual a pessoa se realiza, parece então substituto de sentimentos e experiências, e este lado subjetivo não se destaca de outro, que é o seu efeito e o seu papel fundamental: estabelecer comunicações entre os homens.

É por meio da constatação de Candido, que se podem identificar “As escoras sabichonas” (4/1919), com a polarização simples e exata de seu entendimento de literatura e verificar a crítica à nomeação do doutor Aluísio de Castro à Academia Brasileira de Letras, quando pontua todo o texto com referências irônicas aos letrados, ao proferir: “medalhão”, “Jose Bonifácio do Largo de São Francisco”. “Ah, as letras! Todos as desdenham e todos querem a glória que elas dão”, para no fim resumir sua opinião sobre a nomeação de Castro: “Todas essas reflexões [acerca do mundo das letras] nos chegam para dar notícia do recebimento do Senhor Aluísio no albergue intelectual da Praia da Lapa. Nós, verdadeiramente, não lhe lemos o discurso, nem o de seu paraninfo”. (Barreto, 2004, p.512).

Partindo da preconização que Candido estabelece sobre a concepção de escrita em Lima Barreto e utilizando-se do que até aqui foi mostrado em torno da produção de Lima, cabe agora enfrentar tais posicionamentos textuais e emblemas identificados na obra (e na vida) do escritor e jornalista carioca em João Antônio (no percurso de sua obra e, mais especificamente, no corpus Corpo-a-corpo).

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Fonte:
Cláudio Rodrigues Coração: “REPÓRTER-CRONISTA: JORNALISMO E LITERATURA NA INTERFACE DE JOÃO ANTÔNIO COM LIMA BARRETO”. (Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em Comunicação na Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – Área de concentração: Comunicação Midiática, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões). Bauru, 2009.

Nota
:
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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