Subúrbio como o avesso urbano



Lima Barreto: crítica social e combate

Subúrbio como o avesso urbano

Municipalidade de todo o mundo constroem casas populares; a nossa, construindo hotéis chics, espera que, à vista do exemplo, os habitantes da Favela e do Salgueiro modifiquem o estilo de suas barracas. Pode ser... Lima Barreto

Conforme expusemos no desenvolvimento deste trabalho, o subúrbio exerce um papel preponderante na produção de Barreto. Muitos críticos e apreciadores de sua obra o apontam como o responsável por trazer à cena literária brasileira o traçado intricado das ruas dessa parte esquecida da cidade, a exemplo do que um de seus mais importantes especialistas, Astrojildo Pereira, apontou e registramos no primeiro capítulo. Este também é o caso, por exemplo, do contista e jornalista João Antônio, que assim afirmou a respeito da obra do escritor carioca: “Lima foi o responsável pela entrada do povo urbano, enquanto massa, volume e alma, no território da literatura brasileira” (ANTÔNIO, 1993, s/p.).

Esse pioneirismo barretiano se deve a duas condições particulares de sua produção: falar a partir deste lugar social e depreender o humanismo latente da população que o habita. Se considerarmos os seus conselhos a jovens escritores, presentes em suas correspondências, uma de suas principais sugestões era a necessidade de retratar a ambiência próxima, nada mais natural que em seu próprio exercício de escrita ele priorizasse tal condição.

Dessa maneira, o olhar de Barreto sobre o subúrbio revela uma apreensão rica e multifacetada, pois tanto aponta os costumes simples e a solidariedade entre seus habitantes quanto discorre a respeito da precariedade das ruas, casas e barracos, as intrigas entre os moradores e a ausência quase total do Estado enquanto responsável por prover melhor infra-estrutura para esses arredores, ainda que seus residentes paguem impostos para o cumprimento deste papel essencial. De forma alguma podemos pensar em uma postura passiva de Barrreto, assim como já foi demonstrado em diversos momentos deste trabalho. Por outro lado, a vivência dessa realidade permite verificar a excelência de sua apreensão, que capta os pormenores do cenário e do cotidiano do mundo suburbano. Isso pode ser verificado, entre outros aspectos, no romance Clara dos Anjos, onde encontramos uma das mais felizes descrições desse espaço na história literária brasileira:

Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população da cidade, de certo ponto, nonúmero dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, de dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma cousa, para o sustento seu e dos filhos. (BARRETO, 1956i, p. 118)

Não é possível imaginar esta descrição lírica e ao mesmo tempo contundente desse cenário suburbano por parte de quem não o conheça detalhadamente. É interessante verificar como o autor pontua a precariedade da condição de vida desses moradores relacionando-a a falta de um poder público efetivo preocupado com toda a população da cidade. No enfoque ao movimento dos moradores, aos nomes das estações, ao registro dos horários de maior trânsito de passageiros nas estações temos elementos que relevam um apurado registro jornalístico voltado ao levantamento desta realidade.

À parte deste tipo de registro informativo, apreendemos a presença destacada de um humanismo que se sobressai em meio a essas condições adversas, revelando a ruína humana a compor estes bastidores invisíveis ao palco da Avenida Central. Por outro lado, ressaltamos que na citação fica clara a situação de dependência dessa parte da população em relação ao centro da cidade como forma de sobrevivência. Tal perspectiva nos desvela a ocorrência do que Lotman afirma a respeito de uma da possibilidade de duas diferentes semiosferas interagirem, mas não se modificarem. Não é em razão dos suburbanos circularem pela cidade socialmente estabelecida que a realidade de sua condição social se modificará. Cada semiosfera mantém sua devida individualidade.

No mesmo romance, encontramos também o detalhamento sobre os tipos de subúrbios. Haveria os mais remediados, onde se poderia observar uma boa aparência das ruas e das casas. Porém, em sua maioria, as construções são precárias, abrigando moradores subempregados ou sem ocupação. Suas habitações representam o completo avesso da então cidade que se modernizou a todo o vapor, compondo uma semiosfera particular dentro de um mesmo espaço geográfico:

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato. (Idem, p. 115)

Por outro lado, atenta o narrador, quando se verifica uma região suburbana mais bem cuidada, de antemão pode-se suspeitar de que há alguma coisa relacionada a interesses dos segmentos de classe dominante.

Nos subúrbios, há disso: ao lado de uma rua, quase oculta em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, de ar urbano inteiramente. Indaga-se porque tal via pública mereceu tantos cuidados da edilidade, e os historiógrafos locais explicam: é porque nela, há anos, morou o deputado tal ou o ministro sicrano ou o intendente fulano. (Ibidem, p. 193)

Outro aspecto apontado por Lima Barreto refere-se à solidariedade entre os moradores dos subúrbios. Se por um lado a convivência quase conjunta devido às aglomerações, onde chega a viver mais de 10 pessoas dentro de um mesmo cômodo, gera conflitos constantes por pequenos motivos, como uma galinha que sumiu ou desentendimento entre os filhos de diferentes vizinhos, por outro lado, as desavenças são logo esquecidas quando um morador passa por apuros:

A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres. [...] Em geral, essas brigas duram pouco. Lá bem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia. (BARRETO, 1956i, p. 116-7)

Entretanto, o mesmo olhar que delineia a solidariedade entre as classes subalternas depreende a presença de uma hierarquia entre os moradores. É interessante verificar como nessa instância podemos observar a inter-relação de semiosferas atuando em contextos amplamente diferentes. O reflexo do comportamento da classe dominante em separar-se das camadas subalternas pela ostentação revela como não é possível se pensar em culturas díspares convivendo num mesmo espaço urbano sem haver influência. A convivência paralela leva, certamente, ao surgimento de uma nova semiosfera composta de signos e significados correlacionados e permite constatar a formação de uma sociedade mediada pelos valores da elite. Não que a condição econômica dos suburbanos sofra modificações concretas, apenas acusamos a existência de um determinado espelhamento artificial com trânsito de textos ou de sentidos de uma semiosfera a outra, no caso, da zona de inclusão para a de exclusão. Como podemos verificar na crônica “A Estação”,

O brasileiro é vaidoso e guloso de títulos ocos e honrarias chochas. O seu ideal é ter distinções de anéis, de veneras, de condecorações, andar cheio de dourados, com o peito ‘chamarré d’or’, seja da Guarda Nacional ou da atual segunda linha. Observem. Quanto mais modesta for a categoria do empregado – no subúrbio pelo menos – mais enfatuado ele se mostra. Um velho contínuo tem-se na conta de grande e imensa coisa, só pelo fato de ser funcionário do Estado, para carregar papéis de um lado para outro; e um simples terceiro oficial, que a isso chegou por trapaças de transferências e artigos capciosos na reformas, partindo de ‘servente adido à escrita’, impa que nem um diretor notável, quando compra, se o faz, a passagem no ‘guichet’ da estação. Empurra brutalmente os outros, olha com desdém os mal vestidos, bate nervosamente com os níqueis... A sua pessoinha vaidosa e ignorante não pode esperar que uma pobre preta velha compre uma passagem de 2a. classe. Tem tal pressa, a ponto de pensarmos que, se ele não for atendido logo, o Brasil estoura, chega-lhe mesmo a esperada bancarrota... (BARRETO, 1956j, p. 150-151)

Identificamos que esse tipo de repercussão onde se comprova a submissão dos moradores de subúrbios a valores de ostentação equivocados e alienantes era vista por Lima Barreto como um dos grandes entraves para a conscientização de si mesmos a respeito da situação de exploração constante em viviam.

Por último, focalizamos determinado momento da obra barretiana em que há o cruzamento entre as esferas da cidade e da zona de exclusão num mesmo espaço. Diferentemente do subúrbio, separado da cidade pela distância, em Clara dos Anjos localizamos a apreensão de um contexto que coloca em situação de paralelismo urbano essas duas instâncias drasticamente diferentes. Atenta-se como mesmo no espaço socialmente legalizado, o centro da metrópole, é possível depreender a existência de resquícios de bolsões de misérias, mesmo diante de todo o cuidado da edilidade em dirimir essa população incômoda do cenário da nova capital federal. Em termos cênicos e pela proximidade com o procênio da Avenida Central, esse bolsão de miséria residual equivale à “coxia”. Distante o suficiente para não ser visto. É possível verificar que ainda que uns poucos representantes da miserabilidade social consigam ainda morar no centro, suas condições de sobrevivência desmentem cabalmente qualquer vitória plena da transformação urbana do Rio de Janeiro para o lado desfavorecido economicamente:

Saiu [Cassi] e, a fim de não ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o Largo de São Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se originam da Rua da Misericórdia e vão morrer na Rua Dom Manuel e Largo do Moura. Penetrou naquela vetusta parte da cidade, hoje povoada de lôbregas hospedarias, mas que já passou por sua época de relativo realce e brilho. Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa e enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade à parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade. Escondiam, na sombra daquelas betesgas coloniais, nas alcovas sem luz daqueles sobrados, nos fundos caliginosos das sórdidas tavernas daquele tristonho quarteirão, a sua miséria, o seu opróbrio, a sua infinita infelicidade de deserdados de tudo deste mundo. Entre os homens, porém, ainda havia alguns com ocupação definida; marítimos, carregadores, soldados; mas as mulheres que ali se viam, haviam caído irremissivelmente na última degradação. Sujas, cabelos por pentear, descalças, umas, de chinelos e tamancos, outras. Todas metiam mais pena que desejo. Como em toda e qualquer seção da nossa sociedade, aquele agrupamento de miseráveis era bem um índice dela. Havia negras, brancas, mulatas, caboclas, todas niveladas pelo mesmo relaxamento e pelo triste fado. (BARRETO, 1956i, p. 171)

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Fonte:
GUTEMBERG ARAÚJO DE MEDEIROS: “Urbanidade e metajornalismo nas matrizes da Modernidade: memória textual nas produções de Lima Barreto e João do Rio no início do século XX”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da ECA/Universidade de São Paulo - USP, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Ciências da Comunicação, na área de Concentração Teoria e Pesquisa em Comunicação, na linha de Pesquisa Linguagens e Produção de Sentido em Comunicação, sob a orientação da Profa. Dra. Terezinha Fátima Tagé Dias Fernandes). São Paulo, 2009.

Nota
:
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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