Alguns aspectos do autoritarismo em "A rosa do povo"


Alguns aspectos do autoritarismo em A rosa do povo: o permitido, o proibido e o indizível ‘na praça de convites’

No capítulo anterior, ressaltamos, por meio de breve levantamento da fortuna crítica de A rosa do povo, que a história brasileira dos anos 30 e 40, apesar de considerada um elemento fundamental na constituição do livro, não é, até onde pudemos observar, discutida no interior dos textos que se propõem a analisá-lo. Cremos que estudos em pormenor desta temática não foram realizados por razões intrínsecas à configuração radical e crítica dos poemas, as quais não puderam ser debatidas também devido às soturnas condições de recepção que pairaram sobre os pesquisadores brasileiros, desde o lançamento do livro, em 1945, até final dos anos 80.

Defendemos, portanto, que o livro de Drummond, escrito como obra de resistência a uma dada situação política brasileira e internacional, acaba por se tornar uma obra “perigosa” para além de seu momento de escrita, uma vez que os pontos nevrálgicos nele presentes, —como a injustiça, a melancolia, a modernidade conservadora, o silenciamento, a solidão do mundo capitalista — continuaram latentes quase vinte anos depois. Em suma, os estudiosos da obra lidaram com uma matéria elaborada de tal forma que sua crítica à condição humana de seu tempo, no caso, aos processos autoritários do Estado Novo, se reatualiza e se dinamiza frente ao igualmente autoritário Golpe Militar de 64, que vigorou, oficialmente, até 1985.

Portanto, não parecem ser casuais os debates específicos sobre o tema, que começam a se processar mais sistematicamente a partir dos anos 90. Em consonância com esses estudos mais recentes, o presente capítulo pretende, adentrando a obra, levantar alguns dos traços expressivos da tematização do autoritarismo.

De modo geral, percebemos no conjunto dos poemas dois grandes movimentos reflexivos do sujeito lírico: o primeiro — explicitamente perceptível nos conteúdos de alguns poemas — é a tentativa de dialogar com questões prementes de seu contexto histórico e que foram alçadas à esfera pública, como a Segunda Guerra Mundial ou o nazismo e o fascismo. Exemplo da tematização aparece no poema “Notícias”:

Entre mim e os mortos há o mar
e os telegramas.
Há anos que nenhum navio parte
nem chega. Mas sempre os telegramas
frios, duros, sem conforto.

Na praia, e sem poder sair.
Volto, os telegramas vêm comigo.
Não se calam, a casa é pequena
para um homem e tantas notícias.
[...]

Outro exemplo da exposição da história aparece no poema “Nosso tempo”, em que se observa uma reflexão agônica da condição dos seres humanos, construída sob uma compreensão que vai em sentido radicalmente diverso ao do discurso laudatório e ideológico do tempo ufanista do Estado Novo. Este encontra-se fundamentado em uma crença no esforço individual, no progresso da ciência, na propriedade privada, na estratificação social, amparada por um sistema de acumulação de renda que impede à grande maioria da população brasileira o direito à participação mais igualitária de riquezas.

Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
[...]

O poema apresenta imagens que constituem um pólo negativo e, portanto, crítico, frente à ideologia capitalista, apontando uma vida social marcada por impasses, fissuras sociais e individuais, divisão de classes, descompasso brutal de direitos, graves problemas que, no discurso oficial, aparece friamente como uma nação homogênea rumo à felicidade futura.

Em “Carta a Stalingrado”, temos outro exemplo de tematização explícita da história, centrada na intenção participativa do sujeito lírico e elaborada através de um elogio à cidade russa, que resiste à invasão alemã durante a Segunda Guerra Mundial:

Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Suas referências diretas ao contexto de produção se fazem presentes não apenas no título, mas também no diálogo que o sujeito lírico instaura com Stalingrado, destinatária e, por conseguinte, interlocutora de sua mensagem .

Em outro poema, “O medo”, encontramos — se comparado aos dois poemas anteriores — um enfoque que não apresenta referências diretas ao contexto histórico:

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
[...]

A partir do título, poderíamos supor que o poema se debruça, por assim dizer, sobre uma temática subjetiva, relativa, dentre outros termos modalizadores; porém, seus versos dizem de sujeitos esfacelados em sua constituição; trata-se de sujeitos (no plural mesmo) cujo significado caminha em sentido diverso de uma expectativa de coletividade. A pluralidade que marca o pronome ‘nós’ ao qual o sujeito lírico se insere, no entanto, pouco aponta para uma coletividade; refere-se, antes, a uma massa ‘moldada’, de fora para dentro, pelo medo.

Nesse sentido, seria ingênuo não perceber que a constituição dessas pessoas que formam o nós indicado pelo sujeito lírico se situa no tempo e no espaço e que, portanto, o poema faz referências diretas à história. Antonio Candido, em breve texto, intitulado “Fazia frio em São Paulo”, tece considerações gerais à contraditória relação de Drummond e outros intelectuais tidos, em certo sentido, de esquerda com o governo de Vargas. Interessa-nos aqui, contudo, uma referência ao primeiro contato do crítico com o escritor e uma possível motivação histórica para a gênese deste poema. Veremos mais adiante que, pelo contrário, poemas como “O medo”, segundo nossa hipótese, estão impregnados de historicidade, não em uma escala quantitativa, de mais ou menos imagens e referências diretas em relação a “Nosso tempo” e “Carta a Stalingrado”, por exemplo, mas pelos meios em que se dão suas configurações.

Note-se que houve, ao contrário dos demais poemas, um trabalho que não tematiza publicamente seu assunto mais visível em uma primeira leitura; sua elaboração se dá por meio de entrelinhas, em um jogo meticuloso de alguém que pode ser punido ou entregue não por suas ações, mas apenas por suas palavras. Trata-se de um recuo no traço “comunicativo”, um recurso de linguagem estratégica por meio de um necessário silenciamento, praticado conscientemente, posto que a repressão ao direito de expressão, à crítica a relações humanas pobres, marcadas por medo, ao contrário da guerra e do capitalismo, não recebeu do Estado autoritário o aval para assunção à esfera pública e, por conseguinte, para ser debatido pela população.

Na verdade, chamamos a atenção para o risco de se denominar de produtos de uma “fase engajada” ou “fase social” os poemas de temática política explícita em A rosa do povo. O problema coloca-se no momento em que o critério conceitual das relações entre lírica e sociedade se define pela atenção dada a certos poemas em detrimento de outros. O critério para esta predileção por determinados textos em vez de outros se define pelo ‘grau’ de exposição temática temporal presente naqueles versos.

Em outras palavras, se um poema trata diretamente ou deixa entrever um assunto da ordem do dia, então é compreendido como “engajado”, “político”, “social” ou, caso contrário, se não tiver relação direta com tais demandas não recebe a mesma atenção. Mas, o que nos convida a pensar são outros poemas do mesmo A rosa do povo, em cujas primeiras leituras não há referências diretas a temas prementes à época, como a Segunda Guerra Mundial. Seria cabível então dizer que se trata também de poemas engajados, políticos, sociais, se os mesmos não tratam de assuntos, ao menos no nível mais aparente, dessas demandas coletivas? Em outras palavras, se “Telegrama de Moscou” e “Com o russo em Berlim” são “engajados”, como compreender criticamente poemas da mesma obra, como “Caso do vestido”, “Morte do leiteiro”, “Áporo”? Ou ainda, que conceitos têm sido dados a tais poemas, que não discutem a temática política premente, da praça de convites, mas a coloca em debate por meio de recursos menos diretos como a alegoria e a ironia?

A variação no tratamento temático, entre assuntos mais diretamente ligados aos problemas da década de 40 com poemas aparentemente menos relacionados a tais questões, mostra que, no lugar de um modo homogêneo de arranjo do material literário, há uma heterogeneidade oscilante, que se distancia da característica de imediatez, de “calor da hora”, presente em alguns poemas. Espécie de mosaico não uniforme de diálogos com os temas lança por terra não a idéia de que a obra seja política, mas deixa em aberto outros aspectos que despertaram apenas menções rápidas em alguns dos estudos mais importantes de sua fortuna crítica.

Ora, é neste ponto de estranhamento, de dificuldade inicial em se encontrar o político, o engajado e o social, que parecem residir outros recursos estilísticos da obra, cujos efeitos não foram ou não puderam ir ao encontro dos horizontes de expectativa da época, seja dos leitores conservadores, seja dos mais críticos.

Trata-se de uma ampla variedade configurativa, perceptível no conjunto dos poemas, que se coaduna com a variedade de conteúdos violentos e conservadores sobre os quais os poemas versam. Nesse sentido, seria possível afirmar que essa diversidade se apresenta como estratégia de sobrevivência, como neste exemplo:

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi
“A flor e a náusea”

Ou em outro poema mais adiante:

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
Cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
“Morte no avião”

O movimento de ruptura, de tematização se amplia — semelhante a Baudelaire, daquilo que tradicionalmente sempre foi considerado ‘poético’. Como entender então os versos que admitem ‘crimes’ de que o sujeito lírico tomou parte senão como uma quebra da moral burguesa e cristã que, desde a Revolução Francesa, serve tão bem à tragédia capitalista?

Um caminho para compreender os impasses do sujeito lírico em seus embates com o autoritarismo seria situá-lo dentro de um ambiente mais amplo, em que pese seu contexto de produção, o qual se afigura elemento sine qua non em sua constituição formal.

Em A rosa do povo, a exploração temática de discursos não-oficiais se apresenta como uma tentativa de problematizar traumas coletivos da sociedade brasileira, quando o Estado propunha justamente o apagamento destes em nome de um projeto nacionalista autoritário; sua abordagem se aproxima do conceito de “indescritível” a que se refere Adorno em suas reflexões sobre a educação após a barbárie do Holocausto.

Mesmo tomando a Revolução de 1930 como uma espécie de primeira ruptura, em âmbito nacional, com o poder político oligárquico, veremos que, embora tenha ocorrido uma troca de comando governamental, a concentração de poder não foi alterada em suas bases. Houve, sim, uma apropriação deste poder, tradicionalmente da oligarquia monocultora, mas por parte de uma burguesia industrial incipiente e de caráter conservador. Ou seja, houve uma “modernização conservadora”, concretizada na intrínseca coexistência de um Brasil agrário, monocultor e exportador com o projeto industrializante de Vargas.

A permanência e manutenção da estrutura de poder pelas oligarquias têm sua razão de ser, provavelmente, no fato de que a industrialização varguista objetivava a criação de alguns pólos industriais em São Paulo e Minas Gerais e em outros uma presença burocrática ostensiva do Estado, como no atual estado Rio de Janeiro (Guanabara à época, capital do Brasil).

Assim, a influência de Vargas nos demais contextos de poder político e econômico se deu não pelo confronto direto com tradicionais grupos dominantes, mas por meio de acordos políticos com as oligarquias. Notamos então um país que, oficialmente, se lança à modernização, mas a promove sobre uma base ambígua quanto a suas injustiças históricas.

Portanto, a concentração de mando e desigualdades sociais permaneceria, mesmo depois da Revolução de 30, como traço fundamental na vida pública do país. As elites brasileiras mantiveram seu status quo, por meio de um projeto nacionalista chefiado pelo presidente Getúlio Vargas que, embora se pautasse por uma modernização da economia através do incremento do parque industrial brasileiro para fins de exportação, não primava por uma sociedade mais justa e livre no campo econômico, social, e político:

O novo regime provisório, uma coalizão de forças díspares que não tinham grande coisa em comum, salvo a sua oposição ao governo destituído, abriu um novo e agressivo capítulo na vida brasileira: dinâmico e professadamente revolucionário, refletia as aspirações das novas forças sociais emergentes. E, todavia, o Brasil permaneceu basicamente conservador [...].

A fim de concretizar seus objetivos, o Estado getulista precisava, no plano ideológico, apresentar justificativas ao imaginário da população brasileira, satisfazendo ao mesmo tempo sentimentos incrustados em nossa classe política e intelectual conservadora, para razão de “certas diretrizes governamentais”, dentre as quais salientamos, dado seu grau de aberração, o projeto de “arianização” da nação, por meio da perseguição aos judeus, negros e orientais. No plano interno, o caráter autoritário do governo de Vargas, em especial o Estado Novo, não é inédito; ele já está presente em toda nossa formação histórica.

Vargas colocará em vigor semelhante estado de atenção, escolhendo determinados grupos como perigo à nação. Para tanto, vale-se da perseguição a estrangeiros, ao mesmo tempo em que cria mitos fundadores capazes de exaltar e explicar nosso passado, e projetos de glória da nação. Assim, não é de se estranhar que estudos “científicos”, como o de Oliveira Vianna, acerca da necessidade de “arianização” da população brasileira, fossem aceitos abertamente pelos meios intelectuais e pelo governo, enquanto vozes discordantes, como Luís Carlos Prestes, um dos líderes da revolta tenentista, fossem presas.

Em um país de maioria absoluta de analfabetos, fator de exclusão não só econômica, mas também política, recém-saído de quatro séculos de escravidão, sem nenhuma preocupação posterior para com o destino de milhões de ex-escravos, os quais, sem direito a terra ou trabalho, continuaram excluídos da riqueza do país, não é de se estranhar a força com que vieram à tona a pesquisa e a comprovação “científicas” de que o país não progredia devido à mistura de “raças”, sobrando a alguns grupos o papel de bode expiatório para o nosso atraso econômico. Segundo Carneiro,

O questionamento da formação étnica brasileira e a busca de uma identidade nacional despertaram o interesse desses estudiosos [como Oliveira Vianna e Gustavo Barroso], que passaram a analisar a questão racial sob diferentes prismas, sendo o negro e o mulato vistos como representantes de uma raça inferior, e a miscigenação o alvo central dos debates. Todos estavam preocupados em formular uma teoria do tipo étnico brasileiro, temática que persistiu nos anos 20, 30 e 40, quando japoneses, alemães e judeus foram também objeto de estudos “científicos”. Esses princípios foram retomados na década de 30, num momento de recuo das idéias liberais e avanço do pensamento clássico da direita européia, racista e imperialista. A burguesia brasileira, aliada à aristocracia cafeeira, encontrou uma saída “racional” para justificar sua dominação estruturada, a partir de 1937, sob a forma de uma ditadura.

Aos inimigos de tais diretrizes e do próprio regime, Vargas reservou a perseguição, a censura, a prisão, por meio de um aparato fiscalizador, publicitário e repressor de que foram “testemunhas” intelectuais como Anísio Teixeira e escritores como Graciliano Ramos. Tratava-se de conceber o Estado como personificação da harmonização coletiva, premissa colocada acima de qualquer interesse individual ou de grupos sociais.

Do ponto de vista da intelligentsia, Vargas conseguiu trazer e formar junto de seu governo um longo arco, agregando desde intelectuais da direita mais conservadora, passando pelos liberais, chegando até mesmo à esquerda, numa estratégia para abafar vozes contrárias. Para tamanha empreitada, designou e confiou enorme poder decisório a Gustavo Capanema, político mineiro, Ministro da Educação e Saúde por cerca de quinze anos, participante ativo do golpe de 1930. O paradoxo dessa aproximação entre intelectualidade e poder autoritário é assim levantado por Schwartzman e outros:

Os anos Capanema ficariam na lembrança como um momento da história republicana brasileira em que política, educação e cultura estiveram associadas de forma singular e notável, e os arquivos revelaram um paradoxo que exigia um exercício cuidadoso de análise e interpretação. Aos decretos e procedimentos afinados com a política autoritária do Estado Novo, sobrepunham-se falas de uma correspondência privada e pessoal de uma intelectualidade de todos nós conhecida, identificada com as causas sociais e de modernização da cultura, e admirada e cultivada como patrimônio cultural e afetivo do país. Como entender que figuras tão ilustres, e de horizontes aparentemente tão abertos, convivessem com políticas de cunho autoritário e repressor [...]? Por um lado, como os arquivos revelam, particularmente na correspondência de Carlos Drummond e Mário de Andrade, esta não era uma convivência tranqüila, mas, ao contrário, cheia detensões e ansiedades.

Como ressalta Schwartzman, as relações entre os artistas e o governo varguista não foram das mais tranqüilas. É necessário pensar que o paradoxo da participação de homens como Mário e Drummond, levantado no trecho acima, deve ser visto como resultante de um regime autoritário, sob o qual não se tem o direito de discordar publicamente ou reagir sem sofrer perseguição e violência de diversas ordens.

No caso de Drummond, a situação parece ficar mais drástica, pois durante suas reflexões e tentativas de encontrar, como atesta seu diário, meios de ação política sobre a vida nacional, mesmo debaixo de censura, o autor demonstra grande desconfiança em relação ao modo de fazer política da própria esquerda brasileira. Assim, em 6 de novembro de 1945, o escritor mineiro, tentando ser despedido de seu cargo de diretor do jornal comunista Tribuna Popular (por discordar do apoio dado pelo PC brasileiro à permanência de Vargas no poder, que seguia a diretriz do PC soviético de apoiar os governos estabelecidos em seus países) escreve em seu diário uma síntese primorosa do desinteresse da classe política brasileira, incluída boa parte da esquerda, para com os reais problemas brasileiros:

Sejamos sinceros. Golpe é uma coisa inconcebível num país de organização política democrática, em que a opinião pública, organizada em Partidos, se manifesta regularmente por meio de eleições e da vida parlamentar. Será o caso do Brasil? O Governo deposto em 29 de outubro era legítimo, resultou de voto popular? Não. Resultou também de golpe, em 10 de novembro de 1937, quando o falso Plano Cohen, brandido pelas autoridades com o maior despudor serviu de pretexto para o fechamento do Congresso, a prisão e o exílio de políticos oposicionistas, a suspensão das eleições presidenciais em que se defrontariam os candidatos José Américo de Almeida e Armando Sales Oliveira, e a implantação do Estado Novo, com Getúlio reinando até agora. Golpe contra golpe, portanto. Se não é modelo a ser enaltecido, é pelo menos compreensível e justificável. Portanto, não vou chorar a queda de Getúlio nem aprovar a linha política do jornal de que sou um dos diretores fantasmas, e que tomou posição contra o afastamento de Vargas. Chega de contemporizar. Quero o meu nome fora do cabeçalho do jornal [...]

Drummond não aceita o projeto nacionalista e autoritário de Vargas, ao mesmo tempo em que percebe que a esquerda brasileira tinha uma práxis política não muito diferente da direita no poder. O “indescritível” adorniano, nos exemplos citados, pode ser entendido como uma experiência social caracterizada pela perseguição a judeus e negros, imposição de valores nacionalistas, controle da imprensa, concentração de renda e destruição da individualidade em nome de um projeto homogêneo: assuntos que não fazem parte do corolário oficial de Vargas. Dentro desse contexto, A rosa do povo se apresenta como uma espécie de contraponto radical a um projeto político modernizador, de base autoritária, extremamente articulado com as elites oligárquicas e a burguesia industrial.

Assim, podemos formular como problema central de nossa pesquisa sobre A rosa do povo a análise e interpretação da tematização e configuração de alguns dos assuntos “indescritíveis”, de alto grau traumático para a sociedade brasileira, que não fazem parte do projeto nacionalista de Vargas, a fim de compreender em que medida e por quais meios a lírica drummondiana, nesta obra, se configura em um discurso de resistência, uma vez que a constituição do sujeito lírico é marcada por inclinações de um projeto estético que foge às expectativas de seu contexto cultural.

A relevância da pesquisa está, portanto, na reflexão sobre essa problemática, objeto do presente trabalho, a qual pode constituir uma contribuição para o entendimento da produção de Drummond e o reconhecimento de sua específica postura de contrariedade ao meio intelectual e social em que vivia.

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Fonte:
Cristiano Augusto da Silva Jutgla: “Lírica e autoritarismo em A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade”. (Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Prof. Dr. Jaime Ginzburg). São Paulo, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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