Álvares de Azevedo: Uma literatura cindida no Romantismo
Manuel Antônio Álvares de Azevedo ocupa uma posição singular no Romantismo brasileiro, graças a uma literatura sui generis. Dois motivos contribuem para tanto: o tratamento conferido à questão nacionalista e a exploração de um recurso ao qual o autor denominou “binomia”.
Nascido
É durante esse período que “Maneco” (como era tratado pelos íntimos) lê e escreve abundantemente. Consta que, ao mesmo tempo em que atingia notas excelentes nos exames jurídicos, lia Byron, Hugo, Musset e Shakespeare no idioma original, além de produzir estudos literários e filosóficos variados e escrever sua obra em verso e
Confirmando a concepção romântica de gênio, Azevedo escrevia com a sofreguidão de quem previa morte próxima, como afirma Candido (1975): “ a febre de escrever atirou-o atabalhoadamente sobre o papel, como se as palavras viessem por demais imperiosas; grande número dos seus escritos manifestam o fluxo incontrolado que, para o Romantismo, era o próprio sinal da inspiração.” (CANDIDO, 1975, p.187).
Com efeito, Álvares de Azevedo demonstrava freqüentemente pressentimentos mórbidos, que expressava aos amigos e em cartas endereçadas à mãe e à irmã. Dois colegas quintanistas do curso de Direito haviam falecido em anos sucessivos e a ele coube pronunciar os discursos fúnebres. Azevedo teria escrito na parede do quarto os anos de 1850 e 1851, seguidos dos nomes dos colegas falecidos e reservando o ano de 1852 para ser preenchido depois com o seu próprio.
O poeta fez parte da chamada “segunda geração romântica”. Tristeza, ceticismo, ironia e obsessão pela morte constituem a temática abordada pelos ultra-românticos, distinta da geração anterior, que exaltou principalmente a nação e o indígena, sendo Azevedo sempre apontado como seu maior representante, embora a morte precoce o tenha impedido de amadurecer a genialidade. Candido (1975) a ele se refere como “personalidade literária mais rica da geração” (CANDIDO, 1975, p.178) e, em outro momento, “figura de maior relevo do nosso ultra-romantismo”. (CANDIDO, 1975, p.180).
As notas biográficas são importantes para compreender os motivos pelos quais se considera Álvares de Azevedo como figura contraditória na literatura brasileira. Existe uma preocupação em associar a produção literária azevediana à personalidade do poeta, que seria constituída simultaneamente por diferentes facetas. Assim, o poeta sentimental, dedicado à família e aos estudos conviveria com o poeta irônico, devasso e alienado. A esse respeito, Ramos (1979) afirma que a discussão sobre a (in)coerência entre vida e obra do poeta remonta ao século dezenove, quando o crítico Sílvio Romero escreve:
“Formaram-se logo dois partidos: uns afirmavam que o moço escritor era um espírito meigo, delicado, virgem, puro e singelo, não conhecendo as diabruras e irregularidades da vida senão pelos livros dos poetas e romancistas românticos. (...) Outros, julgando-se muito desabusados, tombam para o extremo oposto. Pintam o autor da Noite na Taverna como um monstrengo moral, um ser depravado, corrupto, ébrio, devasso, metido em extravagâncias de toda a casta. (...) Tudo isso é falso, falsíssimo. Nem anjo, nem demônio.” (ROMERO, 1949, apud RAMOS, 1979, p.127).
Essa antinomia é mais acentuada através da leitura do Prefácio à segunda parte da Lira dos Vinte Anos,
“Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico.Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei; e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: - a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.” (AZEVEDO, s/d, p.38)
A título de comparação, citamos uma estrofe de um poema pertencente à primeira parte da Lira, e outra de um poema da segunda parte:
Primeira parte: Soneto
Pálida, à luz da lâmpada sombria
Sobre o leito de flores reclinada
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia! (AZEVEDO, s/d,p.22)
Segunda parte: É ela! É ela! É ela! É ela!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado! (AZEVEDO, s/d, p.60)
Os trechos supra-citados confirmam que Azevedo vai do sublime ao grotesco, da idealização à realidade, “do mais ingênuo lirismo ao mais desabusado erotismo. É zombeteiro e irônico, alegre e triste, vibrante e meigo, sensual e pudico. Devemos-lhe a introdução do humor na poesia brasileira”. (CAVALHEIRO, s/d, p.86)
Acerca da exigência em atrelar a biografia e a produção literária de Álvares de Azevedo, dois fatores devem ser ressaltados: em primeiro lugar, sabe-se que na vida provinciana da São Paulo da época em que vivia o poeta, o tempo ocioso era grande, fazendo com que o mesmo dedicasse muitas horas à leitura e à escrita. Como bem afirma Rocha (1971, p.14), sua vida intelectual foi breve, mas intensa, iniciando-se antes dos dezoito anos e concluindo-se aos vinte anos e sete meses. Conseqüentemente, pouco tempo restaria para que ele desfrutasse da vida boêmia, que apareceria em seus livros como reflexo das leituras de Byron, Musset e outros. É importante lembrar que a vida monótona daquela cidade foi tema de cartas à família, gerando o sentimento de “spleen”, abordado em seus poemas e na ficção, consolidando assim a fantasia romântica do herói entediado com a realidade circundante.
Em segundo lugar, a busca de veracidade ou não acerca de um possível comportamento libertino de Álvares de Azevedo não pode estar associada ao valor que se atribui à sua obra, cuja qualidade não pode ser medida pelas categorias reducionistas de “anjo” ou “demônio”. A esse respeito, cabe citar as palavras de Candido: “ O fato de Álvares de Azevedo ter sido bem comportado ou devasso nada tem a ver com o imperioso jato interior que o propelia e que, brotado na zona escura da alma, se clareava depois por uma lucidez intelectual raramente encontrada em nossa literatura.” (CANDIDO, 1975, p.181)
Em Macário, a teoria da binomia aparece na construção dos personagens (Macário e Penseroso). No entanto, ela também é evidenciada no âmbito formal da obra, pelo confronto de gêneros distintos. Classificado geralmente como drama, Macário não é composto apenas por diálogos próprios desse gênero discursivo, mas seu prefácio (“Puff”) é um ensaio (prosa, portanto) dirigido ao leitor e contendo as idéias do autor sobre a arte teatral. Além disso, as páginas de um diário de um personagem são transcritas em meio aos diálogos, configurando-se, desse modo, um hibridismo de gêneros.
No primeiro episódio, o estudante Macário conhece Satã, que se torna seu companheiro de viagem e com o qual discute sobre uma gama de assuntos como a condição humana, a poesia, o amor, em um diálogo que vai aos poucos evidenciando as principais características do personagem: o tédio, a rebeldia e o pessimismo.
Já no segundo episódio, surge Penseroso. O amigo de Macário, a outra face da moeda, é sentimental, sonhador e otimista. Candido (1975) assim resume os perfis dos personagens centrais do drama: “Macário é o Álvares de Azevedo byroniano, ateu, desregrado, irreverente, universal; Penseroso, o Álvares de Azevedo sentimental, crente, estudioso e nacionalista.” (CANDIDO, 1975, p.190)
Durante o segundo episódio, Azevedo inova ao inserir em um drama uma discussão acerca do nacionalismo literário, por meio dos posicionamentos de Macário (que o combate) e de Penseroso (que o defende). Candido (1975) afirma que o autor fez uma opção pela abordagem de problemas subjetivos em detrimento da tendência nacional que se impunha à época, em “trechos capitais, exprimindo a ambivalência do nosso Romantismo, transfigurador de uma realidade mal conhecida e atraído irresistivelmente pelos modelos europeus, que acenavam com a magia dos países onde radica a nossa cultura intelectual.” (CANDIDO, 1975, p.16).
A morte de Penseroso revela a vitória da postura universal, cética, racional e pessimista. Macário, portanto, com sua descrença na nação, no amor, na poesia, no ser humano, na vida – consegue reverter a situação de fé e otimismo de Penseroso, acarretando o seu suicídio.Derrotado o personagem símbolo do ideal romântico, do sonho, da subjetividade e da idealização, conseqüentemente está derrotado o nacionalismo, o excesso de emoção característicos daquele período literário.
Em suma, Álvares de Azevedo não buscou o patriotismo exacerbado como via de confronto com a literatura estrangeira, mas, declaradamente influenciado pela mesma, dela tirou o proveito necessário para apresentar uma proposta estética diferenciada, tanto sob o ponto de vista estrutural (as duas faces da moeda representadas pelas duas partes distintas da Lira dos Vinte Anos, a mescla dos gêneros em Macário) quanto no que se refere à dimensão temática de sua obra ( a binomia, o desdobramento do sujeito-autor nos personagens Macário e Penseroso).
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Fonte:
Fabíola Rodrigues da Silva: “O DRAMA ROMÂNTICO E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO EM MACÁRIO, DE ÁLVARES DE AZEVEDO: HETEROGENEIDADES”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação: Mestrado em Lingüística, do Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Lingüística. Área de concentração: Estudos em Lingüística e Lingüística Aplicada Linha de pesquisa: Estudos sobre texto e discurso Orientadora: Dra. Joana Luíza Muylaert de Araújo). Uberlândia – MG, 2005.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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