Álvares de Azevedo: Uma literatura cindida no Romantismo

Álvares de Azevedo: Uma literatura cindida no Romantismo

Manuel Antônio Álvares de Azevedo ocupa uma posição singular no Romantismo brasileiro, graças a uma literatura sui generis. Dois motivos contribuem para tanto: o tratamento conferido à questão nacionalista e a exploração de um recurso ao qual o autor denominou “binomia”.

Nascido em São Paulo em 1831, transfere-se com a família para o Rio de Janeiro em 1833, onde inicia seus estudos. A morte do irmão Inácio Manuel aos dois anos de idade abala-o emocionalmente, a ponto de seus biógrafos atribuírem a esse fato a fragilidade de sua saúde a partir de então. Matriculado em um colégio de Niterói em 1837, é considerado intelectualmente apático. Em 1840, no Colégio Stoll, ele começa a dar indícios do aluno brilhante que seria até sua morte. Os estudos prosseguem no Colégio Pedro II, onde é declarado como um prodígio, e ele ingressa na Faculdade de Direito em São Paulo aos dezessete anos de idade. Lá, Azevedo reside em uma república estudantil na Chácara dos Ingleses, juntamente com os também poetas Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa.

É durante esse período que “Maneco” (como era tratado pelos íntimos) lê e escreve abundantemente. Consta que, ao mesmo tempo em que atingia notas excelentes nos exames jurídicos, lia Byron, Hugo, Musset e Shakespeare no idioma original, além de produzir estudos literários e filosóficos variados e escrever sua obra em verso e em prosa. Não chega, porém, a concluir o curso, pois ao ser aprovado para o quinto ano, passa as férias em uma fazenda em Itaboraí e cai de um cavalo; a conseqüência da queda foi um tumor na fossa ilíaca, sendo operado sem sucesso e falecendo a 25 de abril de 1852. Suas últimas palavras teriam sido “Que fatalidade, meu pai!”.

Confirmando a concepção romântica de gênio, Azevedo escrevia com a sofreguidão de quem previa morte próxima, como afirma Candido (1975): “ a febre de escrever atirou-o atabalhoadamente sobre o papel, como se as palavras viessem por demais imperiosas; grande número dos seus escritos manifestam o fluxo incontrolado que, para o Romantismo, era o próprio sinal da inspiração.” (CANDIDO, 1975, p.187).

Com efeito, Álvares de Azevedo demonstrava freqüentemente pressentimentos mórbidos, que expressava aos amigos e em cartas endereçadas à mãe e à irmã. Dois colegas quintanistas do curso de Direito haviam falecido em anos sucessivos e a ele coube pronunciar os discursos fúnebres. Azevedo teria escrito na parede do quarto os anos de 1850 e 1851, seguidos dos nomes dos colegas falecidos e reservando o ano de 1852 para ser preenchido depois com o seu próprio.

O poeta fez parte da chamada “segunda geração romântica”. Tristeza, ceticismo, ironia e obsessão pela morte constituem a temática abordada pelos ultra-românticos, distinta da geração anterior, que exaltou principalmente a nação e o indígena, sendo Azevedo sempre apontado como seu maior representante, embora a morte precoce o tenha impedido de amadurecer a genialidade. Candido (1975) a ele se refere como “personalidade literária mais rica da geração” (CANDIDO, 1975, p.178) e, em outro momento, “figura de maior relevo do nosso ultra-romantismo”. (CANDIDO, 1975, p.180).

As notas biográficas são importantes para compreender os motivos pelos quais se considera Álvares de Azevedo como figura contraditória na literatura brasileira. Existe uma preocupação em associar a produção literária azevediana à personalidade do poeta, que seria constituída simultaneamente por diferentes facetas. Assim, o poeta sentimental, dedicado à família e aos estudos conviveria com o poeta irônico, devasso e alienado. A esse respeito, Ramos (1979) afirma que a discussão sobre a (in)coerência entre vida e obra do poeta remonta ao século dezenove, quando o crítico Sílvio Romero escreve:

“Formaram-se logo dois partidos: uns afirmavam que o moço escritor era um espírito meigo, delicado, virgem, puro e singelo, não conhecendo as diabruras e irregularidades da vida senão pelos livros dos poetas e romancistas românticos. (...) Outros, julgando-se muito desabusados, tombam para o extremo oposto. Pintam o autor da Noite na Taverna como um monstrengo moral, um ser depravado, corrupto, ébrio, devasso, metido em extravagâncias de toda a casta. (...) Tudo isso é falso, falsíssimo. Nem anjo, nem demônio.” (ROMERO, 1949, apud RAMOS, 1979, p.127).

Essa antinomia é mais acentuada através da leitura do Prefácio à segunda parte da Lira dos Vinte Anos, em que Azevedo adverte o leitor da seguinte maneira:

“Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico.Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei; e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: - a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.” (AZEVEDO, s/d, p.38)

A título de comparação, citamos uma estrofe de um poema pertencente à primeira parte da Lira, e outra de um poema da segunda parte:

Primeira parte: Soneto
Pálida, à luz da lâmpada sombria
Sobre o leito de flores reclinada
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia! (AZEVEDO, s/d,p.22)

Segunda parte: É ela! É ela! É ela! É ela!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado! (AZEVEDO, s/d, p.60)

Os trechos supra-citados confirmam que Azevedo vai do sublime ao grotesco, da idealização à realidade, “do mais ingênuo lirismo ao mais desabusado erotismo. É zombeteiro e irônico, alegre e triste, vibrante e meigo, sensual e pudico. Devemos-lhe a introdução do humor na poesia brasileira”. (CAVALHEIRO, s/d, p.86)

Acerca da exigência em atrelar a biografia e a produção literária de Álvares de Azevedo, dois fatores devem ser ressaltados: em primeiro lugar, sabe-se que na vida provinciana da São Paulo da época em que vivia o poeta, o tempo ocioso era grande, fazendo com que o mesmo dedicasse muitas horas à leitura e à escrita. Como bem afirma Rocha (1971, p.14), sua vida intelectual foi breve, mas intensa, iniciando-se antes dos dezoito anos e concluindo-se aos vinte anos e sete meses. Conseqüentemente, pouco tempo restaria para que ele desfrutasse da vida boêmia, que apareceria em seus livros como reflexo das leituras de Byron, Musset e outros. É importante lembrar que a vida monótona daquela cidade foi tema de cartas à família, gerando o sentimento de “spleen”, abordado em seus poemas e na ficção, consolidando assim a fantasia romântica do herói entediado com a realidade circundante.

Em segundo lugar, a busca de veracidade ou não acerca de um possível comportamento libertino de Álvares de Azevedo não pode estar associada ao valor que se atribui à sua obra, cuja qualidade não pode ser medida pelas categorias reducionistas de “anjo” ou “demônio”. A esse respeito, cabe citar as palavras de Candido: “ O fato de Álvares de Azevedo ter sido bem comportado ou devasso nada tem a ver com o imperioso jato interior que o propelia e que, brotado na zona escura da alma, se clareava depois por uma lucidez intelectual raramente encontrada em nossa literatura.” (CANDIDO, 1975, p.181)

Em Macário, a teoria da binomia aparece na construção dos personagens (Macário e Penseroso). No entanto, ela também é evidenciada no âmbito formal da obra, pelo confronto de gêneros distintos. Classificado geralmente como drama, Macário não é composto apenas por diálogos próprios desse gênero discursivo, mas seu prefácio (“Puff”) é um ensaio (prosa, portanto) dirigido ao leitor e contendo as idéias do autor sobre a arte teatral. Além disso, as páginas de um diário de um personagem são transcritas em meio aos diálogos, configurando-se, desse modo, um hibridismo de gêneros.

No primeiro episódio, o estudante Macário conhece Satã, que se torna seu companheiro de viagem e com o qual discute sobre uma gama de assuntos como a condição humana, a poesia, o amor, em um diálogo que vai aos poucos evidenciando as principais características do personagem: o tédio, a rebeldia e o pessimismo.

Já no segundo episódio, surge Penseroso. O amigo de Macário, a outra face da moeda, é sentimental, sonhador e otimista. Candido (1975) assim resume os perfis dos personagens centrais do drama: “Macário é o Álvares de Azevedo byroniano, ateu, desregrado, irreverente, universal; Penseroso, o Álvares de Azevedo sentimental, crente, estudioso e nacionalista.” (CANDIDO, 1975, p.190)

Durante o segundo episódio, Azevedo inova ao inserir em um drama uma discussão acerca do nacionalismo literário, por meio dos posicionamentos de Macário (que o combate) e de Penseroso (que o defende). Candido (1975) afirma que o autor fez uma opção pela abordagem de problemas subjetivos em detrimento da tendência nacional que se impunha à época, em “trechos capitais, exprimindo a ambivalência do nosso Romantismo, transfigurador de uma realidade mal conhecida e atraído irresistivelmente pelos modelos europeus, que acenavam com a magia dos países onde radica a nossa cultura intelectual.” (CANDIDO, 1975, p.16).

A morte de Penseroso revela a vitória da postura universal, cética, racional e pessimista. Macário, portanto, com sua descrença na nação, no amor, na poesia, no ser humano, na vida – consegue reverter a situação de fé e otimismo de Penseroso, acarretando o seu suicídio.Derrotado o personagem símbolo do ideal romântico, do sonho, da subjetividade e da idealização, conseqüentemente está derrotado o nacionalismo, o excesso de emoção característicos daquele período literário.

Em suma, Álvares de Azevedo não buscou o patriotismo exacerbado como via de confronto com a literatura estrangeira, mas, declaradamente influenciado pela mesma, dela tirou o proveito necessário para apresentar uma proposta estética diferenciada, tanto sob o ponto de vista estrutural (as duas faces da moeda representadas pelas duas partes distintas da Lira dos Vinte Anos, a mescla dos gêneros em Macário) quanto no que se refere à dimensão temática de sua obra ( a binomia, o desdobramento do sujeito-autor nos personagens Macário e Penseroso).

---
Fonte:
Fabíola Rodrigues da Silva: “O DRAMA ROMÂNTICO E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO EM MACÁRIO, DE ÁLVARES DE AZEVEDO: HETEROGENEIDADES”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação: Mestrado em Lingüística, do Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Lingüística. Área de concentração: Estudos em Lingüística e Lingüística Aplicada Linha de pesquisa: Estudos sobre texto e discurso Orientadora: Dra. Joana Luíza Muylaert de Araújo). Uberlândia – MG, 2005.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!