Lembrança da morte

Breves apontamentos sobre "As Mortes de Meu Pai", de Yehuda Amihai
Por: Iba Mendes (2003)

“O destino nos molda como o vitrinista arruma os manequins que expõe, levantando-lhes às vezes a mão ou endireitando-lhes a cabeça, e é assim que eles permanecem por toda uma temporada. A mesma coisa conosco” (pág. 30).

Narrado em primeira pessoa, o conto As Mortes de Meu Pai aborda, como já faz transparecer o próprio título, a questão da morte. Não apenas da morte física, mas, principalmente, daquela que ocorre como conseqüência de ações humanas. É a morte que surge da memória, que aparece imbuída da lembrança dos horrores da guerra, ou que se apresenta como fruto de uma infância conturbada e traumática.

O autor inicia o conto lembrando um episódio ocorrido na comemoração do Yom Kupur. Foi exatamente neste dia que se deu a primeira morte de seu pai: “E, assim ficou meu pai, vestido com sua mortalha branca. Esta foi a primeira morte de que eu tenho lembrança.” Sabe-se que o Yom Kupur, o dia mais sagrado do judaísmo, representa, de certa forma, a morte do “velho”. É neste dia que o Eterno examina tudo o que é vivo e que decide quem viverá e quem morrerá. Também no Yom Kipur era o momento em que se recordavam publicamente os entes falecidos, mediante a recitação do Izkor. Era comum neste época evocar-se recordações que tocavam o interior das pessoas, as quais tentavam recuperar o que de mais importante havia dos entes queridos falecidos. Portanto, a idéia da morte aparece desde o começo do conto.

A narrativa dá-se exclusivamente pela memória. Esta memória recupera acontecimentos do período da Segunda Guerra Mundial, na qual o autor participou como soldado do exército inglês. E, a guerra também lembra a morte. Foi exatamente nela que seu pai morreu de verdade. A lembrança dos horrores da guerra é constante no conto: “Mas a guerra confunde homens e terras, revolvendo tudo e consegue fazer sentar os que estão de pé e deitar os que estão sentados e transforma os deitados em quadros na parede. Tudo é possível na guerra” (p. 296).

A morte é apresentada não apenas como um mero acontecimento físico, que ocorre quando paramos de respirar. Na verdade, a vida é feita, como diria os antigos, de “pequenas mortes”. Constantemente morremos. Ás vezes morremos sem perceber. Outras vezes morremos e ressuscitamos. Porém, estamos sempre morrendo. As pessoas morrem para o mundo, morrem para a guerra, morrem para a riqueza, morrem para os pais e morrem também “de verdade”: “Meu pai morreu muitas outras vezes e ainda continua a morrer de vez em quando. Às vezes eu o assisto e outras ele morre só. Às vezes sua morte ocorre perto da minha mesa. Ou nas horas de trabalho quando escrevo bonitas palavras no quadro negro, ou quando contemplo os países coloridos do mapa. Ás vezes estou longe na hora de sua morte...” (p. 295). Sim, ele morria constantemente, e, muitas vezes, “Cavou muitas sepulturas para si”. As pessoas, muitas vezes, cavam suas próprias sepulturas.

A morte, associada à guerra, especificamente à Segunda Guerra, aparece na lembrança do autor de maneira enfática. O seu pai, que também lutou durante a guerra do lado dos alemães, morreu quando se recusou a participar de uma comemoração durante a ascensão do nazismo. Também morreu quando o vieram prender por causa de um distintivo do partido de Hitler, distintivo este trazido pelo próprio autor, quando criança, e que seu pai lançara fora. Morreu ainda quando guardas impediram as pessoas de comprarem na loja de seu pai. E, por fim, morreu quando tiveram de deixar o país onde nascera, a Alemanha. Mas, as mortes de seu pai não estão restritas somente aos episódios da guerra. Não, elas continuam, inclusive em seus sonhos: “meu pai ainda continua morrendo. Ele parece no meu sonho e eu pressinto-o...” (p. 301). Muito mais que isso, a figura do pai morto aparece encarnada em situações ou pessoas - na memória: “Via-o deitado ao lado do caminho. Somente sua cabeça voltava-se para mim e seguia-me. Via-o através do antigo arco de São Sebastião... “Virei-me e vi-o novamente, como algo muito distante, através dos antigos arocos do portão de São Sebastião” (págs. 301, 302).

Assim, a questão da memória parece essencial para o entendimento do texto. No início, por exemplo, ele lembra o seu pai numa sinagoga, mas não lembra a face, sim, a nuca, pois esta nunca muda. Igualmente, no fim do texto, no instante em que ele se encontrava em Roma, afirma ter visualizado, não a face do pai, porém, somente a cabeça, ou seja, exatamente a nuca. Assim, em todo o texto, a memória apresenta-se de forma explícita: memória do pai, memória da infância, memória da guerra, e, principalmente, memória da morte ou mortes. Na realidade, todo o texto é uma memória. E, o que é o judaísmo senão a memória?

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Referência bibliográfica:
As Mortes de Meu Pai. De Yehuda Amihai. In: O Novo Conto Israelense. Tradução: Rifka Berezin. Edições Símbolo, 1978.

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