O “Azazel”, de Agnon


Por: Iba Mendes (2004)
Simples resenha do conto: “Ferenheim”, de Shmuel (Yosef) AGNON

“E Arão lançará sortes sobre os dois bodes; uma pelo Senhor, e a outra pelo bode emissário. Então Arão fará chegar o bode, sobre o qual cair a sorte pelo Senhor, e o oferecerá para expiação do pecado. Mas o bode, sobre que cair a sorte para ser bode emissário, apresentar-se-á vivo perante o Senhor, para fazer expiação com ele, a fim de enviá-lo ao deserto como bode emissário.” (Lv. 16:8-10).


Não sei exatamente o que diz a psiquiatria sobre o sentimento de culpa nas relações entre as pessoas. Também não quero saber, ou melhor, não preciso saber, ou mais exatamente, é melhor não saber. Portanto, não irei a Freud. A mim me basta Agnon e seu “Ferenheim”.

Na vida, isto é mais que o óbvio, todos estão envolvidos direta ou indiretamente em alguma situação relacionada a sensação psíquica de culpa. Em havendo uma pessoa que nunca foi acusada de algum ato repreensível praticado contra a moral ou a lei, mesma esta, ainda que inconscientemente, mete-se dentro deste “invólucro”. Acusando ou acusado, sempre se há de conviver com a culpa. Agnon, em “Ferenheim”, faz transparecer esta realidade. Obviamente não sei se foi esta sua intenção, mui provavelmente não tenha sido. Mas, vá lá, o que importa é que encontrei muitos indícios os quais, se não comprovam este fato, ao menos apontam para ele; ademais, sou eu quem – modesta e superficialmente - faz a “crônica” do texto. E, como é sabido, no EU reina o subjetivismo, impera a tendência de reduzir a existência à existência do sujeito. Não devo, portanto, ser culpado por este suposto erro. Culpemos o Ferenheim! Certamente alguém, um outro EU qualquer, há de encontrar neste conto uma abordagem sobre o amor? Ou sobre a morte? Ou sobre a felicidade? Ou sobre a guerra? Ou sobre a traição? Ou sobre os dissabores da vida? Ou sobre a inutilidade da luta humana? Ou sobre...Deixa pra lá... Nem todos crêem que Capitu traiu Bentinho! E Kafka? Uns viam nele um pensador metafísico; outros, um profeta do absurdo; Sartre e Camus o concebia como a síntese da incongruência do existir; psicólogos acreditaram que sua obra era reflexo de sua relação com um pai autoritário e na sua própria condição de celibatário; marxistas entendiam seus escritos como a suma do caos burguês; os surrealistas o incorporou na esfera do fantástico etc. Quem está com a razão??? Tratemos, pois, da culpa de Ferenheim...

O senhor Werner Ferenheim, que não era uma pessoa tão distinta quanto o senhor Hans Steiner, e que não tinha “negócios tão sérios” quanto este, não foi, por este motivo, isentado dos deveres militares. Mas, que culpa tinha se sua nação embrenhou-se numa guerra? Que culpa deveria assumir por ter deixado sua esposa e seu filho, para ir lutar contra a própria vontade por seu povo o qual sequer sabia de sua existência? Quiçá nenhuma, contudo, não fora por isso eximido dela. A culpa – intrometidamente – o acompanhou para o estrangeiro. E mesmo depois de tudo, quando retornou à sua terra natal, ela ainda o seguia de perto. Então seria ele culpado pela morte do único filho? A zeladora acreditava que sim:
“Pobre pequenino, foi emagrecendo, emagrecendo até a morte”. Seria a culpa a responsável pela sua ida ao cemitério, ao túmulo de seu filho? Talvez mera convenção humana. E por que sua mulher o trocou por outro? Porventura seria também culpado disso? Steiner pensava afirmativamente: “O mundo que você deixou para trás, quando foi para a guerra, transformou-se; e o objeto principal do nosso assunto também mudou”.

Se ele não tivesse ido para guerra, se se recusasse a lutar pela pátria, provavelmente deveria estar nestes dias ao lado da mulher, e talvez não com um, mas com vários filhos e vivendo uma vida de grande felicidade! A mulher não poderia ser considerada culpada, afinal ouvira dizer que ele fora capturado e feito prisioneiro de guerra; ademais, todos, principalmente o senhor e a senhora Steiner acreditavam que ele não mais voltaria:
“nós confiamos em que você não iria continuar opondo obstáculos”. Se ao menos o senhor Ferenheim tivesse enviado notícias, dizendo que voltaria, neste caso sua mulher certamente haveria de aguardá-lo com ansiedade, como naquelas aventuras românticas em que o herói, depois de muito padecer distante do lar, volta rejubilosamente para os braços da amada; como um Ulisses que, depois de inúmeras agruras, retorna triunfante para sua Penélope. Mas ele nada avisou. Simplesmente apareceu do nada, e o pior, sem nada. Literalmente, sem nada. Nem ao menos um presentinho para sua mulher ele trouxe! Além disso, ela, que ainda era jovem, não poderia se submeter a um martírio, tendo de passar a vida inteira esperando alguém que ao certo não se sabia que estava vivo. Sabia ou não sabia?

O senhor Karl Neiss também não pode ser considerado culpado. Absolutamente. Ele encontrou a porta escancarada, apenas entrou como qualquer outro o faria. É certo que alguém, que “obviamente” não sou eu, poderia acusar o senhor Neiss de uma certa dose de interesse. Esta pessoa justificaria sua desconfiança pelo fato de ser Inge, como afirmou o senhor Steiner:
“filha de uma abastada família”. Diria ainda, para confirmar sua tese, que ela, ainda no momento, deveria ser dona de uma bela fortuna. Daí todo o interesse de Karl Neiss. Pura ignorância! Tudo aconteceu naturalmente, sem a mínima influência dos Steineres! O senhor Werner Ferenheim não poderia ser isentado da culpa, não deveria ser livre dela. Sim, como um judeu errante, ele deveria ser condenado a errar pelo mundo, com a lembrança de um país natal distante que já não existe mais, de dias felizes que se foram como o caloroso verão, de momentos prazerosos ao lado da amada. Porque, quando deixou o seu lar, ele fechou – simbolicamente - a porta para a felicidade. E quando voltou encontrou-a literalmente trancada. E o mesmo aconteceu após o longo diálogo que teve com Inge: “Ele ainda permaneceu um pouco no aposento que Inge havia deixado. Depois voltou-se na direção da saída. Deu ainda uma olhada ao redor do quarto. E partiu, fechando a porta”. Mas, para onde será que partiu?...

Deve ter partido como Azazel, o bode emissário do Levítico, para expiar pelos desertos da vida suas eternas culpas...

É isso!

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Nota:
Este texto pode ser reproduzido e utilizado livremente, desde que citada a fonte e o autor.

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