Santo Tomás de Aquino e as divisões do mal

Divisões do mal

"A definição de mal como privação é a mais geral possível. Assim sendo, se há o objetivo de desenvolver melhor tal definição, o mais aconselhável é distinguir as várias “espécies” de mal. Por isso, seguindo Santo Tomás, o mal será dividido em:

(A) Mal simpliciter e Mal secundum quid
(B) Mal físico e Mal moral
(C) Mal de pena e Mal de culpa

Pode-se dizer que há uma ordem entre esses três grupos acima, que diz respeito à amplitude das definições do mal, segundo a qual a distinção feita entre os pares de (A) é mais ampla do que a feita nos pares de (B) e a feita em (B) é mais do que (C). Como será visto, os pares de um grupo mantêm relações com os pares dos outro grupo. Por exemplo, o mal físico pode ser definido nos termos de um mal secundum quid, e o mal de culpa, nos termos de um mal moral. Como a distinção entre mal simpliciter e mal secundum quid é a mais ampla delas, será a primeira a ser analisada.

Mal simpliciter e Mal secundum quid
Como já foi dito, o universo é um todo ordenado. Este todo é perfeito, embora isso não implique que as partes que o formam também o sejam. Na verdade, a perfeição desse todo requer que haja desigualdade entre as partes, isto é, que haja nas criaturas diversos graus de bondade. A perfeição do universo, então, inclui a existência não só de entes incorruptíveis, como também de corruptíveis, para que a diversidade seja alcançada. Estes últimos, estão fadados a se corromperem.

Além disso, também foi visto que essa diversidade entre as coisas criadas implica que o bem de alguns delas acarrete o mal de outras. Um exemplo seria o caso em que o bem do leão representa o mal do asno, pois este serve de alimento para aquele.

Estes males que são resultado da realização de algo que é bom em si mesmo (simpliciter), isso é, que são causados acidentalmente quando um certo bem se realiza, são os chamados males secundum quid.

O mal secundum quid não é “mal em si mesmo” (simpliciter), mas sim em relação a outra coisa, como o próprio nome já sugere. Um bom exemplo seria a pena justa que pode ser imposta por Deus: O bem da ordem da justiça implica a privação de algum bem particular a alguém que peca, pois a justiça requer que quem peque seja privado de um certo bem que apeteça. Essa pena que causa privação, para o pecador, é um mal. Porém, é apenas acidentalmente má, pois a pena é a realização do bem da justiça, o que é um bem. Assim sendo, a pena é boa em si mesma (simpliciter), mas é má para o pecador. Por isso, ela é dita ser um mal apenas secudum quid, pois, na verdade, é a realização de um bem em si mesmo (simpliciter) que, para o pecador, é um mal. Do mesmo modo, a forma do fogo, que é um bem simpliciter, pode ser o mal da água (mal secundum quid).

Assim, vê-se que nada impede que o que é um bem simpliciter seja um mal secundum quid. Além disso, vê-se que o mal secundum quid pode ser segundo a ordem natural, como no caso do asno que serve de alimento para o leão, e no da água, que é corrompida pela forma do fogo. Sendo Deus o criador da ordem da natureza, pode-se dizer que é o “criador” desse males secundum quid. Porém, quando se diz que “Deus criou o mal”, deve ser entendido que esse mal não foi criado enquanto mal, mas sim enquanto é um bem simpliciter. O que Deus cria, então, é um bem simpliciter, o que pode ser, às vezes, um mal secundum quid. Por isso, esse mal só é criado e querido acidentalmente por Deus, pois é a criação de um bem o que é principalmente visado.

Em contrapartida ao mal secundum quid, há o mal simpliciter. Nesse caso, não há um bem simpliciter que é causado e que representa um mal para uma criatura, mas apenas uma criatura privada de algum bem particular de que dependa a sua perfeição. Assim, o mal simpliciter não é em nenhum aspecto e para nenhuma criatura um bem simpliciter, como ocorre no outro caso. Na verdade, pode acontecer o contrário do outro caso, pois uma criatura racional pode realizar um bem secundum quid, como o prazer imediato que certo pecado pode oferecer, mas que é um mal simpliciter, pois seria um afastamento da criatura em relação a Deus. Como o mal simpliciter afasta de Deus, então também afasta da ordem natural das coisas. O mal simpliciter, então, representa uma desordem em relação à ordem devida.

Assim sendo, pode ser observada uma outra diferença entre o mal secundum quid e o mal simpliciter, no que diz respeito aos seus “modos de corromper”: Enquanto que a corrupção do mal secundum quid ocorre pela “atualização” de algo (um bem), no mal simpliciter ocorre pela não atualização de algum bem, ou seja, por defeito da virtude efetiva. Assim, no primeiro caso, por exemplo, é forma do fogo que “atua” e corrompe a água. Já, no segundo caso, é o fato da ordem devida “não atuar” que leva ao efeito mau.

Mal físico e Mal moral
Essa distinção é entre os males que se encontram na ordem da natureza e os males que se afastam dela, que destroem tal ordem. Os que são de acordo com a ordem são os males físicos, enquanto que os males morais se afastam dela.

“O mal físico é uma privação de qualquer bem nos entes que carecem de razão”. Dada essa definição, pode-se ver que a morte do asno, por exemplo, ao servir de alimento ao leão, pode ser enquadrada nela. Esse mal também seria o da água, ao ser corrompida pelo fogo. Seria possível citar aqui o mal físico nos homens, porém, todo mal físico humano pode ser caracterizado como sendo um mal de pena, pois, em última instância, só ocorre depois do pecado original.

O mal moral, por sua vez, é uma desordem na ação voluntária de uma criatura livre, isto é, um afastamento da ordem moral devida. De certo modo, o mal moral vai ser identificado com o mal de culpa, pois, em última instância, qualquer transgressão da ordem moral será uma transgressão da ordem criada por Deus.

Dito isso, nota-se que há uma semelhança nessa distinção com a distinção entre mal simpliciter e mal secundum quid. Assim como o mal secundum quid ocorre segundo a ordem da natureza, o mal físico também. Da mesma forma, assim como o mal simpliciter significa um “afronta” à ordem devida, o mal moral também. Além disso, lembrando que as “as partes” do universo se combinam de tal forma a criar uma ordem do todo perfeita, e que tal ordem inclui certos males físicos (vide o caso da sobrevivência do leão), então se poderia dizer que os males físicos são males secundum quid, pois só são males para as criaturas em particular que o sofrem, enquanto que, na verdade, eles representam um bem simpliciter¸a saber, o bem da ordem do universo. Se é assim, então o mal simpliciter, aquele que é uma afronta à ordem estabelecida, se identifica com o mal moral, pois, diferentemente do mal físico, ele não contribui em nada para a perfeição do todo. Se o mal simpliciter é um mal maior em relação ao secundum quid, então o mal de culpa será o grande mal, quando comparado ao mal físico.

Mal de pena e Mal de culpa
Essa distinção é entre o mal na integridade da criatura voluntária e o mal na ordem devida da operação dessa criatura.Todo mal, nas coisas voluntárias, é ou mal de pena, ou mal de culpa, e essa distinção se aplica somente a elas.

O mal de pena “consiste na subtração da forma ou integridade da criatura”, ou seja, um mal físico imposto à criatura como pena de algum mal de culpa. Esse mal de culpa cometido por um homem pode ser, em última instância, o pecado original, de modo que certos males físicos humanos podem ser entendidos como uma pena pelo pecado original, pois somente após esse pecado é que o homem passou a sofrer esses males (como, por exemplo, a cegueira).

Nota-se que o mal de pena, assim como os males físicos das criaturas não racionais, pode ser dito mal secundum quid, pois, ao punir uma criatura, Deus está visando ao bem da justiça, que exige a punição dos pecadores. Assim, a pena do pecador consiste em um bem simpliciter, que é o bem da justiça. Desse modo, o mal de pena só é querido por Deus acidentalmente, pois o que quer principalmente é um bem.

O mal de culpa, por sua vez, “consiste na falta da operação devida nas coisas voluntárias”, isto é, em uma desordem na ação de uma criatura voluntária. O mal de culpa, então, é uma transgressão voluntária da lei divina por parte de uma criatura racional. Ele é um afastamento da ordem criada por Deus. Já que Deus quer preservar esse bem da ordem, então se segue que o mal de culpa Deus não quer de nenhum modo, nem por acidente, pois este é uma destruição de tal ordem, mas apenas permite este mal. Como foi dito, o mal de culpa se identifica com o mal moral, sendo o pecado a ação voluntária que padece de tal mal. Dada a importância do pecado para se entender o problema do mal, na próxima seção ele será analisado atentamente.”


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Fonte:
Napoleão Schoeller de Azevedo Júnior: "O MAL NO UNIVERSO SEGUNDO SANTO TOMÁS DE AQUINO". (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em filosofia. PROF. DR. FERNANDO PIO DE ALMEIDA FLECK ORIENTADOR).
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2007.

Nota
:
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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