O problema de Deus na América Latina: ateísmo ou idolatria?

“Ao tratar da questão de Deus na América Latina e no Brasil, L. Boff claramente põe o problema numa perspectiva diversa da tratada muitas vezes por outros filósofos e teólogos. Coloca-o dentro do que chamaríamos um paradigma ético-político ao invés de um paradigma epistemológico-ontológico. Esclareçamos.

Por paradigma epistemológico-ontológico compreendemos a formulação de perguntas e respostas sobre o problema de Deus que levam em conta preponderantemente os aspectos teóricos de ordem gnosiológica (possibilidade ou não do conhecimento racional de Deus; busca da linguagem adequada à divindade; compreensão de Deus como princípio imanente ou transcendente do mundo, etc.) e ontológica (provas da existência de Deus, natureza e atributos divinos, etc.). Daí se derivam, por exemplo, os debates sobre: teísmo e ateísmo; monoteísmo, politeísmo e panteísmo; fé e razão; ortodoxia e heresia e assuntos correlatos. Alguns representantes deste paradigma são: Aristóteles, Anselmo, Tomás de Aquino, Descartes, Leibniz, Hegel, André Comte-Sponville, Carlos R. Cirne-Lima. Entendemos por paradigma ético-político a elaboração de questões e respostas acerca do tema Deus que consideram principalmente as conseqüências práticas das crenças religiosas nas esferas política, moral, social, cultural, econômica e religiosa. As discussões giram em torno de temas como: ideologia, idolatria, função das religiões e igrejas na sociedade, autonomia das esferas política e religiosa, fetichismo e outros semelhantes. Ilustram este paradigma: Las Casas, Kant, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Lévinas, Dussel, Rubem Alves, Juan Antonio Estrada.

Evidentemente essa divisão é extremamente esquemática. Nenhum pensador do primeiro paradigma deixa de discutir e tirar conseqüências práticas de suas noções acerca do divino. Assim como os pensadores do outro paradigma não desconsideram as questões teóricas. Nos dois paradigmas ocorre antes uma inter-relação entre os aspectos ontológico, político, epistemológico e ético no nível de pressupostos e de derivações. Inexiste uma espécie de “pureza” paradigmática. Fazemos tal distinção didática a fim de tornar mais explícito o ponto central da abordagem de Boff com relação ao problema de Deus no contexto periférico. Lembremos ainda que mesmo L. Boff tece considerações de caráter ontológico e epistemológico
. Contudo, sua perspectiva tem intenção e cunho preponderantemente ético e político.

Boff aborda a problemática de Deus desde o contexto latino-americano, no qual se percebe um engajamento de significativos grupos religiosos, como as CEBs, que retiram da própria fé impulsos para as transformações sociais. Sem desconsiderar as implicações aduzidas pelas ciências humanas do contexto sócio-histórico sobre a construção da imagem de Deus e do destino último da existência, Leonardo Boff afirma que estes cristãos a partir da busca por um modo de vida comunitário e de práticas libertadoras, ou seja, contestadoras do status quo, começaram a criticar as imagens de Deus presentes na sociedade e nas igrejas. Ao confrontarem a imagem bíblica de Deus e o Deus propalado pela sociedade em articulação com as igrejas notaram uma falsificação e usurpação do nome Deus para justificar a estruturação social e apaziguar as consciências. Instaurou-se, então, um conflito das imagens de Deus: de um lado aqueles setores sociais que em nome de Deus procuram legitimar a configuração social (e também religiosa) vigente, do outro, grupos compromissados com transformações que conduzam a uma nova estruturação social (e também religiosa) mais igualitária, participativa, respeitadora das diferenças e comunitária, ancorados numa imagem de Deus diversa. Nesse cenário em que a concepção de Deus serve tanto à legitimação quanto à contestação da ordem constituída, dirá Boff:

o problema não é tanto se Deus existe (para a grande maioria, Deus é uma evidência existencial), mas qual é o Verdadeiro Deus? [...] Que tipo de Deus é esse que existe? É alguém para o qual tudo vale, que convive com a iniqüidade, com a opulência de um e a miséria de outros? Ou se trata do Deus que abomina a injustiça e a opressão e ama a justiça e ouve o grito do oprimido e toma por ele partido?

Dessa maneira, o problema clássico entre fé e razão se desloca do âmbito estritamente teórico para o da práxis. Não só crer e compreender mas, sobretudo, crer e agir. Em termos kantianos, diríamos que a razão em diálogo com a fé é a razão prática, não a teórica. A questão de Deus, portanto, não passa pelo ateísmo, porém pelo combate à idolatria ou, em outros termos, pela crítica à fetichização. O problema em nosso contexto periférico não é o da existência ou inexistência de Deus e sim o de por “qual” Deus se decide. Opta-se por “um” Deus justificador da opressão ou por aquele que liberta o oprimido. Conclui Boff: “Por aí se descobre que a distinção fundamental, nesse terreno, não passa pela crença ou descrença, por quem crê em Deus ou não crê, mas passa por critérios éticos, por quem defende e liberta o pobre ou por quem faz ou oprime o pobre”
.

Compreende-se, assim, porque Boff vê no Deus inversus e no cristianismo teológico fontes de crítica e inspiração para a sociedade e as igrejas. O primeiro, pelo contraste, permite a emersão de Deus como referência de justiça, amor e solidariedade na ausência histórica desses elementos. Já no cristianismo teológico, de forma positiva, Deus emerge como profundo, referência Maior da práxis de libertação dos grupos engajados. Nos dois casos estão em jogo posicionamentos éticos e são estes que contam para discernir a fé autêntica da fé fetichizada ou o cristianismo teológico do cristianismo sociológico.

A defesa e promoção da vida, especialmente dos mais pobres, e a denúncia dos mecanismos produtores da morte permitem identificar, segundo Boff, o Deus verdadeiro proclamado pela tradição bíblica, pelo Jesus histórico e que aparece como Sentido na radicalidade do mundo latino-americano. Aí o Deus dos cristãos comprometidos surge nas figuras de Libertador e Comunidade impelindo à libertação dos oprimidos e à construção de uma sociedade mais justa onde caibam todos. A experiência desses grupos religiosos na América Latina obriga-nos a repensar a postura do homem moderno frente à religião e ao problema de Deus. Nem sempre a religião e Deus são fatores de alienação, reguladores da ordem social e cerceadores da liberdade pessoal e política. Podem também transformar-se em elementos fomentadores e aceleradores do processo de libertação
. A experiência dos grupos cristãos mostra o quão uma determinada concepção de Deus torna-se inspiração e força crítica de modelos sociais, políticos e religiosos. A imagem de Deus haurida do Jesus histórico e da perspectiva trinitária traz à tona “uma memória perigosa e subversiva” incômoda à ordem vigente e capaz de projetar imagens socialmente revolucionárias; pode dar origem a sonhos de transformação social que mobilizem os pobres em seus anseios por uma convivência mais participada e fraterna para, através de uma prática histórica, traduzi-los em realidades sociais. Em nossa compreensão ao investigar os componentes característicos da experiência de Deus no cristianismo, a saber, Jesus Cristo e a Trindade, Leonardo Boff insere-se naquilo que denominamos paradigma ético-político do problema de Deus. E postula como tema central do contexto latino-americano a idolatria ou fetichização. Com isso, podemos dizer, o cristianismo libertador procura se ligar à vertente profética da tradição bíblica e dialoga com a crítica filosófica da religião especialmente preocupada com as implicações práticas das cosmovisões religiosas, por exemplo, a tradição marxista. Ambas as tradições – bíblica e filosófica – concentram atenção às questões da práxis e ao caráter potencialmente ideológico das imagens de Deus."


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Fonte:
RODRIGO MARCOS DE JESUS: "RELIGIÃO COMO FÉ E POLÍTICA: O CRISTIANISMO LIBERTADOR EM LEONARDO BOFF". (Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Filosofia na Linha de Pesquisa de Filosofia da Religião. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Margutti Pinto). Belo Horizonte, 2009.

Nota
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