O “Educar-se a Si Próprio” na Literatura Senequiana



O “Educar-se a Si Próprio” na Literatura Senequiana

“(...) forma de poder mais alta e divina que existe: o poder de nos dominarmos a nós mesmos!” “Quem é dono de si próprio não pode perder nada” (Sêneca. Epístolas Morais).

Como já frisamos anteriormente, para os estóicos, não há quebra de continuidade entre o espaço da casa, portanto privado, do espaço político de participação ativa, ou seja, público. Estavam eles convencidos que a realidade deveria ser encarada em seu conjunto como uma grande res publica e não isoladamente.

Um exemplo ilustrativo desse enfoque está condensado no estudo introdutório das “Epístolas Morais”, que diz:

Os seus escritos [de Sêneca], além de serem uma forma de difundir no público as suas idéias e de assim realizar uma tarefa pedagógica (que sempre esteve na mira do estoicismo), são também uma forma de se educar a si próprio, são exercícios espirituais que propõem tanto para si como para os outros, são meditações sobre as ocorrências da sua existência, são uma forma de fixar as suas idéias, de assegurar para si uma estabilidade, uma constância assente na fidelidade aos princípios, um método para atingir a identidade consigo próprio”.

O “educar-se a si próprio” pode ser lido em Sêneca atrelado a uma perspectiva de atingir a partir disso uma sólida formação educacional. Quando se dirige a Lucílio ele afirma: “observa-te a ti mesmo, analisa-te de vários ângulos, estuda-te. Acima de tudo verifica se progrediste no estudo de filosofia ou do teu próprio modo de vida”.

Essa perspectiva perpassa diversos momentos das Epístolas Morais. Outro trecho da carta corrobora o dito acima: “Assim como o luxo excessivo nos banquetes ou no modo de vestir é sintoma de uma sociedade doente, também o barroquismo do estilo, quando se generaliza, mostra que os espíritos estão decadentes, pois é do espírito que nascem as palavras!”.

Constatamos, portanto, que Sêneca atrela maus hábitos, que levam a uma vida cheia de vícios, com uma escrita empolada, que leva e está propensa a elucubrações vazias, sem nenhum propósito prático; e, sabemos, ele defendia mais o homem de ação do que o homem devotado à teoria. A preocupação para o nosso autor está não no modo ou na forma como se escreve, porém, na matéria tratada e de como tais questões podem vir a ser úteis à sociedade, atingindo o maior número possível de pessoas.

Nota-se, um vínculo muito estreito entre as opções feitas para a vida cotidiana e as opções feitas para a formação intelectual. O educar-se a si próprio objetiva a busca de uma perfeição espiritual, portanto um aperfeiçoamento moral, ao mesmo tempo orienta na escolha de exemplos adequados para situações determinadas, pois segundo Sêneca:

Toma, porém, atenção, não vá essa tua leitura de inúmeros autores e de volumes de toda a espécie arrastar algo de indecisão e de instabilidade. Importa que te fixes em determinados pensadores, que te nutras das suas idéias, se na verdade queres que alguma coisa permaneça definitivamente no teu espírito.

Sêneca ao realizar críticas de estilos e escolas filosóficas, estabelece ligações entre esses estilos de escrita, ou estilos vigentes com a época que estão circulando. Para ele, um determinado estilo pode ser visto como um termômetro de como está se comportando uma determinada sociedade; um determinado estilo de escrita pode imitar costumes e comportamentos sociais, pois “a corrupção do estilo demonstra plenamente o estado de dissolução social, caso, evidentemente tal estilo não seja apenas a prática de um ou outro autor, mas sim a moda aceite e aprovada por todos.”.

No Alcebíades, de autoria polêmica, mas considerada de Platão, encontramos referências ao cuidado de si, ao melhoramento de si. Tanto o epicurismo quanto o estoicismo, a sua maneira, evidenciam nesta questão, o que depende e o que não depende da própria pessoa para se atingir uma vida reta e virtuosa. Para Sêneca, considerar impossível um domínio sobre si mesmo, é apenas justificativa para quem não tem coragem de enfrentar seus medos e seus temores, pois se defende o vício por desculpa e por gosto, assim, falta de força para lutar é apenas pretexto.

A escolha dos autores mais adequados a uma perfeita formação moral, para Sêneca, recai prioritariamente mais no exemplo dado pelas ações do que no estilo adotado por esses autores. Quer dizer, o filósofo prioriza em suas reflexões e ensinamentos, os exemplos pessoais, as condutas na vida cotidiana e não num texto que possa ser mais rebuscado ou que tenha um rigor de método. Para Sêneca, a boa formação intelectual está atrelada a escolhas que evidenciem a clareza e a simplicidade. Um bom exercício para a memória do iniciante é visitar ou revisitar bons exemplos de autores que causam ou algum dia causaram admiração, ao mesmo tempo em que faz com que esqueçamos a dor e o medo de algo.

No Ética a Nicômaco, Aristóteles compila uma lista relativamente longa dos traços virtuosos para o homem. Ao mesmo tempo em que objetiva justificar uma vida devotada às virtudes, também oferece sugestões de como atingi-la. Os traços do caráter é que irão definir se uma pessoa é ou não é boa. Destaca o filósofo grego: a bravura, a temperança, a amabilidade, a honestidade e a auto-confiança.

Uma vida virtuosa era para Aristóteles o componente indispensável para o viver bem e, portanto, para se atingir a felicidade, a eudaimonia. Assim, são desejáveis as virtudes, pois promovem a felicidade perene ao homem. Mas, é importante frisar que para ele a virtude é uma conquista que não é dada a todos indistintamente, pois a virtude exige uma espécie de pré-requisitos e apresenta-se de forma diferenciada em relação a certos papéis sociais; e ainda está associada ao saber, isto é, à cultura.

O educar-se a si próprio exige esforços, sacrifícios e uma disciplina incomum, e, nesse sentido, passa ao leitor interessado, a imagem de um modelo quase inatingível. Esse educar-se perpassa além do campo de formação educacional, do campo moral, também educar o próprio corpo. Não esqueçamos que Sêneca alerta, quando da discussão sobre o binômio virtude/vício, que é um malefício ao homem buscar saciar os prazeres do corpo, um escravo dos desejos do corpo tem uma vida viciosa, não educou a si mesmo e não se encontra preparado para auxiliar o bem comum.

A postura correta define a majestade do mandatário, a boa educação do cidadão, a sólida formação do filósofo, do iniciado nas letras. Afirma Sêneca: “por exemplo, o mínimo gesto pode servir de indício da moralidade das pessoas. Assim, o homem depravado denuncia-se pelo modo de andar, pelos gestos (...) se quiseres conhecer o caráter de um homem observa como ele distribui ou provoca aplausos”.

No segundo capítulo, não esqueçamos, Sêneca demonstrou sua preocupação para com os homens que são ou tornaram-se escravos do próprio corpo. Detectou atitudes e posturas, além dos lugares onde há um incentivo a uma vida viciosa. Como se vê, os cuidados com o corpo, para Sêneca, perpassam todos os extratos da sociedade.

Para Sêneca, era preciso escolher exercícios diários, que estes fossem fáceis, mas que fatigassem o suficiente para serem rápidos e pouparem tempo para se dedicar a outras atividades. A educação do corpo está ligada muito mais ao controle das paixões, dos desejos desenfreados, de tudo aquilo que incentiva a uma vida cheia de vícios. Diz-nos o autor: “Não posso deixar que a alma amoleça; se fizer concessões ao prazer, terei de fazê-las à dor, ao cansaço, à pobreza; à ambição e à ira quererão tomar conta de mim; ver-me-ei dilacerado, despedaçado entre inúmeras paixões”.

Não se pode permitir, se se quiser atingir um modelo virtuoso, fazer concessões aos prazeres fáceis. Estes devem ser tratados como sendo os piores inimigos do homem justo e reto. Afirma o pensador: “Devemos evitar o mais possível tudo o que possa exercitar os nossos vícios. Devemos endurecer a alma, mantendo-a afastada de todas as seduções de prazer”.

Conforme falamos no capítulo anterior, o exame de consciência ou a prova diária de consciência define muito do que é esse educar-se a si próprio que Sêneca defende e propaga em seus escritos. O controle da ira, das vontades ruins, o controle das paixões poderá ser eficaz se existir uma investigação da consciência, pois ao final do dia estaremos sempre como que diante de um juiz para prestar contas de nossas ações. Essas questões aparecem de forma mais direta no De Ira que pode ser considerado como uma espécie de tratado de instrução para o autocontrole, contra a raiva e a agressividade. O grande motivo desta falta de controle está na falta de conhecimento. Dar pouca importância a questões importantes e dar importância demasiada a questões irrelevantes são uma demonstração dessa falta de conhecimento. Era preciso combater os males do corpo e da alma, evitar ambientes e ocasiões que incentivem atitudes de raiva e descontrole. Também no De Ira encontramos um Sêneca que recomenda e aconselha permanentemente e se mostra como um conhecedor da alma humana e como um oportuno educador da sociedade em que vive e transita.

A proposta senequiana do “educar-se a si mesmo” exige a superação de medos que são para ele, verdadeiros jugos, empecilhos na busca de um caminho virtuoso. Sêneca evidencia dois: o medo da morte e o medo da pobreza. Ao medo da morte a solução está em viver cada dia como se fosse o último, pois para Sêneca o que vale não é a duração da vida, mas a qualidade da mesma. O tempo de vida do homem é sempre suficiente se ele souber aproveitá-la em proveito próprio, na busca pela sabedoria em acordo aos desígnios da natureza. Conhecer a natureza é também uma forma de conhecer-se.

O medo da pobreza é algo que deve ser imediatamente abandonado, pois para Sêneca, o homem se torna fraco, um mal exemplo, quando se torna escravo do luxo e dos prazeres fáceis. Sabemos como ele se mostra implacável no julgamento que faz de homens que sucumbiram na busca por uma vida devotada à riqueza.

Sêneca preocupa-se constantemente em evidenciar a relação entre os estudos, ou seja, buscar uma sólida formação e o educar-se a si próprio, com metas a atingir uma perfeição moral. São aspectos que estão relacionados, pois o aperfeiçoamento moral é tarefa árdua e ininterrupta, senão vejamos: “Como pode alguém, aliás, aprender suficientemente a lutar contra os vícios se apenas dedica a esse estudo o tempo que os vícios lhe deixam livre?”.

Em determinado momento da carta 59, o pensador latino utiliza-se de um paralelo com os animais para atingir seu leitor, referindo-se a ele próprio, pois “nem sequer sei ainda uma coisa que a própria saciedade ensina instintivamente aos animais: a justa medida na comida e na bebida. Ainda ignoro qual a quantidade que devo consumir”.

Para Lucius Sêneca, é preciso uma vigilância atenta e contínua para se atingir aquilo que se propõe, quer seja, uma vida virtuosa, de paixões refreadas e hábitos modestos, porque para ele, “o mínimo gesto pode servir de indício da moralidade das pessoas”. Retomemos sempre a relação da vida pública e da vida privada, no intuito de reforçar a nossa argumentação. Assim, para Sêneca, a postura adotada na vida privada poderia ter reflexos na vida pública.

Uma vida reta não deve ser procurada nos banquetes, nas bebedeiras ou nas ruas; porém, dentro de si próprio, nos exercícios constantes e diuturnos e nos mestres da filosofia que buscamos, inicialmente com a ajuda de um preceptor, depois, quando a segurança permitir, essa busca pode ser feita de forma solitária, “porque é mais fácil manter os vícios á distância do que refreá-los depois de introduzidos em nós”. O que Sêneca propõe é quase como um roteiro que o potencial leitor poderia ou deveria seguir para atingir o modelo ideal de conduta em suas mais diversas ações. Seu leitor é sobretudo o príncipe que necessita ser educado para a lide com a administração pública; também deseja atingir seus pares que através da leitura de seus textos, possam repensar suas ações na vida pública e na vida privada. Mas, qualquer potencial leitor que tiver acesso as suas reflexões, pode ser atingido pelos seus ensinamentos, por aquilo que Sêneca considera uma tarefa necessária como pensador estóico. Essas orientações senequianas também permitem constatar um modelo de pedagogia, pois ele fala de e a todos os extratos sociais, e um educar-se a si mesmo que melhora a postura do homem perante todos, inclusive na educação de seus filhos. Uma boa educação evitaria atitudes inoportunas de filhos pequenos que poderiam trazer conseqüências funestas no futuro. Era preciso, portanto, “cortar o mal pela raiz”, pois os vícios podem se tornarem permanentes como uma doença da alma, (morbus animi).

Vimos no primeiro capítulo que a busca do princeps por uma vida devotada à virtude, no segundo essa busca pelo cidadão por atingir uma vida virtuosa inclusive no campo político, requer grandes sacrifícios; na medida em que o corpo é o grande depositário desta, é preciso reservar grande espaço para tal empreitada, e, portanto, expulsar do corpo aquilo que é desnecessário e nocivo ao homem de bem, seja ele um cidadão comum, seja ele um mandatário.

Para se atingir este modelo de homem de bem é preciso buscar uma vida na retidão. Lucílio, exemplo notório aos nossos propósitos, é considerado um homem que está no caminho do bem, porém ainda não “está pronto”, como o filósofo afirma dele próprio. “Ninguém pode simultaneamente ser livre e escravo do corpo; para não falar de outras tiranias que o excessivo cuidado com ele nos impõe, a soberania do corpo tem exigências que são autênticos caprichos”.

Em trecho escrito a Lucílio, Sêneca reafirma como o faz em outros muitos trechos das Epístolas Morais, a relação que estabelece entre a formação intelectual e o constante educar-se a si próprio:

Lucílio, meu amigo caríssimo, eu não te desaconselho a leituras dessas matérias, desde que extraias imediatamente as respectivas implicações morais. Corrige os teus costumes, reanima o que em ti esteja débil, reforça o que não é assaz firme, domina as tuas teimosias, reprime quanto puderes as tuas teimosias, reprime quanto puderes as tuas ambições, privadas e públicas (...) tirando de tudo proveito para a tua formação moral, para a repressão das paixões nocivas. Estuda, em suma, não para saber “mais”, mas para saberes “melhor”.

Para se atingir o modelo perfeito, é preciso ter clareza do alvo que se quer atingir; sabendo o estado do espírito e do corpo ao partir e do caminho a ser percorrido; pois agindo assim o homem de bem adquire coragem e discernimento para esta árdua tarefa. A autoconfiança é, para Sêneca, a melhor arma para enfrentar os obstáculos deste caminho, e mais, ter autoconsciência dos erros cometidos é o início da cura. Vemos que ele trata uma vida de vícios, desviada do caminho da retidão como uma espécie de doença que deve ser curada, e o educar-se é um dos caminhos mais adequados. Citamos na epígrafe de outro sub-capítulo que para Sêneca, o estudo da filosofia deve ser buscado com frugalidade e não com suplícios. Assim, buscar a educação é educar-se, e esse educar-se perpassa todos os aspectos da vida do homem, pois “uma boa parte de nossa liberdade está em um estômago bem educado e habituado a sofrer contrariedades”.

Em suma, podemos concluir que para Sêneca, o “educar-se a si próprio”, perpassa todos os aspectos da vida de um homem, e neste, o filósofo latino apresenta um modelo de conduta para o primeiro século da era cristã e defendemos que também para épocas vindouras. Educar-se para uma perfeita conduta pessoal, moral e política; educar-se para servir ao próximo, amigo ou estranho; educar-se para que na escolha de um estilo de vida, servir de bom exemplo para toda a sociedade; educar-se para quando assumir cargos, saber conduzir os negócios públicos. Sêneca disse ao leitor: “(...) assim eu quero o nosso espírito: que domine muitas técnicas, conheça muitos preceitos e exemplos de muitas épocas”. Podemos verificar que no seu projeto de educação pessoal, ele visualiza a necessidade do exercício diário que deveria ser buscado através dos ensinamentos do estoicismo e de outras escolas assim como de exemplos de outras épocas. Portanto, as orientações de Sêneca caminham para podermos afirmar que a história aqui pode ser lida como magistra vitae.

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Fonte:
MARCOS LUIS EHRHARDT: “O ARQUITETO DO SOCIAL: SÊNECA E A CONSTRUÇÃO DE MODELOS PARA A SOCIEDADE ROMANA NOS TEMPOS DO PRINCIPADO A PARTIR DA HISTORIA MAGISTRA VITAE”. (Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor de História. Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto. Linha de Pesquisa: Cultura e Poder). Curitiba, 2008.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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