Ordem e Consciência em Shakespeare e na Era Elisabetana



Ordem e Consciência em Shakespeare e na Era Elisabetana

A consciência é um dos problemas mais significativos em termos morais, teológicos e até filosóficos na obra de Shakespeare e na era elisabetana e jacobina. Consciência e ação são duas facetas que determinam as ambigüidades profundas de personagens como Hamlet, Macbeth, Brutus e Lear, de modo que trazem à tona sua complexidade e riqueza através de uma série de paradoxos irreconciliáveis, causados pelas tramas em que estão enredados.

Nesse sentido, Stephen L. Collins, em sua obra From Divine Cosmos to Sovereign State, argumenta que a consciência moral no período elisabetano era determinada pela idéia de ordem e de correspondências entre o poder divino e dos reis, entre o macrocosmos e o microcosmos. A ordem política era extremamente coercitiva e seus parâmetros morais eram um meio eficiente para coagir o indivíduo a agir dentro dos padrões de hierarquias monárquica e teológica determinantes. Qualquer tentativa de não-cooperação com o bem-comum podia levar à “frustração e ao ostracismo”. Os teóricos da era Tudor, como Thomas Elyot, Francis Walsingham e Thomas Cranmer, estavam bastante preocupados na manutenção da ordem social e política do reino e, por isso, moldaram um sistema de pensamento com bases medievais, que era regularmente pregado através das homilias. Conseqüentemente, a esfera pública era colocada em primeiro plano, a fim de moldar o privado. O “inner-self” era determinado pela estrutura coercitiva e de ordem da política, que eram transferidos para ele em termos teológicos formalmente arquitetados nas Homilias. Como assinala Collins, “a relação público-privada que provinha da idéia de ordem Tudor necessitava de uma repressão severa da auto-expressão e do potencial.” (COLLINS, 1989, p. 22).

Por conseguinte, a idéia de ordem não só operava no plano político, mas era uma estrutura determinante da consciência e da interioridade do indivíduo. As relações entre público e privado, macrocosmos e microcosmos eram tão intrínsecas, que a noção de ordem era diretamente transposta do plano político para as descrições da alma:

Porque o mundo era naturalmente ordenado, a alma do indivíduo era do mesmo modo ordenada. Uma alma virtuosa era uma alma ordeira; uma alma corrupta era desordeira ou doente. Dessa forma, a psicologia Tudor entendia que o comportamento desordeiro num indivíduo era uma perversão do que era natural e bom, assim como uma sociedade desordeira era uma perversão de uma sociedade ordenada. A desordem era antinatural. Era simplesmente a negação do que era bom e natural e não tinha existência definida própria. A intemperança e a confusão, explica Robert Mason, era a razão gravada na luxúria e concupiscência. (COLLINS, 1989, p. 23-24)

Desse modo, virtude, temperança e moderação eram ordenadoras do comportamento do indivíduo. Sua ação e conduta revelavam sua virtude ou corrupção, pois a virtude direcionava a conduta correta, ao passo que a conduta desordeira era determinada pelo vício e pela corrupção moral. (COLLINS, 1989, p. 24). Nesse sentido, para Collins, o “Self era visto mais em termos de honra e reputação do papel de alguém na vida do que como algo gerado fora do ego.” (1989, p. 21). Nota-se aqui que os elementos condutores e definidores da consciência assumiam diversas dimensões, pois esse sistema de ordem, apesar de tentar conter situações de desordem, produzia insegurança tanto quanto insatisfações que obrigavam tal sistema criar modos de circunscrever a ação do indivíduo dentro dos padrões de ordem esperados na época.

Outro aspecto da idéia de ordem no período era que os lugares-comuns e a ética Tudor e Elisabetano-jacobina tinham suas bases na conciliação da vontade e da razão (COLLINS, 1989, p. 24). Conforme assinala Collins, havia uma divisão psicológica do corpo em três partes:

Sendo a mais alta o lugar da razão que direcionava a ação humana. O desejo desgovernado levava à desordem e ao caos. A ordem e a hierarquia, os pré-requisitos para um bem-estar público, revelavam a disposição divina de “influenciar a compreensão”. O bom conselho, esse lugar comum Tudor onipresente, era certo, bom e honesto. (COLLINS, 1989, p. 25)

Novamente aqui, a razão era considerada certa sempre que motivasse o comportamento racional, ao mesmo tempo em que o comportamento era considerado bom e certo quando conduzido pela razão e não pelas paixões e interesses individuais. Collins estabelece uma analogia entre a psicologia Tudor e a psicologia moderna: “Na terminologia moderna, a psicologia social Tudor era orientada pelo superego. O ego e o id do indivíduo eram controlados. Quanto mais o ego controlava o id, tanto mais se assemelhava ao superego e apropriava-se à “razão correta” como sua jurisdição própria.” (1989, p. 25). O senso de dever estava circunscrito na obediência irrefletida do indivíduo, que se definia a partir de uma modelagem exterior, e não a partir da auto-reflexão cognitiva e racional. Assim, percebe-se como os elementos da idéia de ordem na Era Tudor e Elisabetana eram primordiais para a política do reino com o objetivo de determinar a individualidade e a consciência moral, e em termos gerais, a psicologia social estava voltada para conter as rebeliões e as massas.

Por isso, a ponderação, moderação e a temperança eram virtudes extremamente elogiadas e estimuladas. Collins assinala que era óbvio que a ética Tudor dependia da repressão e que a razão era um agente repressor. Além do mais, na medida em que a razão era considerada uma virtude divina, natural e inspiradora da conduta correta, a ética Tudor reforçava a idéia de ordem (1989, p. 25) e, desse modo, definia os traços da consciência moral.

A importância do comportamento “decoroso” era extremamente ressaltada pelos teóricos da época, tais como Elyot, Starkey e Ratcliffe, a ponto de “as paixões e desejos individuais serem constantemente denegridas pelos escritores Tudor” (COLLINS, 1989, p. 25). Segundo Collins, eles não consideravam a introspecção como um meio de se chegar ao “comportamento verdadeiro e bom” (1989, p. 25), pois essa era considerada antinatural e até doentia. Por conseguinte, a idéia de mutabilidade também era fortemente reprovada no período. A idéia de história cíclica era muito mais apropriada para os fins da política e da ideologia Tudor, do que a idéia de mutabilidade histórica. Nesse sentido, as mudanças históricas e políticas estavam intimamente ligadas às mudanças psicológicas e à percepção e à compreensão da realidade política e histórica. Como analisa Collins,

As mudanças políticas indicavam mudanças na psicologia pessoal também; essas mudanças não foram facilmente incorporadas dentro da idéia de ordem. A era elisabetana testemunhou uma crescente autoconsciência que era freqüentemente projetada no nível do grupo. Parlamentares, mercadores e artistas começaram a experienciar a realização e a segurança em suas ocupações. O mesmo sentimento motivava o comportamento num nível individual. A disparidade entre tais sentimentos e os valores socialmente aceitáveis provocou uma grande quantidade de frustrações. Homens como Essex e Bacon e as tragédias como Edward II e Hamlet dão prova desse fato. (1989, p. 27)

Se a política coercitiva das idéias de ordem não conseguia conter as transformações sociais e psicológicas na época, tais transformações sociais, políticas e históricas tiveram um impacto sobre a psicologia do período, aumentando a autoconsciência da realidade em que se vivia. Assim, casos como Hamlet e Macbeth, por exemplo, incorporam um espírito em profundas transformações psicológicas que já não se adequava às estruturas de pensamento centrado na ordem do mundo e dos fatos, mas buscava em si mesmo redefinir sua própria individualidade e modo de conduta no mundo. A rejeição dos padrões de ação em Shakespeare revela uma guinada rumo às mutações e à ambigüidade de caráter que se apresenta mais voltado para si mesmo do que para uma idéia cósmica de ordem, numa atitude para nuançar, explorar e enfatizar as dimensões mais profundas do caráter e da interioridade nesse cosmos que já mostrava sinais de crise.

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Fonte:
Carlos Roberto Ludwig: “TENSÕES POLÍTICAS E PSICOLÓGICAS EM MACBETH E NO DRAMA DE SHAKESPEARE”. (Orientadora: Profa. Dra. Kathrin H. Rosenfield Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada, apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Porto Alegre, 2008.

Nota
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