Projeções: a obra shakespeariana no cenário pós-moderno:



Projeções: a obra shakespeariana no cenário pós-moderno:

Esse projeto dos meios de comunicação de massa de democratizar não apenas a obra shakespeariana, mas praticamente todas as grandes obras canônicas, até recentemente resguardadas numa redoma de vidro acadêmica soa, de fato, muito nobre, mas não deixa de oferecer certos riscos potenciais. Isso porque é inegável que obras como Looking for Richard eS hakespeare in Love não constituem a regra na indústria cinematográfica ocidental, ou em quaisquer outros mass media, seu caráter excepcional sendo, justamente, a razão para este seu estudo.

O primeiro desses riscos seria a possibilidade de um empobrecimento do legado cultural da obra shakespeariana. Infelizmente, a produção cultural dos e para os meios de comunicação de massa não costuma caracterizar-se pela riqueza artística que se verifica nas obras de nosso corpus. Como já foi salientado, são inúmeros os filmes cinematográficos e televisivos criados anualmente a partir da obra shakespeariana; porém, raros são aqueles que merecem (ou demandam) uma segunda apreciação. Apesar de Shakespeare ser, hoje, um excelente produto nas exportações britânicas, como salienta um entrevistado de Pacino, a verdadeira qualidade de sua obra não é de conhecimento popular. Isso se deve não somente à superficialidade da maioria das obras que a retomam, mas também, e talvez principalmente, ao paulatino declínio da leitura como entretenimento e a uma certa elitização do público teatral, processos intensificados pelo aprimoramento tecnológico da televisão e do cinema. Na visão de Leyla Perrone-Moisés:

A crise da literatura é também uma crise do livro. A palavra impressa em livro tornou-se algo arcaico face aos novos meios de comunicação. Entretanto, não é o livro que está ameaçado. Mais do que as mutações tecnológicas elas mesmas, que não excluem a arte de escrever e editar livros, podendo até renová-la, foram as mudanças de visão de mundo, de motivações e de comportamento que tornaram obsoleta a prática da literatura. (1997, p.87)

Assim, embora muito se fale sobre Shakespeare nos mass media, os textos de sua autoria são cada vez menos conhecidos. Os enredos de conhecimento popular são somente aqueles que ganharam versões fílmicas recentes e de sucesso (Romeo and Juliet, Hamlet, Othello, por exemplo), sucesso esse muitas vezes garantido pelas estratégias de marketing e venda dos estúdios, e não tanto pela qualidade das adaptações em si. Nesse sentido, parece ser válido questionar em que medida os meios de comunicação de massa não estariam prestando um “desfavor” ao legado cultural da obra shakespeariana, contribuindo para sua distorção e distanciando-a ainda mais do grande público ao transformá-la no “verniz” de que fala Moriconi.

Tal questionamento, no entanto, deve ser o mais imparcial possível, desprovido de todos os preconceitos que costumam vir à tona em tais discussões. Deve-se considerar, por exemplo, que sempre houve, em quaisquer formas de expressão cultural, boas e más produções artísticas. O fato de apenas algumas poucas obras sobreviverem à passagem do tempo tende a fazer-nos esquecer que as gerações passadas não produziram apenas obras-primas, levando-nos a um certo excesso de rigidez para com os artistas da atualidade. Além disso, é preciso levar em consideração que nem mesmo as mais sofríveis dentre as inúmeras traduções, adaptações e releituras da obra shakespeariana feitas ao longo dos quatro séculos de sua existência foram capazes de roubar-lhe o brilho ou diminuir-lhe o valor cultural.

Se existe, de fato, algo que mereça ser taxado de “lixo cultural”, ainda assim deve-se reconhecer que esse tipo de produção preenche seu papel sócio-cultural. O que não se justifica, no entanto, são avaliações radicais e preconceituosas que aprioristicamente rotulam como inferiores uma gama enorme de obras pelo simples fato de serem de forte apelo popular. Cabe à crítica, portanto, valer-se de instrumentais teóricos bem fundamentados para analisar a obra pelo que ela realmente oferece em termos de construção artística, sob o risco de tornar-se cega ao surgimento de novos artistas de grande valor.

O segundo risco potencial seria o de um esvaziamento do papel cultural e formativo da arte em decorrência do excesso de mercantilização. Já hoje, se pode observar que quadros de grandes pintores são disputados em leilões não tanto por suas qualidades artísticas, mas muito pela vaidade dos compradores, sequiosos por demonstrar publicamente seu poder de compra. A música e o teatro, por sua vez, são consumidos por públicos cada vez mais atraídos pela fama dos intérpretes, os “ídolos”, e não pela busca do belo, do instigante, do artístico propriamente dito. Embora um visionário, Benjamin não poderia imaginar as proporções que o star system viria a assumir nos nossos dias, mesmo assim ele diagnosticou com precisão o nascimento desse fenômeno:

À medida que se restringe o papel da aura, o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a ‘personalidade’ do ator: o culto da ‘estrela’, que favorece o capitalismo dos produtores cinematográficos, protege essa magia da personalidade, que há muito já está reduzida ao encanto podre de seu valor mercantil. (2000, p.239)

Sem dúvida, a mercantilização da cultura trazida pela pós-modernidade tem efeitos capazes da apavorar os amantes da arte. Para Benjamin, a solução seria desvincular a arte cinematográfica da mentalidade capitalista, algo que não deverá ocorrer tão cedo em função da atual imbricação de ambas. Entretanto, acreditamos não haver razões para se supor uma derrocada da arte pela mercantilização. Mesmo a literatura, em seus tempos áureos de popularidade, foi relativamente massificada, como no caso do folhetim brasileiro, o que não resultou em seu esvaziamento. Além disso, é preciso levar em consideração o avassalador crescimento da televisão como meio de comunicação de massa e como espaço privilegiado da propaganda capitalista que Adorno e Hokheimer (2000) identificam como base do cinema dos anos 40. Portanto, assim como o cinema “roubou” o caráter popular da literatura, é possível que a televisão venha a fazer o mesmo com a sétima arte, libertando-a de seu compromisso com a ideologia capitalista. Tal discussão, no entanto, é demasiado complexa para ser satisfatoriamente desenvolvida aqui. Além disso, por mais que levantemos hipóteses e façamos projeções, somente o tempo dirá que caminhos as sociedades ocidentais e suas respectivas formas de expressão artística irão percorrer daqui para frente, pois suas ações, positivas ou danosas, serão sempre determinadas pelas imprevisíveis relações humanas.

Uma conclusão, no entanto, parece plausível: o pós-modernismo é passageiro. Certamente que não podemos prever por quanto tempo ele ainda sintetizará as concepções artísticas e filosóficas em voga, mas, a julgar pelo desfecho de todos os outros movimentos que o antecederam, ele está fadado a enfraquecer e ser substituído por uma nova corrente do pensamento ocidental. Quer dê continuidade, quer oponha-se às premissas pós-modernistas, o movimento subseqüente irá, invariavelmente, redimensionar não apenas o papel da tradição cultural, mas também o valor das obras cinematográficas que aqui exaltamos.

Em vista disso, é preciso uma boa dose de sensatez na avaliação da representatividade de tais obras no todo da tradição cultural ocidental. Sem dúvida, Shakespeare in Love e Looking for Richard constituem grandes obras cinematográficas que, hoje, desempenham, juntamente com diversas outras, importante papel na democratização do legado cultural shakespeariano. Graças a elas, a obra do bardo recebeu um novo sopro de vida, foi redimensionada e provou, uma vez mais, a pertinência de seus temas, de seus personagens e de sua poesia a contextos tão diversos daquele em que foi criada. Graças a elas, também, o anestesiado público cinematográfico foi, ao menos por duas vezes, desafiado a apreciar arte sem ter de abrir mão de suas pipocas e refrigerantes.

Sendo obras essencialmente pós-modernistas, no entanto, os próprios filmes de Madden e de Pacino estão fundamentados na premissa de que seus discursos são frutos de um momento e, como tal, transitórios. Nesse sentido, por mais revolucionária que hoje possa parecer a abordagem que fazem à obra canonizada de Shakespeare, amanhã essas obras poderão ser postas de lado. Por mais otimistas e entusiasmados que sejamos, portanto, não podemos afirmar que tais obras serão capazes de influenciar a recepção do texto shakespeariano a ponto de dar origem a uma efervescência cultural semelhante àquela do período elisabetano em contextos futuros. Tampouco podemos afirmar categoricamente que tais obras já tenham fixado prosthetic memories de Shakespeare e de seus personagens no imaginário ocidental. Entretanto, os filmes já cumprem um papel cultural importantíssimo que não deverá se apagar: o de registrar, na obra verdadeiramente artística, o polêmico e instigante pensamento pós-modernista.

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Fonte:
ELAINE BARROS INDRUSIAK: “LOOKING FOR RICHARD E SHAKESPEARE IN LOVE: SHAKESPEARE PELA ÓTICA DO CINEMA HOLLYWOODIANO PÓS-MODERNISTA”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de mestre. Área de Literatura Comparada. Orientadora: Profª Drª RITA TEREZINHA SCHMIDT). UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre, 2001.

Nota
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Disponível digitalmente no site: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BDTD

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