Sêneca: História e Tragédia



Sêneca: História e Tragédia

A obra do poeta e filósofo Lucio Aneu Sêneca acentua essa tendência poética dos latinos, ora apresentada. Expressamente adaptadas ao gosto de sua época, as tragédias senequinas farão jus a essa estética da grandiloqüência, do requinte retórico, do didatismo e da exacerbação patética. Antes de tratarmos mais detidamente da obra de Sêneca, teceremos algumas considerações acerca da trajetória do mesmo pelo contexto da Roma imperial júlio-caludiana, haja vista que não poderemos prescindir das contingências históricas e espirituais que colaboraram com o espectro representacional do drama trágico senequiano.

A tragédia de Sêneca, imersa numa conjuntura política e social bastante complexa, carrega as cores sangrentas da dinastia júlio-claudiana, levando à cena o horror das ações escabrosas e violentas, para não dizer sádicas, de heróis culpabilizados e criminalizados. A dinastia júlio-claudiana, período de governo dos quatro sucessores de Otávio Augusto, a saber, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero (14-68 A.D.), ficou conhecida como a “época do terror”, em virtude da aplicação de métodos de violência sistemática por parte do império ( Cláudio em menor grau) contra aqueles que ameaçavam o sistema de governo implementado. A participação direta de Sêneca nesse sistema político terá considerável contributo na feitura do universo trágico de seus dramas. Segundo John G. Fich, na introdução à sua tradução das tragédias de Sêneca, a vida política de nosso autor é demarcada por cinco fases: 1) Nos anos 30, ele ingressou na vida pública quando eleito para questor e logo depois para senador. Tamanho foi seu brilhantismo como orador que, segundo alguns relatos, despertou a inveja de Calígula; 2) No primeiro ano do governo de Cláudio, Sêneca foi exilado para uma ilha da Córsega. A respeito do verdadeiro motivo da condenação, acredita-se que tenha sido por inimizade de Messalina, a esposa de Cláudio, a qual o acusou de adultério com uma irmã de Calígula. O exílio prolongou-se por oito anos; 3) O retorno a Roma em 49 foi requisitado por Agripina, a qual convidou Sêneca para ser tutor em Retórica de seu filho. A pretensão de Agripina consistia em fazer uso do crescente prestígio de Sêneca, como um homem das letras, para conquistar o poder do império através de Nero; 4) Em 54, Sêneca tornou-se o assessor de Nero. Os notáveis discursos públicos que compôs para o imperador e a coerência com que conduziu os assuntos do império foram responsáveis pela prosperidade e ordem dos primeiros anos da administração de Nero; 5) Finalmente em 62, após a morte de Burro, Sêneca afasta-se da vida pública e em 65 é levado a cometer suicídio, por ter sido acusado de participar da conspiração de Pisão.

Segundo nos informa Kovaliov em sua Historia de Roma, a oposição aristocrática foi aquela que mais se impôs contra os excessos dos imperadores. Como o espírito republicano em Roma nunca arrefeceu, o imperador Augusto prudentemente deu feições de república ao seu império, de modo que a oposição republicana manteve-se inerme. Porém, os sucessores júlio-claudianos, tendo recebido uma educação de espírito monárquico, partiram para uma política de despotismos, o que os levou a enfrentar a crescente oposição dos republicanos provinda das tradicionais gentes da antiga aristocracia. Assim, enquanto que com Augusto o império gozou da soberba pax augusta por 44 anos, com a dinastia júlio-claudiana, Roma passa a ser regida por uma política de terror e perseguição ostensivos.

Com Tibério, cujo governo estendeu-se de 14 a 37, são decretados inúmeros exílios, confiscos, processos de traição e de lesa-majestade. Também com ele foram impedidos os principais instrumentos democráticos preservados no principado de Augusto. Extinguem-se os comícios, o senado perde autoridade, servindo de ferramenta autocrática de terror. Todas essas medidas foram empreendidas em virtude da atmosfera de complô que pairava sobre a figura do imperador pouco aceito entre os cidadãos e a camada plebéia de Roma.

Já o governo de Calígula (sobrinho de Tibério) foi marcado pelo desequilíbrio psíquico do imperador. Entre os relatos mais conhecidos da insensatez de Calígula estão a exigência de que lhe fossem concedidas honras divinas, de modo a comparar-se a Júpiter, e o desejo de que seu cavalo favorito fosse feito senador. O ostensivo regime terrorista de Calígula levou à formação de dois complôs para atentar contra sua vida. O primeiro, regido pelo chefe das legiões da Germânia superior, Cneu Cornélio Léntulo Gentúlico, foi descoberto, o que desencadeou uma elevada onda de terror. Em 40, uma nova conspiração foi organizada, na qual participaram os comandantes dos pretorianos. Em 41, Calígula foi morto pelas punhaladas dos conspiradores.

Durante o governo de Cláudio, imperador romano de 41 a 54, tido por Suetônio como uma figura torpe, atrapalhada, de personalidade fraca, o império romano foi comandado por alguns colaboradores, tais como os libertos Calixto, Narciso, Palante e Políbio, com os quais o imperador galgou êxitos políticos e militares. Entres esses êxitos está a conquista da Bretanha no ano de 43. Cláudio também arrefeceu consideravelmente o regime de terror aplicado pelos seus antecessores. O senado voltou a ter certa autonomia e foram suspensos os processos de lesa-majestade. Também a política provincial de Cláudio concedeu um vasto número de direitos à cidadania romana; em 48, foi concedido o jus honorum aos gauleses, favorecendo-os com o acesso ao senado. Porém, com uma vida familiar muito atribulada, passou por quatro casamentos, dentre estes se destaca a figura notória de uma das suas esposas, Messalina, a qual chegou ao ponto de celebrar bodas oficiais com o amante Cayo Silio, estando casada com Cláudio. Depois da morte de Messalina, condenada junto com seu amante por traição, o imperador toma por esposa Agripina, a qual logrou o afastamento do herdeiro direto do trono, Britânico, dos assuntos do império, fazendo ser adotado o próprio filho, Nero Cláudio César, pelo imperador, para que este Nero tivesse o direito de herdar o império. Também a filha de Cláudio, Otávia, foi dada como esposa a Nero, no intuito de se estreitar, de vez, o vínculo com a família imperial. Um ano depois, em 54, Cláudio morre misteriosamente. Entre tantas versões, acredita-se que fora Agripina que o matara envenenado para assegurar o trono ao filho. Conforme Kovaliov, a morte do imperador permaneceu oculta até que fosse assegurado o apoio dos pretorianos a Nero, os quais lhe conferiram os poderes de imperator.

Nero subiu ao trono quando ainda não tinha completado dezessete anos. No princípio de seu governo, os assuntos do império foram decididos por Afrânio Burro, o prefeito dos pretorianos, e por Sêneca, convidado por Agripina a ser preceptor do jovem imperador. De início, a política interna conduziu-se sem grandes problemas. No entanto, o círculo da família real foi cindido em dois grupos antagônicos, de um lado Sêneca e Burro, do outro Agripina, cada qual almejava exercer influência sobre o imperador. A atmosfera criminosa da dinastia julio-claudiana solidifica-se, no governo de Nero, com a obscura morte do filho de Cláudio, Britânico. De acordo com os historiadores latinos, tal morte teria sido perpetrada pelo imperador temente da popularidade de Britânico. Segundo Kovaliov, o mistério dessa morte serviu de álibi para Agripina, que, sentindo-se enfraquecida em sua influência sobre o filho, o ameaçara, alegando possuir uma carta reveladora escrita por Britânico. Farto das críticas e atitudes hostis da mãe, o imperador tratou de livrar-se de sua inimiga, elaborando um plano para que ela perecesse em um naufrágio: fez preparar uma nau, de modo a desconjuntar-se em alto-mar. No entanto, tal plano foi mal-sucedido, uma vez que a mãe do imperador conseguira escapar a nado do desastre. Logo Nero apressou-se em arranjar um motivo para dar cabo à vida de Agripina; tratou de incriminá-la de tentar assassiná-lo e fez com que um grupo de soldados, a mando do liberto Aniceto, a executasse. Junto a esse acontecimento, morre Burro, e para substituí-lo é nomeado como novo prefeito dos pretorianos Sofonio Tigélio, figura conhecida por açular a perniciosidade no imperador. Assim, Sêneca afasta-se da vida pública, em virtude da impossibilidade de exercer alguma influência sobre Nero. A esse respeito afirma Kovaliov:

Vendo Seneca que Nerón se escapaba definitivamente de sus manos, retiró de la vida pública. Así desapareció tambien el último freno y el imperador pudo entregarse sin obstáculos a sus pasiones teatrales, a la prodigalidad y al libertinaje, perdiendo en poço tiempo toda contención.

Depois desses acontecimentos, o regime senatorial foi praticamente extinto, para que o imperador fosse a única voz de decisão no que diz respeito ao andamento político do Império, e foram retomadas as condenações e as confiscações de diversos membros da oposição republicana. Tais atitudes serviram não só para sufocar a oposição, mas também para aumentar os recursos empreendidos nos gastos colossais realizados pelo imperador. Como resposta a isso, foi organizada em 65 uma conspiração composta por diversos membros do círculo eqüestre e senatorial. Calpúrnio Pisão, o cabeça da conspiração, era um jovem de família nobre que pretendia proclamar-se imperador após a morte de Nero. Devido à debilidade da organização, o imperador descobre e sufoca o complô de Pisão. Logo ordena diversas execuções, entre as quais, encontra-se a de Sêneca e de seu sobrinho, o poeta Lucano, acusados de envolvimento nessa conspiração. Conforme relato de Tácito, a morte de Sêneca foi digna de sua própria dramaturgia trágica. Tendo recebido a ordem de Nero para suicidar-se, Sêneca executou sua morte com a mesma serenidade pregada pela sua filosofia. Abriu as veias do braço, como o sangue corria muito lentamente, cortou as veias da perna. Contudo, a morte demorava a chegar, então pediu a seu médico para que lhe desse uma dose de veneno. Como este não surtiu efeito, enquanto ditava um texto a um dos seus discípulos, tomava banho quente para ampliar o sangramento. Por fim, fez com que o transportassem para um banho a vapor e, ali, morreu sufocado.

Em face dos abusos do imperador, tanto a insatisfação interna da urbe quanto das províncias romanas geraram uma onda de revoltas que teve como clímax a insurreição da Espanha e da província da Gália Lionesa, governadas respectivamente por Galba e Víndex. As legiões da Germânia Superior foram enviadas à Gália para conter a revolta. Derrotado Víndex, os soldados germânicos exigiram que o governador da Germânia Superior, Virginio Rufo, fosse nomeado o novo imperador. É certo que Rufo se negou a aceitar essa nomeação. Porém a permanência de Nero no poder se tornava cada vez mais insustentável. A notícia da revolta de Víndex teve uma repercussão negativa para a imagem do imperador. Os pretorianos passaram a vacilar na defesa de Nero, o que levou o novo prefeito, Nifídio Sabino, a favorecer Galba, de modo a torná-lo, entre os pretorianos, o pulso necessário para conduzir Roma. Logo Nero foi condenado pelo senado, e depois de muitas vacilações, suicidou-se.

Note-se que, embora Sêneca tenha pertencido à corte, na qual desempenhou importante papel, ainda assim, não ficou isento de perseguição: foi hostilizado por Calígula, exilado por Cláudio e condenado à morte por Nero. Não por acaso que escolheu o gênero trágico como expressão artística, através do qual pode expor seus pensamentos alegoricamente, de modo a configurar seus heróis trágicos em uma universo representacional que se assemelha à ambiência de vileza, traição, violência e terror da corte júlio-claudiana.

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Fonte:
LEYLA THAYS BRITO DA SILVA: “VÊNUS IMPURA: TRAGICIDADE, ETHOS E TRANSGRESSÃO NA FEDRA DE SÊNECA”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Literatura e Cultura. Linha de Pesquisa: Tradição e Modernidade. Orientadora: Profª Drª. Sandra Luna). João Pessoa, 2009.

Nota
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