Um modernista inquieto e autêntico

UM MODERNISTA INQUIETO E AUTÊNTICO

Certa vez Drummond escreve a Martins de Almeida explicando sua entrada no modernismo e aprovando o fato de este ter aceitado o movimento: Me sinto contente, Martins de Almeida, meditando na responsabilidade que tenho nesse acontecimento (a aceitação do modernismo por Almeida). Você teima em não admitir as expressões novas da arte e da literatura que começavam a aparecer no Brasil, expressões que também eu ainda não assimilara bem, mas pelas quais tinha uma larga simpatia. Mas quando eu o peguei ali no bar do ponto e o levei ao Grande Hotel, onde o pus em contato com os viajantes mais inteligentes que já estiveram em Minas Gerais – Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars – você não pôde deixar de sofrer a forte “ação de presença” daquelas personalidades tão agressivamente novas e tão fascinadoramente irradiantes. (ANDRADE, 1927, APUD GLEDSON, 1981, p.26).

A primeira fase do modernismo não chegou a ser dominante nos escritos de Drummond, pois mesmo sua estética sendo totalmente moderna, questionava os propósitos modernistas, já que não acreditava no desenvolvimento de uma nova literatura feita de uma hora para outra, achava que Mário e principalmente Oswald de Andrade eram deslumbrados e muito fascinados pelas novas tendências. Admitia sim que uma nova tradição seria conseguida, mas a longo prazo. Dizia que os poetas eram neo-românticos e que deveriam controlar os impulsos interiores, poderiam ser românticos, mas com uma “feição definitiva” e equilibrada. Ele se opunha ainda ao nacionalismo exacerbado proposto pelos modernistas:

mas acontece que o nacionalismo, mesmo em suas modalidades mais amplas, é um princípio antipático. Ele repugna aos espíritos sadios e lúcidos. Admissível na ordem política, é de todo inconveniente na ordem estética. E é um doce engano, esse de que teremos uma literatura genuinamente brasileira apenas com a utilização de motivos genuinamente brasileiros. Assim, fazer poesia tropical à outrance é um ingênuo delírio. (ANDRADE, 1927, APUD GLEDSON, 1981, p.34).

A liberdade tão idealizada pelas vanguardas e pelos modernistas é algo que Drummond desejava para sua obra, mas ele a via com certa cautela, pois para ele a liberdade adquirida era puramente formal. A liberdade não podia ser completa, como queriam os românticos. Como ele mesmo explica, não é possível negar de todo o passado, não é possível libertar-se dele por completo: “Evidentemente não posso negar o passado: um enforcado não pode negar a corda que lhe aperta o pescoço. Mas tenho o direito de afirmar que a corda está apertando demais, puxa. (ANDRADE, 1927, APUD GLEDSON, 1981, p.51)”.

O escritor cresceu e amadureceu com o modernismo, tanto que o questionava na busca por algo mais substancial e menos idealizado. Nas correspondências que trocava com Mário de Andrade muito de literatura era discutido. Drummond não aceitava prontamente as ideias de nacionalismo exaltado propostas pelos primeiros modernistas, sempre agia com cautela, defendia seus pensamentos e posicionava-se criticamente quando não concordava com algo, mas, em nenhum momento, deixou de respeitar a opinião dos autores que já eram consagrados quando ele iniciou seus escritos. Era rigoroso consigo mesmo e alertava para o futuro da literatura.

Rapazes, se querem que a literatura tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que, côo todas as utopias, avança inexoravelmente), reformem o conceito de literatura. Já não é possível viver no clima das obras primas fulgurantes e ... podres, e legar ao futuro apenas esse saldo dos séculos. Reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem o espetáculo novo de que estão participando. (ANDRADE, 1964, p. 505).

O autor sofreu influência dos poetas modernos, mas seu amadurecimento se deve, sobretudo, ao fato de que a revolução e a efervescência iniciais estavam mais contidas. Herdou dos primeiros poetas “uma série de descompromissos, colhidos principalmente na poesia de Mário e Oswald: negação de pruridos europeus e aproveitamento do popular, do coloquial” e mais “acrescentaria um dado importante à prosa feita nessa fase: o ‘sentimento do mundo’, caráter universal, sem abstrair nem se afastar dos valores locais, quer nos aspectos formais ou na linguagem” (BRASIL, 1971, p. 16).

Drummond teve traços modernistas, mas soube inovar e teve consciência de que a liberdade podia ser conseguida desde que houvesse disciplina e respeito para com o texto e para com as condições de produção a que se está submetido. Ler Drummond, em princípio, é predispor-se à alegria do “encontro”. Encontro com um ser de rara sensibilidade, que soube apurar seu senso estético na visita aos clássicos; alguém que amou, como poucos souberam amar, a língua portuguesa, explorando com minúcias de artesão toda sua potencialidade, redescobrindo vocábulos, encantando e desencantando palavras. Ler Drummond pode ser uma aventura pelas trilhas das Minas Gerais, reencontrando a quietude de uma “Cidadezinha qualquer”, deparando com personagens conhecidas de todos nós, vislumbrando os vultos dos romeiros que “sobem a ladeira / e vão deixando culpas no caminho”; pode ser ainda, mesmo sem ser mineiro e sem conhecer o regalo de família numerosa, partilhar saudades da infância naquele rico jantar do poema “A Mesa”. (MARIA, 2008, [online]).

A poesia em Drummond ganhou enorme notoriedade porque em qualquer texto que se leia do autor, sempre há de se encontrar um pouco de poesia. Poesia esta vista como uma invenção artística e não por uma estrutura em versos. O poeta faz isso ora pelo lirismo ora pela maneira de brincar com as palavras e com os sentidos que ela pode expressar.

Sua poesia é marcada inicialmente pela preocupação estética, por meio do predomínio de versos livres e do coloquialismo, e pela preocupação temática, com a presença do eu-lírico mais instável, de modo a evidenciar a formação da personalidade do autor, como pode ser visto nos primeiros livros de poemas Alguma Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934).

Mais tarde, vem a maturidade que o leva a ter consciência da representação do mundo para a sua vida e, por esse motivo, percebe que não adianta evitá-lo, mas sim explorá-lo para tentar entendê-lo. A partir desse momento, em seus textos há mais destacadamente a preocupação com a sociedade e com o ser humano. Exemplos disso são os livros Sentimento do Mundo (1940), José (1942) e Rosa do Povo (1945).

Posterior a isso, o que se segue é uma poesia muito diversificada e original, mostrando como o escritor se posiciona diante das mudanças e inovações do mundo contemporâneo. Os livros publicados são: Lição de Coisas (1962), Boitempo (1968), Menino Antigo (1973) e As impurezas do Branco (1974).

É muito comum a associação feita entre Drummond e o poema, pois tal gênero o tornou popular e, por conseguinte, o consagrou. Porém, não se deve esquecer que antes mesmo de publicar seus livros de poema o autor já escrevia crônicas em jornais e revistas entre os anos de 1921 e 1926. Até por volta de 1934 o autor escreveu nos jornais mineiros e constituiu uma espécie de primeira fase como cronista. Nessa época, portanto, já existiam resenhas de livros, artigos sobre poesia e literatura modernista, revelando assim, sua participação nos desenvolvimentos estéticos da literatura que estava sendo construída no início da década de 20.

O escritor colaborou para vários jornais e em um estudo sobre isso, Isabel Travancas (2007, p.2-3) fez uma minuciosa pesquisa e concluiu que Drummond:

na década de 1940 escreveu para: Diário Carioca, O Jornal, Revista do Povo, Correio da Manhã, Folha de Minas, Mundo Literário (Lisboa), Folha da Manhã, Folha do Norte, Agora, Revista do Globo, Tribuna Popular, O Cruzeiro, A, Joaquim, Leitura, Rio, O Estado de S.Paulo, A TribunaI, A Época, IPASE, Panorama, Letras e Artes, Jornal de Notícias, A Manhã, Jornal Política e Letras, Meia Pataca, Esfera, Minas Gerais, Paulistania, Província de S.Pedro, Jornal de Letras, Careta, O Estudante, O Diário, Revista Acadêmica, Dom Casmurro, Saúde e Beleza, Euclydes, Anuário Brasileiro de Literatura, Gazeta, Atlântico (Lisboa), Jornal do Comércio, Boletim da General Motors, Ilustração Brasileira, Folha Carioca, O Diário, Correio Paulistano, Sombra, Diretrizes, Estado do Pará, Folha do Norte, O Jornal, Diário de Pernambuco, Clima, Vamos ler!, Odontologia Universitária, Língua Portuguesa, Rio Magazine, Tribuna Popular, Chile e Nosso Tempo.

A década de 50 não fica atrás em termos de quantidade de periódicos nos quais Drummond escreveu. São eles: Minas Gerais, Correio da Manhã, Diário Mercantil, Diário de Notícias, A Cigarra,Tribuna da Imprensa, Folha da Manhã, Diário Carioca, Quilombo, Folha de Minas, Arte e instrução, Jornal de Letras, Seleções, Mosaico, O Homem Livre, Rio, A Manhã, Comício, Crítica, Revista Branca, Boletim do MAM, Folha de Minas, Letras Fluminenses, Careta, Diário de Notícias, Estrela do mar, Pampulha, Casa e Jardim, Correio do Dia, O Estado de S. Paulo, A Manhã, Sul América Anhembi, Coletânea, Revista de Automóveis, O Tempo, Correio do Povo, Índice Cultural, Rio Magazine, Diário de Pernambuco, O Cruzeiro, Diário de S.P, ParaTodos, Jornal do Brasil. A Tribuna, Leitura, Correio Paulistano, O Mundo Ilustrado, Hercules, Banco de Crédito, Revista da Semana, O Diário, Moscardo, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Visão, Revista Esso e SPVEA – coleção Araújo Lima.

A critério de importância destaca-se a participação do cronista, que, durante os anos de 1954 a 1969, escrevia três vezes por semana, no jornal Correio da Manhã.

O gênero crônica estava em ascensão nessa fase, conforme explica Afrânio Coutinho, “embora seja temerário estabelecer um vínculo de geração ou escola entre cronistas, não há dúvida de que foi a atmosfera de renovação pós-1930 que favoreceu o desenvolvimento desse gênero sob novos e múltiplos aspectos”. (COUTINHO, 1986, p. 133).

Drummond acabou fazendo parte do auge da crônica e adquiriu também muita popularidade, pois sua obra literária já estava muito amadurecida e com enorme capacidade crítica e criativa. O autor havia passado pelas mais importantes contradições do século XX, tinha vivenciado sonhos e desilusões referentes ao seu tempo. Portanto, com sua visão cética do mundo, o cronista conseguia relatar e analisar mais precisamente a realidade.

Foi no Jornal do Brasil que se despediu dos leitores por meio da crônica Ciao. O autor ia completar 82 anos; usou a crônica não somente para se despedir, mas também para criar uma metalinguagem e explicar a arte de “cronicar”. Nela, ele diz o seguinte:

crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo.
Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo. (ANDRADE, 1984, s/p).

De forma muito humilde, o autor se despede com singelas palavras:
E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário. Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo. (ANDRADE, 1984, s/p).

Esse ofício de cronista durou quase seis décadas e foi crucial para o seu fazer poético e para a construção de toda a sua obra. Foi com o jornalismo que se mostrou escritor, o jornalismo é escola de formação e aperfeiçoamento para o escritor. (...) ensina a concisão, a escolha de palavras, (...) é uma escola de clareza de linguagem, que exige antes clareza de pensamento. E proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada. O texto precisa saltar do papel, não pode ser um texto qualquer (...). Há páginas de jornal que são dos mais belos textos literários. E o escritor dificilmente faria se não tivesse a obrigação jornalística. (ANDRADE, 1986, p. 34).

É interessante notar e evidenciar, mais uma vez, que a poesia persiste em toda a obra do autor e nas crônicas não foi diferente, há muito de poesia nas crônicas, principalmente quando narra os fatos com certo lirismo. Apreciando, sua obra, fica quase impossível separar o cronista do poeta e o poeta do cronista, pois as duas “funções” se fundem.

E esses dois gêneros não são nem ficaram puros na obra de Drummond: a poesia, através do verso, do verso livre, do não-verso, do poema em prosa e de estruturas lírico-narrativas, se foi insinuando pelas formas da prosa, principalmente da crônica, como as desta às vezes perpassaram pelas do poema, além do que grande parte dos contos se identifica com um tipo especial de crônica desenvolvido pelo escritor. (TELES, 2002, p. 84).

Por tudo isso não é difícil explicar o fato de haver muita poesia em suas crônicas; o autor usa o cotidiano como pretexto pra “cronicar” e colocar nela todo o lirismo de sua poesia.

Não, não se faz poesia sobre acontecimentos. Ela é que os captura e eles é que se amoldam à palavra preexistente, depositária de memórias e sentimentos de infinitas gerações, à espreita de nossos acontecimentos, memórias e sentimentos (individuais ou coletivos), qual espelhou na prontidão de revelar-nos uma face quase verdadeira, não fosse a imagem refletida o simulacro da realidade, de tal forma eternamente e tão bem oculta que nunca chegaremos a conhecê-la de todo. (AGUILERA, 2002, p.43).

Da mesma forma que se deu com os poemas ocorreu com as crônicas do poeta, começou a publicar e não parou mais. Todos os livros de crônicas, mesmo variando na temática, mantêm-se com relação à essência de sua obra: elaboração na linguagem, humor como forma de propiciar outro enfoque menos grave diante dos problemas e histórias liricamente narradas mediante o uso da poesia.

Drummond foi um cronista atento ao seu tempo e aos seus leitores, comovendo, distraindo, fazendo sorrir, escrevendo de forma a meditar e filosofar sempre que oportuno e, por essa razão, sua crônica é também classificada como metafísica. Podemos, assim, considerar que ela seja vista como multiforme, por agregar: poema, aforismo, traduções, fotos, diário, charge, entrevistas, cartas etc., entretanto, seu autor não demonstrava preocupação pela forma de apresentação. Os textos são leves e inventivos caracterizando um estilo próprio. (BASTOS, 2006, p. 25).

Por fim, em toda sua obra, poema ou prosa, o autor conseguiu expressar-se e retratar as dificuldades e os “sentimentos do mundo”, através de “notícias e não-notícias” percorreu o cotidiano de cada ser humano.

---
Fonte:
RAQUEL LAIS VITORIANO DE LIMA PIRES: “PERSONAGENS FIXAS EM CRÔNICAS BRASILEIRAS”.(Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Letras - Estudos Literários – da Universidade Estadual de Londrina, como requisito à obtenção do título de mestre em Letras – Estudos Literários. ORIENTADOR: PROF. DR. LUIZ CARLOS SANTOS SIMON). Londrina, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!