O que nos deixou Nelson Rodrigues?



Quando meu filho estava na cadeia em 77, Nelson voltou  para casa. Foi um "amor de outono". Havia amor de verdade, ternura. Onde a gente se encontrava na casa, dávamos um beijinho estalado, uma ponta de beijo verdadeiro. Aquele namoro voltava, um namoro de segurar na mão, de colocar a mão no ombro. Foi uma delícia. Só lamento ter sido durante três anos, porém foi muito bom. Aquele era o verdadeiro Nelson, que deixou saudades.  Elza Bretanha  —  companheira de Nelson Rodrigues

O paradoxo é a paixão do pensamento, o pensador sem paradoxo é como um amante sem paixão, um sujeito medíocre. O escritor por ter assumido plenamente o paradoxo da existência humana tanto em sua vida quanto em suas obras, marca seu lugar na história como grande apaixonado pela esperança no humano. Como poucos, conseguiu articular de modo  singular, a reflexão e a existência concreta. A fonte de seu pensamento foi sua existência e esta a manifestação histórica de suas convicções. Tido, por vezes, como reacionário ou tarado, ele não se preocupou em jurar fidelidade às exigências convencionais do discurso dos seus intelectuais contemporâneos.  Ele preferiu ser conhecido como homem atípico.

Sua preocupação sempre foi manter conversação com seu leitor,  relacionar-se dialogalmente com ele; tratar com seu semelhante de coisas comuns da vida cotidiana. A eficácia ou a prova de validade de suas afirmações se funde, em última análise, na ressonância entre tais afirmações e a experiência da vida cotidiana que o próprio leitor pode descobrir nas obras de Nelson.

Eu passei minha infância e minha adolescência no Colégio Militar e sabia do Velho escritor através dos veteranos, que até me protegiam lá dentro por ser filho de Nelson, porque naquela época todo mundo lia A Vida Como Ela É...  Era uma fissura entre eles, entre o povo brasileiro. Então eu fui conhecendo o escritor através das outras pessoas. Depois fui crescendo e comecei a ler. O  Velho pai era uma pessoa cordata, ele nunca gritou. Era amável e compreensivo. Dava-me total liberdade em tudo. Ele deixou saudades.
Ela (a obra) ajuda a entender, cremos, a questão do abalo da fé do  homem em si mesmo. Parece que entramos numa época que busca antes se interpretar a partir de figuras míticas de Dionísio e de Orfeu do que a partir da figura de Prometeu.  Acreditava-se na ideologia do progresso, do crescimento e da História que se orienta  sempre para um futuro melhor. Acreditava-se nas possibilidades ilimitadas da razão, da  ciência e da técnica. Hoje, os homens conhecem uma profunda angústia coletiva, pois  pela primeira vez, a própria sobrevivência da espécie está em questão.

O homem chega a perceber, claramente, a insuficiência da linguagem racional e científica na interpretação de dados fundamentais da existência humana. Diante disso procura-se um novo tipo de homem que reconheça toda a importância devida à imaginação, à gratuidade, ao simbólico, à criatividade, à paixão. O homem  deve se entregar à vida religiosamente, numa experiência em busca do seu íntimo.

Qualquer devoção é linda. Não importa que o santo não a mereça. E mesmo  que seja um santo falso. (Quero crer que também existam os santos canalhas.) Mas repito: ¬ não importa. O belo, o patético, o sublime são as duas mãos postas e a fé ingênua e forte que se irradia de não sei que abismos radiantes.  Também a solidariedade, a grande solidariedade, é comovente.
Pudemos enxergar o quanto Nelson é representativo para uma conceituação de modernidade na cultura do Rio de Janeiro e, por extensão, na  brasileira. Sua produção foi de uma multiplicidade ímpar, pois trabalhou alguns dos  mais importantes gêneros literários, sem que se perdesse a profundidade e a preocupação de através dessa literatura, ler o homem e, por conseqüência, ler o mundo.

Percebemos o quanto Nelson se diferencia dos artistas comuns pela sua forma de representar os dramas do mundo e de visualizar as ações e as práticas urbanas numa cidade que por si só já pode ser considerada ‘imaginária’. Nos espaços do Rio, as  personagens mergulham vertiginosamente na vida, sem esquecerem-se das máscaras, vivendo um constante combate, às vezes interrompido pelo aleatório, pelo não-esperado, mas incessante em busca de uma felicidade eterna, mesmo que transitória, já  que eterno é o momento presente.

Verificamos que o trágico é um elemento moderno, embora os termos  trágico e tragédia assumiram novas nuances na rede narrativa e dramatúrgica de Nelson,  ganhando um enfoque mitológico, de luta e tensão que são expressas com maestria pela  linguagem delirante dos diálogos, sejam eles diretos entre as personagens, sejam eles  diálogos feitos com o próprio inconsciente, numa tentativa de atestar o caráter plural dos sentimentos e desejos que envolvem as atitudes e pensamentos humanos.

Por último, deparamo-nos com as tramas desse tecido urbano carioca, onde os fios foram entrelaçados de forma mágica, expondo as costuras da cidade na  vida das personagens. Os amores, as paixões, os desejos, as traições, as mortes, compõem essa fazenda tropical com corredores de Belle Époque, esse tecido misto de  linho e seda, onde por vezes nos sentimos assistindo à Cidade dos Sonhos, de David Linch. Nelson, assim como Linch, que homenageia neste filme os tipos  cinematográficos, consegue escrever um roteiro de apologia aos personagens cariocas. Como se tudo realmente não passasse de um grande teatro, encenado por mim ou  vocês.

As personagens não importam pelo nome ou pelo rosto. Às vezes elas  nem têm rosto. Ou nem precisam dele. Todos nós fazemos parte ainda dessa cidade  retratada por Nelson. Nas palavras do autor Renato Cordeiro Gomes “Todas as  cidades, a cidade”. O Rio como ele é... apresenta tipos que se misturam, sentimentos se constroem, esquinas e avenidas, prédios do pecado e casas de família, linguagem de rua, de escritório, de meretriz e de senhora do subúrbio. Na verdade representa um micro-mundo, um micro-universo dentro de uma teoria universal mais abrangente, em se  tratando muito mais do homem do que do lugar no qual esse homem vive.

Nelson expõe as feridas que queremos sarar, a todo o momento. Mostra que todos somos sensíveis a todo tipo de atitude. O ser humano é caótico. E vive num  mundo caótico. Teatro e palco onde precisamos o tempo todo estar preparados a  novos papéis que serão escritos pela vida. E quando dizemos ‘o tempo todo’, dizemos  ‘a cada café na esquina, a cada viagem de ônibus, a cada beijo, a cada despedida’ nos  preparamos a modificar, a partir daquele momento, sem quer mesmo que percebamos, o resto de nossas vidas.

Todos queremos controlar nossas vidas para nos sentirmos seguros, mas em verdade, encontramos, a todo o momento, o disparate, o inusitado, o surpreendente. Nelson talvez nos ensine um pouco o que é importante pensar o quanto a espontaneidade do indivíduo faz com que ele viva o momento presente de forma a aceitar melhor a realidade e não tentar controlar os fatos que o acometem a todo tempo.

No fim, o apresentador do espetáculo, descortina esse ‘mundo da vida’ e  diz: “Não há banda. Não há música”. Ficamos mudos, chorando, ressentidos pela  ilusão de que a vida era outra coisa. Mas a vida é como ela é.

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Fonte:
Rodrigo Alexandre de Carvalho Xavier: “O Rio como ele é... Nelson Rodrigues: sensação e percepção”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientador: Profº Antonio Edmilson Martins Rodrigues). Rio de Janeiro, 2005.

Nota
:A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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