A PRESENÇA DA
ONU NA ÁFRICA
No horizonte das missões de paz promovidas e administradas pela ONU, a África
ocupa uma posição nítida de principal destino de tais operações. Esta primazia se refere sobretudo ao fato deste continente se
configurar como o principal destino das atividades de campo das Nações Unidas,
e é percebida sobretudo através da constatação da intensa presença deste
organismo internacional no continente africano. Tal conclusão pode ser derivada
de uma analise atenciosa da listagem das missões de paz já realizadas pela ONU
no cenário internacional, desde o momento de sua criação e do início de suas
atividades.
Assim, a partir de 1960, com o estabelecimento da ONUC (Operação das
Nações Unidas no Congo), mas principalmente após a desmobilização resultante do
fim do conflito bipolar da Guerra Fria, em 1989, a ONU tem se feito presente na
vida da África de maneira constante, verificando-se a atuação de seus
contingentes em boa parte dos territórios deste continente. Angola, Moçambique,
África do Sul, Libéria, Serra Leoa, Ruanda, Costa do Marfim, Burundi, República
Democrática do Congo, Somália, Chade, Egito, Eritréia e
Etiópia (entre outros) são apenas alguns exemplos dos diversos países africanos
que, em sua história recente, contaram com a presença e a atuação das Nações
Unidas em seus limites territoriais.
De acordo com
MacQueen (2004:127),
Nos últimos quarenta anos, a
África concentrou uma parcela desproporcionada dos esforços de manutenção de
paz das Nações Unidas. A África Subsariana excedeu em muito todas as outras
regiões do mundo, do Médio Oriente ao Sudoeste Asiático, no número de intervenções
da ONU nos seus conflitos. Além do mais, uma elevada proporção destas
intervenções exigiu recursos excepcionais e altos níveis de complexidade e
perigo aos seus participantes. Desde 1960 que vinte operações diferentes da ONU
foram implementadas em África, no interior das fronteiras ou entre dezassete
estados diferentes. Alguns países, como Angola, a Somália, a Serra Leoa ou a
Libéria têm sido palco de operações sucessivas após a alteração de
circunstâncias política ou militares locais. Duas enormes operações foram
montadas no Congo com quase quatro décadas de diferença – primeiro no “Antigo
Congo Belga” e depois na “República Democrática do Congo”. Estas intervenções
da parte das Nações Unidas abarcaram um largo espectro de empenho, desde as
operações multifuncionais em larga escala, como as do Congo, até missões de
observação muito menores, como a do Chade em 1994.
Este
destacado protagonismo da África no tocante à destinação das missões de paz das
Nações Unidas não se dá de maneira desmotivada ou acidental. Ele foi – e de um
certo modo, segue sendo – motivado principalmente pela história recente da
África, pontilhada por conflitos étnicos, políticos e sociais.
Verificada
sobretudo na África, tal instabilidade que, a primeira vista parece congênita,
é, de acordo com diversos autores (como já foi visto em Jackson,
Clapham,
MacQueen, entre outros) motivada primordialmente pela condição do Estado
pós-colonial africano.
Por
conseguinte, uma explicação sucinta das razões de ser do protagonismo da África
como destino das missões das Nações Unidas é o permanente clima de
instabilidade política e social deste continente durante a segunda metade do
século XX. Não obstante, e de
maneira mais detalhada, pode-se enumerar tanto variáveis locais (como por exemplo
os movimentos políticos africanos, e a própria divisão do poder na África)
quanto sistêmicas (ou seja, próprias do sistema internacional, como a posição
relegada ao continente africano nas dinâmicas econômicas mundiais) na tentativa
de explicação da primazia africana como destino principal das missões de paz da
ONU.
Nas palavras
de MacQueen (2004:129):
Não existe uma resposta
totalmente clara para esta questão [se haveria algo de inerente que
distinguiria as missões de paz da ONU na África], mas pode defender-se que o
envolvimento da ONU possui de facto um carácter particular em áfrica que deriva
tanto de fatores locais como sistêmicos. Além disso, esse “particularismo”
antecede o período do pós-guerra e estava presente no início dos anos 60 quando
o projecto de manutenção de paz da ONU estava ainda na sua infância. Pode-se
explorar este argumento através de três fenômenos centrais – e freqüentemente
inter-relacionados. Nenhum deles é exclusivamente
africano e nem todos se aplicam à totalidade
dos conflitos africanos em que a ONU se envolveu. Mas ocorrem de forma
particularmente vincada na África Subsariana. São eles: primeiro, o fim de uma
“ordem imperial” imposta; segundo, as conseqüências políticas da dependência
econômica e as contradições do “neopatrimonialismo”; e, finalmente, os
imperativos do sistema internacional vestfaliano no seu sentido mais amplo.
Assim,
pode-se enumerar como variáveis explicativas da instabilidade do cenário
africano e, conseqüentemente, do elevado número de missões de paz da ONU neste
território, fatores como o movimento de descolonização dos territórios
africanos (o fim de uma “ordem imperial”) a partir da década de 1960, as
práticas e dinâmicas econômicas do sistema mundial e o tipo de Estado que surge
na África a partir da vaga de independência.
Além disso, não se deve esquecer do papel ativo desempenhado pela ONU no
processo de descolonização da África, o que pode, em parte, ter gerado um
“sentimento de responsabilidade” desta organização para com o continente africano,
explicando assim, parcialmente, o esforço de tutela empreendido pelas Nações Unidas
com relação à África.
O movimento de descolonização é, em grande medida, o principal
responsável pela situação corrente da ordem política africana. Isto porque é a partir da retirada das antigas potências coloniais
européias – como França, Portugal, Grã-Bretanha e Bélgica – que se inaugura um
momento político próprio na África, com a constituição de governos e Estado
próprios, não imediatamente ligados a instâncias de poder extra-africanas, como
ocorria até então.
Assim, a
descolonização e o fim das ordens imperiais, com a retirada e a cessão da
atuação das grandes potências na África, implicou na constituição de um espaço
político africano próprio. Entretanto, devido às condições em que tal criação
se deu, este espaço se configurou, de modo generalizado, de forma altamente
fragmentada e conflituosa. É justamente esta aparente “desordem” que motiva a
maioria esmagadora das intervenções das Nações Unidas na África.
Cabe destacar
que o fim da Guerra Fria é também entendido como o fim de uma “ordem imperial”
atuante na África, tendo em vista que as superpotências rivais se fizeram
bastante presentes e atuantes neste território. Por este motivo percebe-se um
aumento da incidência de missões de paz após 1989. De acordo com MacQueen (2004:131).
Além do encerramento de ordens coloniais e imperiais diversas na África,
durante a segunda metade do século XX, o que contribuiu, em parte, para a
fragilização deste continente, não se pode ignorar também o impacto que as
dinâmicas próprias do capitalismo internacional possuem sobre os países
africanos.
Historicamente
situada na periferia do sistema mundial, a áfrica, entretanto, encontra-se em
uma situação ainda mais delicada e grave que aquela de outros países também da
periferia (geralmente identificada com os países “do sul”).
Relegada a um
lugar de pouca importância no cenário internacional econômico, a África sofre
as conseqüências de não compartilhar, de maneira ativa, das dinâmicas da
econômica mundial.
A dependência
econômica deste continente com relação a outras regiões do globo acaba por
reforçar não apenas suas disparidades internas, como também em aumentar a
distância existente entre esta periferia e os países do centro do sistema, como
a Europa Ocidental e os EUA.
Nessa
dinâmica de subjugação, o que se verifica é um agravamento da desagregação
política e social já em curso, desintegração esta que acaba por conduzir à
intervenção internacional em assuntos locais ou nacionais, intervenção esta que
pode ser visualizada de maneira nítida nas missões da ONU.
As variáveis
anteriormente destacadas – o fim de ordens coloniais e imperiais e o tipo de
envolvimento da África nas dinâmicas capitalistas mundiais – culminam no
principal fator motivador de intervenções internacionais no seio deste
continente, qual seja, a configuração específica elaborada pelos Estados
africanos.
Este tipo de Estado particular pode ser compreendido como um Estado que,
em termos formais, se assemelha aos Estados europeus clássicos, westphalianos,
mas que, de fato, possui poucos dos aparatos e das estruturas que viabilizam
sua atuação como tal. Denominados de “quasi-Estados”
por Jackson (1990), estas unidades são frágeis, posto que não detém uma
soberania efetiva capaz de fazer valer sua vontade no cenário internacional.
O seu surgimento encontra-se necessariamente atrelado ao movimento de Descolonização
capitaneado pela ONU na década de 1960, e sua fragilidade deriva não apenas da
não-correspondência entre seu estatuto formal de estado e suas capacidades
reais de atuação, mas também do contexto internacional (tanto econômico quanto
político) que inviabiliza qualquer tentativa de fortalecimento por parte de
tais unidades.
A criação
destes quasi-Estados encontra-se, assim, intimamente relacionada com os
esforços das Nações Unidas em homogeneizar o padrão político existente na arena
mundial, visando sua maior estabilidade e equilíbrio. Conforme afirma MacQueen
(2004:135)
A intervenção da
ONU não é necessária nem inteiramente altruísta. Os
estados dominantes no mundo, todos os membros permanentes do Conselho de
Segurança da ONU, têm um interesse óbvio em manter a abrangente estrutura de
estados territoriais estáveis que tem constituído a fundação do sistema
internacional desde o Tratado de Vestefália em meados do século XVII.
E segue:
O seu carácter
[dos estados africanos] estatal baseava-se num acordo tácito entre
actores-chaves no sistema internacional segundo o qual eles seriam tratados enquanto estados apesar das
sérias dúvidas acerca do seu real grau de “estadualidade”.
Esta ilusão era simplesmente necessária à sanidade do sistema mais amplo. (MACQUEEN, 2004:137).
Entretanto,
ainda que tal “acordo tácito” tenha vigorado por algum tempo, logo em seguida
diversas dessas unidades estatais frágeis iniciaram um colapso interno inédito
na arena internacional. É nesse momento específico no qual a ONU inicia suas
intervenções sistemáticas, criando inúmeras missões de paz na tentativa de
sustentar uma ordem mínima em uma região do sistema mundial que emitia nítidos
sinais de colapso político, social e econômico.
Assim,
Subjacente a
todo o altruísmo humanitário que a guiava, a resposta da ONU a África tinha
subjacente um núcleo de pragmatismo sistêmico. Ter permitido que
desaparecessem os últimos vestígios desse carácter estatal teria significado
comprometer a estrutura básica do sistema internacional porque este era um
sistema composto principalmente por “subsistemas” chamados “estados”.
Dessa forma,
pode-se afirmar que a atuação da ONU na África, e principalmente em sua porção
subsaariana, teve – e ainda tem – como objetivo principal evitar que aquela
parte do sistema internacional colapsasse completamente, bem como a tentativa
de mantê-la atuando sob uma lógica estatal, comum às diversas frações do
sistema mundial. De acordo com MacQueen (2004:137),
Se as intervenções da ONU em África têm um objectivo
geral, este será estabelecer, manter ou reconstruir o Estado, seja como meio de
impor a ordem humanitária, seja como forma de manter relações internacionais
estáveis ao nível regional e global.
Na seqüência,
apresentar-se-á o cenário angolano, buscando demonstrar os desenvolvimentos da
guerra civil deste país, e, conseqüentemente, o contexto aonde, a partir de 1989
a ONU realizará sua intervenção internacional.
---
Fonte:
TATIANA VARGAS MAIA: “A INTERVENÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS EM ANGOLA - 1988-1999”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à conclusão do Mestrado em Relações Internacionais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Professor Doutor Raúl Enrique Rojo). Porto Alegre, 2006.
Fonte:
TATIANA VARGAS MAIA: “A INTERVENÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS EM ANGOLA - 1988-1999”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à conclusão do Mestrado em Relações Internacionais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Professor Doutor Raúl Enrique Rojo). Porto Alegre, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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