Charles Darwin e Boris Casoy: confronto ideológico

Veja também:

"Que merda. Dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho" – Boris Casoy (no intervalo da edição de Réveillon do Jornal da Band).

Não obstante é muito difícil encontrar uma explicação para o fato de que uma tribo e não outra teve êxito e subiu na escala da civilização. Muitos selvagens acham-se nas mes­mas condições de quando foram descobertos pela primeira vez, faz alguns séculos” – Charles Darwin (em “A Origem do Homem e a Seleção Sexual”, p. 160).

Um dos muitos efeitos calamitosos do darwinismo social refere-se à prática da medição como ferramenta para distinguir grupos de pessoas. Os eugenistas foram especialistas nesse tipo de experiência. Segundo Stephen Jay Gould (“
A Falsa Medida do Homem”) “a evolução e a quantificação formaram uma temível aliança; em certo sentido, sua união forjou a primeira teoria racista “científica” de peso, se definirmos “ciência” erroneamente, como muitos o fazem, como sendo toda a afirmação aparentemente respaldada por cifras abundantes” (p. 66). Esse respeitatíssimo autor darwinista, menciona ainda o exemplo do primo de Charles Darwin, o fundador de Eugenia, o inglês Francis Galton. Diz Gould citando o próprio Galton:

“Sua f
é na medição apoiava-se nas idiossincrasias e na engenho­sidade de seus métodos. Ele se propunha, por exemplo, a construir um "mapa da beleza" das Ilhas Britânicas da seguinte maneira (1909, pp. 315-316):

‘Sempre que tenho a oportunidade de classificar as pessoas que encontro em tr
ês classes distintas, "boa, regular e ruim", utilizo uma agulha montada como se fosse uma pua, com que perfuro, sem ser visto, um pedaço de papel cortado toscamente em forma de cruz alongada. No extremo superior, marco os valores "bons", nos braços os valores "re­gulares", e na extremidade inferior os valores "ruins". As perfurações são bastante distanciadas para permitir uma leitura fácil no momento desejado. Escrevo em cada papel o nome do sujeito, o lugar e a data. Com este método, registrei minhas observações sobre a beleza, classifi­cando as moças que encontrei pelas ruas e em outros locais como atraen­tes, indiferentes ou repelentes. É claro que esta foi uma avaliação pura­mente individual mas, a julgar pela coincidência dos diferentes intentos realizados com a mesma população, posso afirmar que os resultados são consistentes. Assim, comprovei que Londres ocupa a posição mais elevada na escala da beleza, e Aberdeen a mais baixa.'

Com bom humor, sugeriu o seguinte m
étodo para quantificar o abor­recimento (1909, p. 278):

‘Muitos processos mentais admitem uma medi
ção aproximada. Por exemplo, o grau em que as pessoas se aborrecem pode ser medido pelo número de movimentos de inquietações que realizam. Em mais de uma ocasião apliquei este método durante as reuniões da Royal Geographical Society, pois mesmo lá dissertações bastante tediosas são ocasionalmente lidas. ... Como o uso de um relógio pode chamar a atenção, calculo o tempo pelo número de minhas respirações, que é de 15 por minuto. Não conto mentalmente, mas através de 15 pressões com o dedo sucessivas. Reservo a contagem mental para registrar os movimentos de inquietação. Este tipo de observação deve limitar-se às pessoas de meia-idade. As crianças raramente ficam quietas, en­quanto que os velhos filósofos por vezes permanecem rígidos por vários minutos.’

Fonte:
Stephen Jay Gould: “A Falsa Medida do Homem”. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1991, p. 67.

E para quem imagina que Darwin não tinha nada a ver com isso, afirma o mesmo Gould:

“Darwin, que abordava com grandes suspeitas os argumentos em favor do caráter hereditário da inteligência, depois de ler Hereditary Genius, escreveu o seguinte: ‘em certo sentido, o senhor transformou um oponente em convertido...” (ibdem, p. 69).

Ao fazer uso do termo “escala”, tanto Darwin quanto Boris estão impondo uma “categoria” ou “graduação” como fator distintivo entre diferentes grupos sociais. Torna-se, pois, óbvia a intenção de fazer prevalecer a superioridade um grupo em detrimento de outro. Darwin acreditava que os brancos europeus estavam no mais alto topo da “escala” evolutiva, ao passo que as diversas comunidades indígenas e os negros africanos permaneciam bem abaixo na escala das civilizações. A infeliz frase do jornalista Boris Casoy escancara a idéia de que os nossos preciosos e batalhadores garis são os “párias” das muitas profissões. É claro, latentemente ele faz transparecer sua “superioridade” de “doutor”, sua marca de perfume, seu status social, seu belo carro, sua magnífica mansão e seu gordo salário. Provavelmente ele “cusperia na própria boca que lhe beija”.

Mas, voltando a Darwin, é interessante como essa questão de “escala” fascinou o grande naturalista. No seu livro inicialmente citado, isso aparece várias vezes. Por exemplo:

1 – Referindo-se às civilizações:

“A prova de que todas as nações civilizadas descendem daquelas bárbaras, encontramo-la, de um lado, em traços claros da sua primitiva baixa condição, nos costumes, ideias e língua ainda existentes, e por outro lado, na prova de que os selvagens são independentemente capazes de soerguer-se de qualquer grau na escala da civilização e atualmente efetivamente se ergueram” (p. 171).
“Algumas tribos pequenas e espalhadas, vestígios de uma raça anterior, sobre­vivem em zonas isoladas e geralmente montanhosas. Na Eu­ropa as antigas raças ficavam todas "mais embaixo na esca­la do que se acham os mais rudes selvagens atuais", confor­me Schaaffhausen” (p. 216).

2 – Referindo-se aos organismos:
“Ademais, ignoramos completamente com que rapidez os organismos podem ter-se modificado em circunstâncias fa­voráveis, tanto no alto como embaixo na escala” (p. 186).

3 –
Referindo-se aos símios:
“Destas várias considerações evidencia-se como provável que os simióides se tenham origi­nariamente desenvolvido dos antepassados dos atuais lêmu­res e estes, por sua vez, de formas colocadas muito embaixo na escala dos mamíferos” (p. 187).

4 – Referindo-se aos mamíferos:
Tentando traçar a genealogia dos mamíferos e, por con­seguinte, do homem, descendo sempre mais baixo na escala acabamos envolvendo-nos numa obscuridade cada vez maior” (p. 188).

5 – Referindo-se aos animais no geral:
“Alguns animais, que se situam extremamente embaixo na escala zoológica, têm passa­do por modificações para esta mesma finalidade” (p. 249).

6 - Referindo-se ao homem:
“Releva-se ao homem se sente algum orgulho por ter gal­gado, embora não por méritos próprios, o cume da escala dos viventes” (p. 711).

Mas, para não dizer que falei de flores, vai aqui nossa singela homenagem a este valoroso profissional:

POEMA AO LIXEIRO

Por: Marieta Borges Lins e Silva

Nada há de belo
no trabalho daquele
que recolhe lixo,
dia após dia:
nem perfume, nem limpeza,
nem a disposição ordeira
das coisas arrumadas e estáticas...

Pressurosos e aparentemente felizes,
caminham, correm, apanham fardos,
reviram, misturam,
- misturam-se, como lixos humanos –
sobrevivendo da dolorosa profissão
que se alimenta de restos...

Dolorosa partilha de uma vida
que se mantém porque existem sobras...
Suado pão que se ganha
sujando as mãos no que foi desprezado...
Terrível certeza de permanecer limpo
na alma de trabalhador,
em luta pelo seu quinhão,
sob o eco e o desdém da palavra lixo!

E, enquanto apanham cacos
e mergulham as mãos na podridão dos úmidos dejetos,
sabem-se homens de verdade,
no enfrentar de uma desdita
cobrada por todos os outros homens,
que precisam – de algum modo –
safar-se do que lhes sobra,
do que foi, ontem, razão de ordem,
do que já não serve mais
senão para ser jogado fora.

Lixeiro-irmão,
que limpas os caminhos dos homens,
com o teu sacrifício diário e anônimo,
ergue os olhos para o céu tão limpo
e acredita na justiça que fará de ti
o primeiro entre os últimos
a aspirar a claridade dos espaços definitivos,
onde não há teias,
sombras,
restos!

Publicado no livro “No silêncio do coração”, de Marieta Borges Lins e Silva, Ed.Catolicanet, SP/2006.

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