A MITOLOGIA DO PRECONCEITO LINGÜÍSTICO
Mito nº 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”
Do livro: “Preconceito lingüístico o que é, como se faz”, de Marcos Bagno. Edições Loyola. São Paulo, 1999.
Mito nº 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”
"O preconceito lingüístico se baseia na crença de que só existe, como vimos no Mito n° 1, uma única lingua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários. Qualquer manifestação lingüística que escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito lingüístico,“errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é raro a gente ouvir que “isso não é português”.
Um exemplo. Na visão preconceituosa dos fenômenos da língua, a transformação de I em R nos encontros consonantais como em Craudia, chicrete, praca, broco, pranta é tremendamente estigmatizada e às vezes é considerada até como um sinal do “atraso mental” das pessoas que falam assim. Ora, estudando cientificamente a questão, é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de “atraso mental” dos falantes “ignorantes” do português, mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão. Basta olharmos para o seguinte quadro:
PORTUGUÊS-PADRÃO > ETIMOLOGIA > ORIGEM
branco > blank (do germânico)
brando > blandu (do latim)
cravo > clavu (do latim)
dobro > duplu (do latim)
escravo > sclavu (do latim)
fraco > flaccu (do latim)
frouxo > fluxu (do latim)
grude > gluten (do latim)
obrigar > obligare (do latim)
praga > plaga (do latim)
prata > plata (do provençal)
prega > plica (do latim)
Como é fácil notar, todas as palavras do português—padrão listadas acima tinham, na sua origem, um I bem nítido que se transformou em R. E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Craudia, chicrete e pranta têm algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na época em que a língua portuguesa estava se formando. E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingres, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento literário do português clássico, o poema “Os Lusíadas”. E isso, é “craro”, seria no mínimo absurdo.
Existem, evidentemente, falantes da norma culta urbana, pessoas escolarizadas, que têm problemas para pronunciar os encontros consonantais com L. Nesses casos, sim, trata-se realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica. Não é dessas pessoas que estamos tratando aqui, mas dos brasileiros falantes das variedades não-padrão, em cujo sistema fonético simplesmente não existe encontro consonantal com L, independentemente de terem ou não dificuldades articulatórias. Quando, na escola, se depararem com os encontros consonantais com L, é preciso que o professor tenha consciência de que se trata de um aspecto fonético “estrangeiro” para eles, do mesmo tipo dos que encontramos, por exemplo, nos cursos de inglês, quando nos esforçamos para pronunciar bem o TH de throw ou o I de live. É preciso separar bem os dois aspectos do fenômeno.
Se dizer Craudia, praca, pranta é considerado “errado”, e, por outro lado, dizer frouxo, escravo, branco, praga é considerado “certo”, isso se deve simplesmente a uma questão que não é lingüística, mas social e política — as pessoas que dizem Craudia, praca, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada “feia”,”pobre”,”carente”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola.
Ora, do ponto de vista exclusivamente lingüístico, o fenômeno que existe no português não-padrão é o mesmo que aconteceu na história do português-padrão, e tem até um nome técnico: rotacismo. O rotacismo participou da formação da língua portuguesa padrão, como já vimos em branco, escravo, praga, fraco etc., mas ele continua vivo e atuante no português não-padrão, como em broco, chicrete, pranta, Craudia, porque essa variedade não-padrão deixa que as tendências normais e inerentes à língua se manifestem livremente. Assim, o problema não está naquilo que se fala, mas em quem fala o que. Neste caso, o preconceito lingüístico é decorrência de um preconceito social”.
Existem, evidentemente, falantes da norma culta urbana, pessoas escolarizadas, que têm problemas para pronunciar os encontros consonantais com L. Nesses casos, sim, trata-se realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica. Não é dessas pessoas que estamos tratando aqui, mas dos brasileiros falantes das variedades não-padrão, em cujo sistema fonético simplesmente não existe encontro consonantal com L, independentemente de terem ou não dificuldades articulatórias. Quando, na escola, se depararem com os encontros consonantais com L, é preciso que o professor tenha consciência de que se trata de um aspecto fonético “estrangeiro” para eles, do mesmo tipo dos que encontramos, por exemplo, nos cursos de inglês, quando nos esforçamos para pronunciar bem o TH de throw ou o I de live. É preciso separar bem os dois aspectos do fenômeno.
Se dizer Craudia, praca, pranta é considerado “errado”, e, por outro lado, dizer frouxo, escravo, branco, praga é considerado “certo”, isso se deve simplesmente a uma questão que não é lingüística, mas social e política — as pessoas que dizem Craudia, praca, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada “feia”,”pobre”,”carente”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola.
Ora, do ponto de vista exclusivamente lingüístico, o fenômeno que existe no português não-padrão é o mesmo que aconteceu na história do português-padrão, e tem até um nome técnico: rotacismo. O rotacismo participou da formação da língua portuguesa padrão, como já vimos em branco, escravo, praga, fraco etc., mas ele continua vivo e atuante no português não-padrão, como em broco, chicrete, pranta, Craudia, porque essa variedade não-padrão deixa que as tendências normais e inerentes à língua se manifestem livremente. Assim, o problema não está naquilo que se fala, mas em quem fala o que. Neste caso, o preconceito lingüístico é decorrência de um preconceito social”.
É isso!
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Falha Nossa
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Falha Nossa
kkkkkkkkkkkkkk
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