A “lei biogenética fundamental” de Ernst Haeckel

"Outro desenvolvimento da teoria da “seleção natural” que alimentou construções teóricas que permitiram uma sustentação “científica” da desigualdade entre as raças humanas foi a chamada “lei biogenética fundamental” de Ernst Haeckel (1834-1919), mais conhecida como “teoria da recapitulação”. Contudo, o princípio que Haeckel transformou em lei e associou a seu nome não foi fruto de pesquisas de sua autoria.

Os dados empregados por Haeckel tinham origem em algumas das conclusões de uma pesquisa realizada pelo biólogo alemão Fritz Müller, que estudou gerações de crustáceos e vermes marinhos no litoral de Santa Catarina, enquanto era pesquisador contratado pelo Museu Nacional no Brasil. O trabalho foi publicado em 1864 e é considerado a primeira pesquisa que constituiu uma filogenia exaustiva das espécies estudadas partindo da teoria da seleção natural de Darwin e sustentando empiricamente a sua tese sobre a especiação (PAPAVERO, 2003, p. 32). A partir das espécies que estudou, Müller concluiu que em parte considerável dos espécimes observados, a evolução do animal se dava de tal modo que “(...) todo o desenvolvimento dos ancestrais será recapitulado pelos descendentes e, portanto, o desenvolvimento histórico da espécie refletir-se-á em sua história embriológica” (PAPAVERO, 2003, p. 38).

Partindo da descrição dada por Müller para parte dos casos observados (e desconsiderando os casos restantes a partir dos quais Muller indica que só há uma recapitulação parcial da filogenia pela ontogenia), Haeckel (apud PAPAVERO, 2003, p. 41) generaliza o seu princípio explicativo e o constitui na forma de uma lei segundo a qual define que:

A ontogenia é a recapitulação curta e rápida da filogenia, condicionada pelas funções fisiológicas de herança (reprodução) e adaptação (nutrição). O indivíduo orgânico (como o indivíduo morfológico da primeira até a sexta ordem) repete, durante o rápido e curto curso de seu desenvolvimento individual, as alterações morfológicas mais importantes do que seus antecessores atravessaram durante o longo e lento curso de sua evolução paleontológica, de acordo com as leis da herança e da adaptação.

De acordo com esta “lei” de Haeckel, generalizada imprudente e indebitamente a partir da pesquisa de Müller, poderia se afirmar, por exemplo, que o feto humano remeteria ao estado adulto de anfíbio ou peixe ancestral, enquanto a semelhança de uma criança pequena a um chimpanzé remeteria ao antepassado filogênico mais próximo do homem (GOULD, 1981, p. 111). Apesar da fragilidade teórica desta lei biogenética fundamental de Haeckel, decorrente da generalização exagerada que ela realizava com base em poucas e duvidosas provas e dos inúmeros ataques que ela sofreu desde sua primeira publicação em 1866, ela foi uma das teorias que gozaram de maior prestígio e exerceram maior influência no final do século XIX (GOULD, 1981, p. 112). Assim como Darwin enfrentou hostilidade por se contrapor, mesmo que timidamente, aos usos políticos de sua teoria aplicada como “darwinismo social”, Haeckel soube se aproveitar de um contexto extra-científico propício à “teoria da recapitulação”.

De toda forma, é difícil entender a partir do campo da embriologia, da morfologia comparada ou mesmo da paleontologia de sua época como a lei biogenética pôde manter-se digna de crédito78, mas a longevidade e o vigor desta “lei” logo se mostram facilmente compreensíveis quando se leva em consideração a sua utilidade para uma sustentação “científica” da inferioridade racial dos negros, e biológica das mulheres, facilmente aceita no contexto vitoriano no qual o “darwinismo social” já gozava de reconhecimento à época das publicações de Haeckel79. Com base na sua lei biogenética, cientistas europeus definiram o homem caucasiano como ápice da cadeia evolutiva e passaram a classificar as demais raças hierarquicamente segundo critérios filogênicos, indicando que o estágio ocupado pelos negros e “selvagens” em geral era o equivalente ao do desenvolvimento geral (e mental) de uma criança de um povo civilizado (GOULD, 1981, p. 115).

A idéia de que as raças humanas estavam em diferentes estágios de evolução, dada a luta pela sobrevivência que elas travavam, conforme concebido por Spencer, associada à lei biogenética de Haeckel, que permitia classificar os membros das raças inferiores como correspondendo a estágios filogeneticamente anteriores do desenvolvimento dos brancos europeus, dão as condições de possibilidade para que seja formulado um conceito absolutamente indispensável para a concepção do “criminoso nato” e para a generalização dos indicativos de uma “inferioridade” de caráter evolutivo entre os membros da raça superior. Trata-se do conceito de “atavismo”, a chave para que se pudesse pensar em uma “regressão” evolutiva de caráter patológico que permitia entender como um cidadão branco, pertencente às raças superiores segundo as teorias expostas, possuía “estigmas” que o equiparavam a um selvagem e o impeliam, mais cedo ou mais tarde, para o crime. Eis que emerge o “criminoso nato” no debate europeu vitoriano.

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É isso!

Fonte:
Francis Moraes de Almeida. "Heranças Perigosas: Arqueogenealogia da “periculosidade” na legislação penal brasileira". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia). Orientador: Prof. Dr. Enno Dagoberto Liedke Filho. Porto Alegre, 2005.
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Nota:
Imagem e título não se incluem na referida dissertação.

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