Lepra e leproso: estigma e imagem deteriorada

"Das previsões de Moysés, decretando leis severas contra o ‘zarath’ do Povo de Israel, até as medidas adoptadas pelo parlamento da Noruega, com o regime da hospitalização obrigatória dos leprosos, séculos contemplam extáticos a disseminação da lepra. Há dois milênios que o flagelo deformante da humanidade vem produzindo a sua obra mutilante e cegadora, tecendo armas triunfantes com os recursos postos em prática para combatê-lo. As populações préhistóricas do Egito, da Palestina e das Índias foram as primeiras que pagaram tributo à morféia. A Itália, no regresso das tropas de Pompéia, recebeu leprosos oriundos da Síria e do Egito. Celso, no século I; Empiricus, no IV; Egyno, no VII século, fazem estudos sobre a lepra. No decorrer do 1.º século da era cristã, a lepra invade a Lombardia, Gallicia, Espanha e a Inglaterra.

Campos Seabra, “A Prophylaxia da Lepra.”

O artigo do dr. Campos Seabra, “A Prophylaxia da Lepra”, apresentado no 1.º Congresso Paulista de Medicina, atribui à doença extensa ancestralidade. E compara as doenças bíblicas e a do Egito “pré-histórico” com a que levou o Parlamento da Noruega a pensar políticas públicas, no final do século XIX.

A projeção da doença com passado, presente e futuro foi exercício próprio da revolução microbiana no processo de elaboração das novas identidades das doenças60. Voltava-se ao passado para contrapô-lo às descobertas do presente e para afirmar a construção de um futuro certo: a identificação do agente etiológico de cada doença e a vitória dos remédios elaborados nos laboratórios.

Segundo Diana Obregón, é comum considerar a lepra como corte permanente na cultura ocidental desde tempos imemoriais. Na Colômbia, atualmente, assim como em ouros países, as palavras lepra e leproso ainda são utilizadas como sinônimos para o pior de uma situação ou de uma pessoa.

A palavra lepra tem uma história igualmente longa. Segundo Abraão Rotberg, no III século a.C., 72 sábios hebreus se reuniram para a tradução dos Neviim e Ketuvim (Números e Levítico, livros sagrados judaicos integrantes do Pentateuco) do hebraico para o grego, onde a palavra hebraica “tsara’ath” foi traduzida para o grego como lepra, cujo significado é descamação, esfoliação, sendo indicada como sinônimo para “impureza” e “desonra”62. No processo de tradução da Bíblia para o latim, o termo lepra foi mantido e o imaginário cristão foi associando à lepra a herança estigmatizante do antigo termo hebraico. A lepra bíblica além de ser utilizada para diversas doenças que se manifestavam na pele, era identificada também em roupas, paredes da casa, entre outros e para cada um desses eventos eram estipulados longos ritos de purificação, presididos pela autoridade do sacerdote.

Na discussão sobre essa imagem ancestral da lepra e do leproso, Diana Obregón dialoga com Saul N. Brody, Zachary Gussow e George S. Tracy. Brody afirma que a identificação do leproso como símbolo de depravação e pecado é contínua desde a Antiguidade até nossos dias. Para Gussow e Tracy, não. Analisam o estigma como produção do colonialismo do século XIX, pois, sendo a enfermidade endêmica na maioria dos continentes colonizados, associou-se os doentes a tudo que é “inferior” ou “incivilizado”. Essa condição inferior, essa identificação do leproso como aquele que deve ser cuidado, pois sua doença o incapacita para fazê-lo, seria herança também da redescoberta da lepra no século XIX; nesse sentido, instituições de caridade tornaram-se fortes aliadas no enfrentamento da doença. Na Inglaterra, com o objetivo de cuidar dos leprosos, foram fundadas a Missão Britânica para Leprosos (1874) e o Fundo Nacional da Lepra (1889), para os missionários a salvação da alma dos “leprosos indigentes” era prioridade máxima.

Para George Joseph, apesar da fundação da Missão ter sido posterior a identificação do Mycobacterium leprae por Hansen, os missionários fundamentaram sua atuação nas definições bíblicas e medievais da doença, associando a lepra à contaminação moral, degradação do corpo e ambientes insalubres. A orientação espiritual vinha dos atos de Jesus ao falar da Missão dos Apóstolos, em Evangelho Segundo São Mateus (10:1,8): “Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios” . Joseph não desassocia a evangelização dos objetivos sociais e políticos do imperialismo, pois aprender a ler em inglês para encontrar apoio espiritual na Bíblia Sagrada, inseria o doente na civilização ocidental, e, socialmente, instaurava a separação entre o doente integrado à Missão e o outro, não evangelizado, que negava sua salvação através do cristianismo.

“Esse trecho [Mateus 10, 1 8] nos permite verificar que a ‘lepra’ merece menção especial, não sendo inserida juntamente com as demais doenças; os ‘enfermos’ eram para ser ‘curados’, porém os ‘leprosos’ deveriam ser ‘limpos’.”

Lenita Claro cita o trabalho de Ilse Volinn para entender a origem do estigma da lepra. Volinn pesquisa a epidemia no século XIX no Havaí e questiona porque a varíola, também com evidência milenar, não se tornou objeto de estigma como a lepra, essa diferença estaria na natureza das doenças. Explica, então, que a varíola, apesar de marcar a pele, era de natureza aguda e fulminante, os que sobreviviam saíam com uma imagem de vitoriosos; enquanto, que a lepra era progressiva, crônica e deformante. Com as palavras de Sérgio Carrara, podemos dizer que a lepra é uma doença com “alta visibilidade social e intensa evocação simbólica”68. Para o autor, a lepra estava inserida no campo da dermatologia, assim como a sífilis, mas o estudo da doença desenvolveu, igualmente, uma trajetória própria, constituindo a disciplina da leprologia.

Essa “evocação simbólica” é um processo inerente às doenças cujos tratamentos e causas ainda não levam – ou levavam –, à cura ou a seu entendimento. Num primeiro momento, a doença é identificada com o que há de obscuro na sociedade (medos, corrupção, decadência), até chegar no processo que a própria “doença passa a adjetivar”, transformando-se em metáfora e através da metáfora construída, o “horror” é atribuído a outras coisas: “Os sentimentos relacionados com o mal são projetados numa doença. E a doença (assim enriquecida de significado) é projetada no mundo”69. Susan Sontag afirma que o indivíduo acometido de um doença terrível entra em outro mundo, o mundo da doença, e a partir daí vive uma espécie de exílio; cita Schopenhauer para dizer que a “a vontade se exibe com um corpo organizado e que a presença da enfermidade significa que a própria vontade está enferma”.

Diana Obregón ao analisar “A Doença como Metáfora”, de Susan Sontag, observa a distinção elaborada por esta autora entre a linguagem científica e a metafórica: “Sontag se detienne donde comienza la ciencia: para ella, el lenguaje científico no es metafórico, y la ciencia es verdad pura e simple”. Para Sontag, a linguagem científica não é metafórica, quer “acalmar” a imaginação para centrar-se na dimensão biológica para “desadjetivar”. Obregón encerra a discussão apresentando a perspectiva da construção social da doença, ou seja, a aprendizagem sobre uma doença e o contexto social em que ela se constitui são inseparáveis, tanto em sua produção, como em seu conteúdo.

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É isso!

Fonte:
ANDREA BAPTISTA FREITAS BRAGA: “O QUE TEM DE SER TEM FORÇA”: NARRATIVA SOBRE A DOENÇA E A INTERNAÇÃO DE PEDRO BAPTISTA, LEPROSO, MEU AVÔ - 1933-1955”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde/Fiocruz, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: História das Ciências. Orientadora: Prof.ª Dr.ª ÂNGELA PORTO). Rio de Janeiro, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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