O caminho em direção à eugenia

"Aos poucos, os termos do problema da inferioridade iriam modificar-se. O escravo moderno ficava nas colônias; e mesmo ali sua tendência era desaparecer. Entre os europeus, o operário substituiria o vassalo e, com ele (mas não em virtude dele), surgiriam os novos fenômenos sociais, urbanos, tais como, entre outros, o aumento da criminalidade ou os surtos epidêmicos resultantes da ocupação desordenada do espaço das cidades. A história é bem conhecida: a liberação de mão-de-obra em razão de seu inaproveitamento nos campos; o processo de industrialização e a formação do proletariado que, sem ter para onde ir, concentrava-se naquilo que cedo se tornaria um conjunto de aglomerados urbanos cada vez maiores; a insalubridade dos locais de trabalho e das moradias. Tudo isso trouxe para (bem) perto das elites um novo e adensado grupo social. Os novos problemas aumentavam, potencializando os antigos. As elites européias, a aristocracia e a alta burguesia, não hesitaram em identificar um “responsável” e arremessar aos ombros dos pobres toda a “culpa”. Malthus viu no crescimento geométrico dos pobres um perigo à sobrevivência das elites, antevendo uma improvável escassez de alimentos; a solução: controlar, não as causas e efeitos da pobreza (como por exemplo, pensar em aumentar a disponibilidade de alimentos), mas, sim, o número de pobres. Se já não era mais possível nem mesmo desejável escravizar continuariam, renovadas, as possibilidades de inferiorizar e suprimir. É desse contexto, obviamente um contexto de longa duração, que veremos surgir a eugenia. No último capítulo de sua autobiografia, Memories of My Life, Francis Galton enumeraria a pobreza como uma dentre as várias características apresentadas pelos “indesejáveis”, os que deveriam ser suprimidos. Seria então necessário

to prevent the free propagation of the stock of those who are seriously afflicted by lunacy, feeble-mindedness, habitual criminality, and pauperism (GALTON; 1908: 311).

Mesmo raquíticos, os argumentos em defesa da escravidão não deram lugar nem à abolição das crenças sobre inferioridade natural nem à instituição de um regime universal que, reconhecendo a unicidade e igualdade biológica dos seres humanos preservasse concomitantemente o direito à diversidade cultural. Perdurou um sentimento que autorizava a continuidade das práticas de submissão, legítimas ou não sob qualquer ponto de vista, fosse ele religioso ou político. O que não significa dizer que elas se fizessem daí por diante da mesma maneira. Entre as tantas coisas que significa o marxismo, ele é também uma maneira de explicar histórica e materialmente, de que e como se originaram as relações sociais e econômicas desiguais a partir do contexto embrionário do capitalismo. Mas, se o marxismo buscava descrever “cientificamente” o processo que conduziu às desigualdades de seu tempo, não faltaram também os defensores do uso do mesmo “método científico” como um modo incontestável de encontrar determinantes biológicos, exteriores a qualquer historicidade, que explicassem a existência de inferiores e lhes quisessem impedir a reprodução. No caso da eugenia, seu objetivo não se restringia a identificar os condicionantes que permitiam a proliferação da imperfeição, mas apresentava-se como um programa de aço contra as forças degenerativas. Num dos inúmeros artigos que escreveu na defesa da eugenia, Francis Galton terminava escrevendo que

Eugenics has a far more than Utopian interest: that it is a living and growing science, with high and practical aims (GALTON; 1908).

Por isso, forçosamente, quando nas relações sociais a igualdade biológica não é considerada um dado a priori vemo-nos face à história da eugenia. Não é com ela, certamente, que começamos a atribuir marcas de superioridade e inferioridade imaginadas como anteriores e determinantes das relaçes sociais. Mas é ela que busca a chancela “científica” para legitimar relações hierárquicas assentadas em “degenerações” biológicas. Isso não seria tão simples quanto dizer que os determinantes biológicos focalizados pela eugenia são parte da natureza humana, e portanto instintivos, porque assim o seriam também, por exemplo, a fala e a capacidade de comunicação. Trata-se de sustentar que o motor da história seriam as diferenças na qualidade dos instintos e da capacidade de manter a própria sobrevivência: a história somente pode começar acompanhando o constante movimento dos mais fortes. Assim, escreve Galton

The sense of Original Sin would show, according to my theory, not that man was fallen from a high estate, but that he was rapidly rising from a low one. It would therefore confirm the conclusion that has been arrived at by every independent line of ethnological research, that our forefathers were utter savages . . . and that af ter myri ads of years of barbarism our race has but very recently grown to be civilized and religious
(GALTON; 1892: 350).

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É isso!

Fonte:
ROGER ANDRADE DUTRA: “O Desencantamento das Ciências Estereótipos e Ambigüidades das Ciências e Tecnociências no Cinema e na Literatura Científica.” (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História Social, sob a orientaço da Profa. Dra. Denise Bernuzzi de Sant’Anna Roger Andrade Dutra). PUC-SP, 2005.

Nota:
A imagem em destaque não se inclui na referida tese.

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