"Na passagem do século XVIII para o XIX, conceber um mundo em mudança estava na ordem do dia. Não que antes os indivíduos não reconhecessem as mudanças que ocorreram no mundo, certamente reconheciam; no entanto, o que se pensava até então, pela força da influência de uma concepção essencialista, era que o universo, como criação da sabedoria divina, só poderia ser perfeito e imutável. Neste contexto, a mudança era compreendida enquanto um desvio de uma ordem natural e essencialmente perfeita. Mudança geralmente tinha o sentido contrário ao da ordem natural, promovida pela degenerescência ou degradação. O que pode ser notado no fato de que “nos séculos XVII e XVIII, a alteração biológica era usualmente designada pelo termo "degradação”.
Contudo, a mudança estava lá. As condições mudam e o mundo se transforma. Mas essa constatação, reforçada com a proliferação de evidências fósseis, ao invés de suscitar a admissão de um processo evolutivo, geralmente tinha o efeito contrário de sustentar determinadas posições que concebiam a eliminação das espécies como intervenções de forças sobrenaturais, justificadas por relatos bíblicos como o dilúvio e Sodoma e Gomorra, ou o resultado de catástrofes naturais, com a geração espontânea de uma nova flora e fauna. Nesse sentido, as mudanças biológicas produziriam desvios, aberrações, monstruosidades, que não se mantinham e eram eliminadas ou por intervenção divina ou por mudanças drásticas no ambiente, e não por novas formas modificadas de vida.
As várias teorias sobre as transformações que ocorreram e estavam ocorrendo no mundo natural, e também social, não eram propriamente formulações no sentido evolucionista de transformação gradual de uma espécie para outra. As possíveis teorias, com viés evolucionista, formuladas anteriormente ao início do século XIX, podem ser agrupadas em duas categorias, que segundo Ernst Mayr, não corresponderiam propriamente a teorias evolucionistas, mas sim a teorias sobre origens e teorias sobre desdobramentos de potencialidades imanentes:
“Os ditos precursores ou tinham teorias sobre ‘origens’, ou desdobramentos de potencialidades imanentes do tipo. Uma verdadeira teoria da evolução deve postular a transformação de uma espécie para outra, e isso ao infinito. Tais idéias não se encontram nos escritos de Maillet, Robinet, Diderot e outros, que supostamente influenciaram Lamarck. Diversos antecessores de Lamarck, como por exemplo Maupertius, postularam uma origem espontânea de novas espécies. Lineu, nos seus últimos escritos, mostrava-se muito impressionado com a possibilidade de novas espécies, por hibridação.”
É com a obra do naturalista francês Jean Baptiste Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829), que se tem de fato uma primeira formulação onde se percebe os contornos de uma teoria consistente e influente sobre o processo evolutivo. Com Lamarck, e sua teoria da evolução, muito embora não tenha usado o termo em suas obras, tem-se o início da substituição da visão de uma natureza estática por uma natureza dinâmica. Com esta substituição, a mudança, antes considerada uma degradação de um tipo perfeito, com Lamarck foi compreendida enquanto variações em um processo que permitiria o surgimento da diferenciação na espécie.
Não se tem no pensamento de Lamarck o que representaria a suposição de uma ancestralidade comum, para ele, ao contrário, existiram vários pontos de geração da vida. As formas de vida mais elevadas corresponderiam a um processo de muitas gerações provenientes do surgimento de formas simples. Restava somente descrever o mecanismo pelo qual variações, transmitidas às novas gerações, permitiram ao longo do tempo a estabilização das diferenças em características que possibilitariam a classificação taxionômica da espécie em uma linha filética.
Antes de Lamarck, as respostas dadas ao problema da extinção vinham de concepções que admitiam a intervenção do Criador ao longo da história, como na narrativa bíblica do dilúvio, ou de teorias catastrofistas, como as do paleontólogo francês George Cuvier (1769-1832).50 Ao introduzir a idéia de uma seqüência temporal e perceber a presença de um processo de mudança ao longo do tempo, ficou cada vez mais claro para Lamarck que o problema da extinção, na realidade, não existia, pois para ele os animais não haviam se extinguido de fato, mas sim se transformado nas formas atuais.
Na percepção do fator tempo, é que parece residir o ponto de inflexão que coloca as teorias de Lamarck no rol das teorias evolucionistas. Enquanto que os naturalistas anteriores, presos aos rigores da teologia natural, só conseguiam conceber as espécies organizadas de modo fixo em uma escala natural do seres que, de modo implícito, revelava a existência de um Ser Superior de infinita bondade e sabedoria, para Lamarck o conjunto de dados ao seu dispor sinalizava a evidência de uma transformação gradual dos organismos ao longo do tempo. Apoiado em seus estudos, Lamarck defendia uma teoria unitária da natureza, postulava que durante um longo espaço temporal operaram-se mudanças contínuas, e eram justamente estas mudanças que demandaram as modificações observadas no conjunto de dados a seu dispor no museu de Paris, quando assumiu, em 1790, a coleção de moluscos. De acordo com Mayr, em alguns casos os dados permitiam a Lamarck “ordenar os fósseis dos estratos mais primitivos e mais recentes do Terciário numa série cronológica, terminando numa série recente.
Ao se deparar com arranjos que, em alguns casos, possibilitaram-lhe organizar os fósseis em uma série filética sem interrupções, Lamarck conseguiu vislumbrar um conceito que faltou aos naturalistas anteriores –que os organismos poderiam ser organizados em uma linha temporal–, e isso lhe permitiu reconhecer uma série de novos fenômenos.
A percepção de que se poderia organizar os fosseis de modo que eles apresentassem a conformação de uma linha temporal em que se poderia observar mudanças gradativas de uma forma ancestral até a forma atual, sugeria para Lamarck que haveria alguma forma de adaptação dos organismos às mudanças ambientais. Assim, Lamarck passa a considerar a idéia de que seria o ambiente que determinaria as condições favoráveis para a existência de certos tipos de organismos. Mudanças ambientais seriam responsáveis ou pela eliminação de algumas espécies ou pela necessidade de transformação de outras para se adaptarem às novas condições ambientais. Não havendo nenhuma perturbação ambiental, manter-se-ia uma espécie de relação harmônica entre as condições ambientais e os organismos. No entanto, o meio ambiente está sujeito a mudanças sucessivas e contínuas que requerem dos organismos medidas adaptativas para que se recupere a harmonia perdida, forçando assim os organismos a se modificarem ao longo do tempo.
O que isso parece indicar é que Lamarck elaborou um mecanismo evolucionário de mudança e adaptação como um processo contínuo, onde não haveria oportunas divisões na natureza, e sim um fino e gradual processo de harmonização entre organismo e meio ambiente. Contudo, Lamarck não era um vitalista tampouco um teleologista, em seu processo evolutivo não há nenhuma força vital a conduzi-lo em um determinado sentido ou propósito. Para ele a necessidade de harmonização decorria de um potencial inato da vida animal. A tendência para a organização complexa, no sentido de um processo de desenvolvimento gradual de formas simples até as atuais, era o que poderia ser considerado como o subproduto de ações orgânicas internas aos organismos para fazer face às necessidades impostas por modificações no meio ambiente. Suas teorias são nesse sentido mecanicistas. De acordo com Mayer, as mudanças evolutivas na acepção de Lamarck correspondiam a duas causas:
"A primeira era uma capacidade que providencia a aquisição de sempre maior complexidade”. (...) “A segunda causa da mudança evolutiva era a capacidade de reagir a condições especiais do meio ambiente”.
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É isso!
Fonte:
Valdeir D. Dei Cont: “EUGENIA: A ciência do melhoramento das especificidades genéticas humanas”. (Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp,sob orientação do Prof. Dr. José Luiz dos Santos).
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
Contudo, a mudança estava lá. As condições mudam e o mundo se transforma. Mas essa constatação, reforçada com a proliferação de evidências fósseis, ao invés de suscitar a admissão de um processo evolutivo, geralmente tinha o efeito contrário de sustentar determinadas posições que concebiam a eliminação das espécies como intervenções de forças sobrenaturais, justificadas por relatos bíblicos como o dilúvio e Sodoma e Gomorra, ou o resultado de catástrofes naturais, com a geração espontânea de uma nova flora e fauna. Nesse sentido, as mudanças biológicas produziriam desvios, aberrações, monstruosidades, que não se mantinham e eram eliminadas ou por intervenção divina ou por mudanças drásticas no ambiente, e não por novas formas modificadas de vida.
As várias teorias sobre as transformações que ocorreram e estavam ocorrendo no mundo natural, e também social, não eram propriamente formulações no sentido evolucionista de transformação gradual de uma espécie para outra. As possíveis teorias, com viés evolucionista, formuladas anteriormente ao início do século XIX, podem ser agrupadas em duas categorias, que segundo Ernst Mayr, não corresponderiam propriamente a teorias evolucionistas, mas sim a teorias sobre origens e teorias sobre desdobramentos de potencialidades imanentes:
“Os ditos precursores ou tinham teorias sobre ‘origens’, ou desdobramentos de potencialidades imanentes do tipo. Uma verdadeira teoria da evolução deve postular a transformação de uma espécie para outra, e isso ao infinito. Tais idéias não se encontram nos escritos de Maillet, Robinet, Diderot e outros, que supostamente influenciaram Lamarck. Diversos antecessores de Lamarck, como por exemplo Maupertius, postularam uma origem espontânea de novas espécies. Lineu, nos seus últimos escritos, mostrava-se muito impressionado com a possibilidade de novas espécies, por hibridação.”
É com a obra do naturalista francês Jean Baptiste Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829), que se tem de fato uma primeira formulação onde se percebe os contornos de uma teoria consistente e influente sobre o processo evolutivo. Com Lamarck, e sua teoria da evolução, muito embora não tenha usado o termo em suas obras, tem-se o início da substituição da visão de uma natureza estática por uma natureza dinâmica. Com esta substituição, a mudança, antes considerada uma degradação de um tipo perfeito, com Lamarck foi compreendida enquanto variações em um processo que permitiria o surgimento da diferenciação na espécie.
Não se tem no pensamento de Lamarck o que representaria a suposição de uma ancestralidade comum, para ele, ao contrário, existiram vários pontos de geração da vida. As formas de vida mais elevadas corresponderiam a um processo de muitas gerações provenientes do surgimento de formas simples. Restava somente descrever o mecanismo pelo qual variações, transmitidas às novas gerações, permitiram ao longo do tempo a estabilização das diferenças em características que possibilitariam a classificação taxionômica da espécie em uma linha filética.
Antes de Lamarck, as respostas dadas ao problema da extinção vinham de concepções que admitiam a intervenção do Criador ao longo da história, como na narrativa bíblica do dilúvio, ou de teorias catastrofistas, como as do paleontólogo francês George Cuvier (1769-1832).50 Ao introduzir a idéia de uma seqüência temporal e perceber a presença de um processo de mudança ao longo do tempo, ficou cada vez mais claro para Lamarck que o problema da extinção, na realidade, não existia, pois para ele os animais não haviam se extinguido de fato, mas sim se transformado nas formas atuais.
Na percepção do fator tempo, é que parece residir o ponto de inflexão que coloca as teorias de Lamarck no rol das teorias evolucionistas. Enquanto que os naturalistas anteriores, presos aos rigores da teologia natural, só conseguiam conceber as espécies organizadas de modo fixo em uma escala natural do seres que, de modo implícito, revelava a existência de um Ser Superior de infinita bondade e sabedoria, para Lamarck o conjunto de dados ao seu dispor sinalizava a evidência de uma transformação gradual dos organismos ao longo do tempo. Apoiado em seus estudos, Lamarck defendia uma teoria unitária da natureza, postulava que durante um longo espaço temporal operaram-se mudanças contínuas, e eram justamente estas mudanças que demandaram as modificações observadas no conjunto de dados a seu dispor no museu de Paris, quando assumiu, em 1790, a coleção de moluscos. De acordo com Mayr, em alguns casos os dados permitiam a Lamarck “ordenar os fósseis dos estratos mais primitivos e mais recentes do Terciário numa série cronológica, terminando numa série recente.
Ao se deparar com arranjos que, em alguns casos, possibilitaram-lhe organizar os fósseis em uma série filética sem interrupções, Lamarck conseguiu vislumbrar um conceito que faltou aos naturalistas anteriores –que os organismos poderiam ser organizados em uma linha temporal–, e isso lhe permitiu reconhecer uma série de novos fenômenos.
A percepção de que se poderia organizar os fosseis de modo que eles apresentassem a conformação de uma linha temporal em que se poderia observar mudanças gradativas de uma forma ancestral até a forma atual, sugeria para Lamarck que haveria alguma forma de adaptação dos organismos às mudanças ambientais. Assim, Lamarck passa a considerar a idéia de que seria o ambiente que determinaria as condições favoráveis para a existência de certos tipos de organismos. Mudanças ambientais seriam responsáveis ou pela eliminação de algumas espécies ou pela necessidade de transformação de outras para se adaptarem às novas condições ambientais. Não havendo nenhuma perturbação ambiental, manter-se-ia uma espécie de relação harmônica entre as condições ambientais e os organismos. No entanto, o meio ambiente está sujeito a mudanças sucessivas e contínuas que requerem dos organismos medidas adaptativas para que se recupere a harmonia perdida, forçando assim os organismos a se modificarem ao longo do tempo.
O que isso parece indicar é que Lamarck elaborou um mecanismo evolucionário de mudança e adaptação como um processo contínuo, onde não haveria oportunas divisões na natureza, e sim um fino e gradual processo de harmonização entre organismo e meio ambiente. Contudo, Lamarck não era um vitalista tampouco um teleologista, em seu processo evolutivo não há nenhuma força vital a conduzi-lo em um determinado sentido ou propósito. Para ele a necessidade de harmonização decorria de um potencial inato da vida animal. A tendência para a organização complexa, no sentido de um processo de desenvolvimento gradual de formas simples até as atuais, era o que poderia ser considerado como o subproduto de ações orgânicas internas aos organismos para fazer face às necessidades impostas por modificações no meio ambiente. Suas teorias são nesse sentido mecanicistas. De acordo com Mayer, as mudanças evolutivas na acepção de Lamarck correspondiam a duas causas:
"A primeira era uma capacidade que providencia a aquisição de sempre maior complexidade”. (...) “A segunda causa da mudança evolutiva era a capacidade de reagir a condições especiais do meio ambiente”.
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É isso!
Fonte:
Valdeir D. Dei Cont: “EUGENIA: A ciência do melhoramento das especificidades genéticas humanas”. (Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp,sob orientação do Prof. Dr. José Luiz dos Santos).
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
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