Darwin e sua causa nada sagrada

O choque cultural pelo qual Darwin passou quando viu pela primeira vez os fueguinos causou-lhe um impacto tão forte que ele chega a finalizar seu livro “A Origem do Homem e a Seleção Sexual” com um relato que sintetiza toda sua visão sobre estes indígenas da Terra do Fogo: “Jamais esquecerei o espanto que tive quando pela primeira vez vi uma reunião de fueguinos numa praia selvagem e impérvia, diante da ideia que logo me veio à mente — assim eram os nossos antepassados. Esses homens estavam completamente pelados e tinham o corpo pintado, com os longos cabelos emaranhados, as bocas espumavam de excitação e tinham uma expressão selvagem, apa­vorada e cheia de suspeita. Malmente tinham alguma arte e viviam como animais selvagens daquilo que conseguiam capturar e eram impiedosos com o que não fosse da sua tribo. Quem tiver visto um selvagem em sua terra nativa não sentirá muita vergonha se for constrangido a reconhecer que em suas veias corre o sangue das mais humildes criaturas. Quanto a mim, quisera antes ter descendido daquela pequena e heróica macaquinha que desafiou o seu terrível inimigo para salvar a vida do próprio guarda; ou daquele velho babuíno que, des­cendo da montanha, levou embora triunfante um companheiro seu jovem, livrando-o de uma matilha de cães estupefatos, ao invés de descender de um selvagem que sente prazer em tor­turar os inimigos, que encara as mulheres corno escravas, que não conhece o pudor e que é atormentado por enormes su­perstições” (Hemus Editora, 1974, p. 711).

As narrativas, a seguir, todas extraídas do seu diário à bordo do Beagle (“
Viagem de um naturalista ao redor do mundo”, publicado em Língua Portuguesa pela Abril Cultural), parecem vir de encontro à tese de um Darwin que idealizou sua teoria da evolução em prol de uma causa sagrada. Sua repulsa, seu nojo e desprezo por este povo serve como uma pequena mostra de como o “civilizado, cristão e superior homem europeu” via o “incivilizado, pagão e selvagem indígena”.

Sim, é bem verdade que este tipo de mentalidade não era exclusividade do autor de “A Origem das Espécies”. Em vez disto, refletia a forma de pensar quase generalizada do inglês vitoriano. Vá lá, levemos em conta o contexto cultural da época, mas, por que, afinal, essa tentativa ilógica de atribuir a Darwin uma luta que nunca foi a dele? Ele era abolicionista? Sim, mas, a abolição da escravatura também não era uma necessidade imposta pela coroa inglesa naquele instante histórico?

Ora, se Darwin era um abolicionista por desejar ver o bem dos africanos, por que não nutria ele do mesmo apreço para com os pobres fueguinos?

Pois é...
Mas, vamos a Darwin:

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"VIAGEM DE UM NATURALISTA AO REDOR DO MUNDO":

"Pela manhã, o capitão expediu uma embaixada que fosse entender-se com os fueguinos. Logo que chegamos à distância de poder ouvir, um dos quatro aborígines que se tinham adiantado para nos receber pôs-se a gritar com grande veemência, desejando indicar-nos o local onde poderíamos desembarcar. Quando nos viram em terra, porém, pareceram um tanto alarmados, contudo continuaram a falar e gesticular rapidamente. Era, sem exceção, o espetáculo mais interessante e curioso a que jamais me foi dado assistir: nunca poderia ter acreditado na enormidade da diferença que separa o selvagem do homem civilizado; é maior do que a que existe entre a fera e o animal domesticado, por isso que, no homem, há mais capacidade de aperfeiçoamento..."

"O ancião possuía uma testeira de penas brancas que lhe escondia parcialmente o emaranhado das tranças pretas e rudes. Atravessavam-lhe horizontalmente o rosto duas barras lárgas: uma, pintada de encarnado brilhante, ia-lhe de uma orelha à outra, abrangendo o lábio superior; a outra, branca como giz, se estendia paralelamente acima da primeira, cobrindo-lhe dessa cor até as pálpebras. Os outros se achavam sarapintados de pó negro, feito de carvão vegetal. O grupo, francamente, mais parecia encarnar os demônios que aparecem no palco em peças do gênero de Der Freischzutz.
A própria atitude já era abjeta, e a expressão que se lhes desenhava no semblante era de surpresa, suspeita e alarma. Recebidos que foram os presentes que lhes levávamos, constando de fazenda escarlate e que se apressaram em amarrar em torno do pescoço, logo se acamaradaram. Isso nos deu a entender o velho, batendo levemente em nosso peito, e fazendo um ruído cacarejante, semelhante ao que se faz quando se dá milho à criação. Caminhei algum tempo em sua companhia, e essa demonstração de amizade se repetiu várias vezes; completavam-na três fortes palmadas que me dava simultaneansente no peito e nas costas. Descobria, depois, o busto para que eu lhe retribuisse o cumprimento, que, uma vez feito, aparentemente o enchia de grande satisfação. A linguagem desse povo, de acordo com a noção que dela fizemos, quase nem merece ser descrita como articulada. Comparou-a o Çapitão Cook ao som que um indivíduo produz quando procura desimpedir a laringe; certamente, porém, nenhum europeu jamais desimpediu a garganta fazendo cacarejos tão guturais e roucos como aqueles..."

"Até aqui não falei ainda a respeito dos fueguinos que trazíamos a bordo. Durante a viagem anterior do Adventure e do Beagle, de 1826 a 1830, o Capitão Fitz Roy prendera um grupo de nativos como reféns contra o roubo de um barco, cuja falta seriamente embaraçou a comissão de vistoria. Estes aborígines, e mais uma criança que havia comprado por um botão de pérolas, levou-os à Inglaterra, comprometendo-se a educá-los e dar-lhes instrução religiosa por sua própria conta. Um dos principais motivos que induziram o Capitão Fitz Roy a empreender a presente viagem foi restabelecer esses indígenas na sua terra natal..."

"Ao verem um dos nossos braços, pasmaram-se ante a sua brancura, exatamente como fizera um orangotango que eu tinha visto no jardim zoológico."

"Quando descíamos, um dia, próximo à ilha Wollaston, acercamo-nos de uma canoa em que iam seis fueguinos. Eram as criaturas mais abjetas e miserandas que tinha visto onde quer que fosse."

"Em outro ponto não muito afastado, veio para perto do navio uma mulher nua que trazia ao peito um recém-nascido. Sem dar atenção ao granizo que caía e se fundia ao calor do seio e do corpo do seu filhinho, ali permaneceu longo tempo, presa de simples curiosidade! As míseras criaturas estavam atrofiadas; tinta gordurosa pintava-lhes o semblante horrível, a pele cobria-se de graxa e imundície, os cabelos andavam desgrenhados, a voz era dissonante e os gestos, violentos. Olhando-se para aqueles homens, custava-nos crer que fossem criaturas da nossa espécie e habitassem o mesmo mundo. É assunto comum de conjeturas o prazer que acaso possam ter na vida alguns dos animais inferiores: que dizer-se daqueles bárbaros, tomando-os como objeto de tais meditações! Cinco ou seis criaturas humanas, nuas e mal protegidas contra a inclemência da chuva e do vento desse clima borrascoso, deitam-se sobre o solo úmido para passar a noite, enrolados como pobres irracionais..."

"O depoimento do rapaz que acompanhava Mr. Low, se bem que independente, corrobora as declarações de Jemmy Button, segundo as quais, quando premidos pela fome, no inverno, sacrificam e devoram as mulheres velhas, antes de se decidirem a matar o cães. Interrogado por Mr. Low, o rapaz replicou que “cães apanham lontras; mulheres velhas, não”. Descreveu também o modo pelo qual sufocam a vítima na fumaça, imitando-lhe pitorescamente os gritos, e dizendo quais as partes do corpo que se reputavam mais saborosas ao paladar. Horrível como deve ser a morte dessas pobres mulheres, infligida assim pelos próprios parentes e amigos, deve ser ainda mais pungente o medo que as acomete, nas ocasiões em que a fome começa a se fazer sentir. Contam que, muitas vezes, fogem para as montanhas, mas vão buscá-las os homens e são reconduzidas ao altar do sacrificio: a própria lareira!"
Nunca pôde o Capitão Fitz Roy certificar-se se os fueguinos possuem alguma crença definida sobre a vida futura. Enterram por vezes os seus mortos em cavernas, ou então nas florestas das montanhas. Não sabemos que ritual celebram. Jemmy Button não se decidia a comer aves terrestres, por isso que elas se alimentam de “homens mortos”. Recusam-se até mesmo a fazer menção dos amigos falecidos. Não temos base para crer que pratiquem alguma forma de adoração religiosa, entretanto, poder-se-ia considerar como cerimônia dessa natureza a prece do ancião murmurada sobre a banha que distribuía à família esfomeada..."

Não podem conhecer a sensação de possuir um lar, e muito menos a dos afetos domésticos, pois o marido é para a mulher o que é para o laborioso escravo um senhor brutal. Que quadro de perpetração mais horrenda-se poderá contemplar do que a cena que Byron presenciara na costa ocidental, quando uma desventurada mãe desceu para erguer o filhinho ensangüentado e moribundo que o marido lançara impiedosaniente de encontro às pedras, por ter deixado cair um cesto de ovos marinhos! Quão pouco podem as faculdades mais nobres da mente ser postas em ação: que haverá ali que a imaginação se possa representar, a razão comparar, ou sobre que o julgamento se decidir? Para arrancar um marisco do rochedo, nem sequer astúcia é preciso, essa mais rudimentar faculdade da mente. A sua habilidade em muitos respeitos é comparável ao instinto dos animais, pois não se aperfeiçoa com a experiência. A canoa, o produto máximo do seu engenho, miserável como é, tem, como no-lo informa Drake, permanecido a mesma durante os últimos 250 anos.
Quando se contempla esse povo selvagem, pergunta-se, a si mesmo, de onde teria procedido? Que sedução poderia ter atraído esses indivíduos, ou que alterações haveriam forçado essas tribos a deixarem as belas regiões do norte, viajarem através da cordilheira, a espinha dorsal da América, para inventarem e construírem canoas que não se usam nas tribos do Chile, do Peru e do Brasil, e entrarem numa das mais inóspitas regiões no limite dos confins do globo? Conquanto tais reflexões possam a princípio apoderar-se da mente, podemos, entretanto, ter certeza de que são parcialmente errôneas. Não há motivo de se supor que o número dos fueguinos esteja em declínio, de sorte que é lícito acreditar-se que gozam de certa soma de felicidade, seja ela de que natureza for, e que lhes torna a vida digna de ser vivida. A natureza, que tudo prevê pela onipotência do hábito e dos seus efeitos hereditários, amoldou os fueguinos au clima e aos produtos da sua miseranda pátria..."

"Nunca me hei de esquecer do aspecto imorigerado e selvagem de um grupo de quatro ou cinco indígenas que, abeirando-se subitaniente do precipício, absolutamente nus, os cabelos compridos a rolar-lhes pelas faces, se puseram a saltar, acenar com varas grosseiras e vociferar os mais terríficos guinchos. (. ..)"

"Vários deles haviam corrido tanto, que o sangue lhes brotava do nariz, e a boca se enchia de espuma, da pressa com que falavam. E, pela nudez do corpo besuntado de preto, branco e vermelho, mais pareciam demônios que regressavam de encarniçada refrega.
Na manhã seguinte à nossa chegada (dia 24), começaram os fueguinos a aparecer de todas as direções, vindo também a mãe e os irmãos de Jemmy. Este havia reconhecido, de prodigiosa distância, a voz estentórea de um dos seus irmãos. O encontro foi menos interessante que o de um cavalo que, sendo solto num pasto, ali deparasse com velho camarada seu. Não houve a menor demonstração de afeto. Limitaram-se a fitar-se durante alguns minutos, a mãe logo se afastando, a cuidar da sua canoa. Soubemos, no entanto, por York, que ela tinha ficado inconsolável com a perda de Jemmy; que o havia procurado por toda parte, julgando que tivessem esquecido de levá-lo no navio. As mulheres acolheram Fuegia com muita bondade. Já tínhamos percebido que Jemmy quase não se lembrava mais da língua materna. Acho que não poderia haver outra criatura humana que possuísse menor cabedal de vocábulos, pois o seu inglês era paupérrimo. Se bem que o lamentássemos, não pudemos deixar de achar graça em vê-lo dirigir-se em inglês ao irmão, e, logo a seguir, perguntar-lhe em espanhol: “No sabe?”..."

"Os três fueguinos, embora tivessem mantido contato de somente três anos com homens civilizados, gostariam, estou certo, de se aterem aos seus novos hábitos, mas via-se que isso seria impossível. Receio até que seja duvidoso se a sua visita à civilização lhes tivesse realmente valido qualquer proveito concreto..."

"Quando me achava na baleeira, cheguei até a criar ódio pelo mero som da sua voz, tantos dissabores ela nos tinha, a todos, custado. A primeira e a última palavras eram sempre yammerschooner. Entrando em alguma baiazinha sossegada, pensando que fôssemos passar uma noite tranqüila, eis que ressoa, inesperadamente, partida de um canto obscuro, a palavra estridente e odiosa, fazendo-se a notícia espalhar pela fumaça do fogo sinaleiro. Sempre que deixávamos um ancoradouro, costumávamos dizer: “Graças aos céus, estamos ficando livres desses míseros mortais !“ Contudo, uma derradeira vez, através de prodigiosa distância, se fazia ouvir o eco mortiço de uma palavra na qual ainda reconhecíamos claramente o detestável yammerschooner. Entretanto agora, quanto mais fueguinos encontramos no caminho, tanto mais divertimento nos propiciamos. Tanto eles como nós, rindo-se, admirando-se e pasmando-se uns dos outros; nós, apiedando-nos deles por nos fornecerem tão excelentes peixes e siris a trocâ de farrapos sem valor; eles, afoitando-se em agarrar a oportunidade de encontrar gente tão maluca que trocava, por um bom almoço, tão esplêndido atavio.

Disse que tinha construído uma canoa, e gabou-se de já poder falar um pouco do seu próprio idioma! O mais curioso é que parecesse ter ensinado um pouco de inglês a toda a sua tribo, pois um ancião, espontaneamente, apresentou-nos a moça, dizendo: “Jemmy Buton’s wife”. Jemmy perdeu tudo quanto possuía. Disse-nos que York Minster tinha feito uma grande canoa e que, havia vários meses, ele e sua esposa Fuegia tinham voltado à terra natal. Despediu-e perpetrando um gesto da mais consumada vilania. Depois de persuadir Jemmy e sua mãe a acompanhá-lo, desertou-os durante uma noite, roubando-lhes absolutamente toda a bagagem...

A perfeita igualdade entre os indivíduos que compõem as tribos de Terra do Fogo deverá retardar-lhes, por longos anos, a civilização. Como nos animais, cujo instinto os obriga a viverem em sociedade, sob a obediência de um chefe, e que vemos mais capazes de melhoramento, assim também com as raças da humanidade. Onde quer que procuremos a causa ou conseqüência dos mais civilizados, encontramo-la sob as formas mais artificiais de governo. Por exemplo, os habitantes de Otaheite, que, quando descobertos, se faziam governar por reis hereditários, tinham atingido cultura mais alta do que outro ramo da mesma raça, os da Nova Zelândia, que, conquanto beneficiados pela atenção que foram compelidos a dar à agricultura, eram republicanos no mais absoluto sentido da palavra. Na Terra do Fogo, até que algum chefe se levante com poder suficiente para garantir-se a posse de vantagens adquiridas como sejam os animais domésticos, parece quase impossível que o estado político do país possa melhorar. Presentemente, o simples pedaço de tecido que se dá a um índio é rasgado em mil pedaços para contentar a todos, nenhum ficando mais rico do que o outro. De outro lado, difícil é compreender-se como poderia elevar-se um chefe, capaz de manifestar sua superioridade e subir ao poder, senão quando houvesse algum conceito acerca da propriedade, que a isso o ajudasse, distinguindo-o dentre os demais.
Creio que nesta parte extrema da América do Sul as condições de melhoramento em que o homem vive são muito inferiores às de qualquer outra parte do mundo. Os ilhéus do mar do Sul, das duas raças que povoam o Pacífico, são comparativamente civilizados. Os esquimós nas suas grutas subtenâneas gozam de algum conforto na vida, e, quando saem completamente equipados em suas canoas, manifestam o domínio de grandes habilidades. Algumas das tribos sul-africanas, perambulando à cata de raízes, e vivendo ocultas nas extensões planas e áridas, são já bastante inditosas. Os australianos, na simplicidade das artes da vida, são os que mais se aproximam dos fueguinos. Podem, entretanto, gabar-se do seu bumerangue, da sua lança, do seu processo de escalar árvores, seguir a pista dos animais e caçar. Pelo fato de o australiano ser superior nas suas aquisições não se deve, contudo, deduzir que seja igualmente superior na sua capacidade mental; muito ao contrário, pelo que observei dos fueguinos, quando a bordo, e pelo que tenho lido sobre os australianos, sinto-me inclinado a pensar que é justamente o contrário que se dá."

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É isso!

Fonte:
Charles Darwin: “Viagem de naturalista ao redor do mundo”. Abril Cultural. São Paulo, p.59-67:


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