Pra não esquecer o Piltdown

A famigerada farsa do Homem de Piltdown teve seu enlace em 1953, quando descobriram que o deslumbrante “elo” era apenas uma montagem feita a partir de uma mandíbula de um símio com partes do crânio de um homem.

Tenho aqui em mãos um “fóssil literário”, uma raridade intitulada “A Génese da Humanidade”, de C. Arambourg (professor no Museu de História Natural de Paris), publicado em Língua Portuguesa no ano de 1950, pela antiga Publicações Europa-América (e na França, em 1948). Ou seja, 5 anos antes da farsa vir a público.

O trecho a seguir, não obstante traga em si indícios de suspeita sobre a veracidade do fóssil, está incluso no livro com objetivo de explicar como se deu o surgimento do homem. Não deixa também de ser interessante pelos nomes envolvidos na trama. Para quem gosta de história, vale a pena uma rápida lidinha:

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Os fósseis de Piltdown (Eoantropus dawsani)

"Trata-se de diversos restos ósseos descobertos na Inglaterra, no condado de Sussex, ao norte de Newhaven, em dois pontos diferentes de uma mesma formação geológica. Numa primeira jazida encontraram-se alguns fragmentos de caixa craniana, um fragmento de mandíbula com dois pré-molares no seu lugar e um canino inferior isolado; todos estes vestígios foram sucessivamente recolhidos por C. Dawson e Smith Woodward com intervalos de meses ou anos, mas na vizinhança uns dos outros. Uma segunda jazida afastada alguns quilómetros da primeira forneceu mais tarde outros fragmentos de um segundo crânio com um molar isolado.

A formação geológica que contém todos estes restos é uma mistura de areia e cascalho pouco espessa, cobrindo uma superfície topográfica situada a cerca de 25 metros acima do talweg dos vales correspondentes. Esta camada de cascalho e areia encerra uma fauna onde os calhaus rolados atestam o desmantelamento de formações mais antigas da idade pliocénica, assim como na indústria de lascas do tipo clactonense-levailoisense. Mesmo que se admita que estas camadas não sofreram modificações posteriormente à sua formação (o que não é absolutamente seguro), a sua idade continua ainda incerta porque tem sido, conforme, os autores, atribuida ao 1º , 2º ou 3º interglaciares; a indústria que contém apoiaria tlpológicamente a segunda opinião.

Os vestígios ósseos humanóides, que daí provêm, apresentam uma associação de caracteres bastante paradoxal: enquanto que a caixa craniana reconstituida se aproxima da dos homens actuais, a mandibula e a dentição são perfeitamente simiescas. As controvérsias, que desde as primeiras descobertas opuseram entre si os mais eminentes antropologistas, diziam,também, respeito à contemporaneidade de todas estas peças, à sua antiguidade e idade real e sobretudo à atribuição a um mesmo individuo e a uma mesma espécie do crânio e da mandíbula encontrados na primeira jazida. No seu livro sobre Os Homens Fósseis, Boule discutia longamente estes diversos pontos de vista; não tendo surgido depois dessa obra recomendamos esse trabalho para quem queira mais amplos esclarecimentos.

Foram tentadas várias reconstituições do primeiro crânio por diversos autores: Smith Woodward, E. Smith, A. Keith, Weinert. Todos diferem entre si sobre vários pontos, mas todos estão de acordo em revelar que se trata de um crânio que se assemelha em muitos pontos de vista ao do Homo sapiens actual: pela forma geral, pela capacidade de 1.350 c. c. pelo perfil frontal e occipital pela ausência de tórus circum-orbital e estrutura da região temporal e mastóidea, etc. Em contrapartida, a moldagem endocraniana revela, segundo Elliot-Smith, caracteres primitivos e simiescos absolutamente surpreendentes. Enfim, todos os ossos são particularmente espessos e maciços como nos antropóides e nos homineos primitivos.

A mandíbula apresenta um enorme canino saliente, urna região sinfisária longa e fortemente inclinada para trás, assim como uma série dental rectilínea, formada por molares alongados, idênticos, na sua estrutura, aos dos chimpanzés; o aspecto geral desta mandibula é nitidamente antropóide e, como o fez notar Boule, se tivesse sido encontrada isolada, ninguém teria discutido a sua atribuição a um antropólde do Quaternário. Há, também, autores que pensam que esta mandíbula não pertence ao crânio com o qual foi encontrada; foi a primeira opinião de Boule; é a de Miller, de Gregory e este propôs o nome de Pan vetus para designar o chimpanzé fóssil a que teria pertencido. Mas não é essa a opinião de Smith Woodward, de Keith, nem, também, de Boule, para os quais crânio e mandíbula pertencem a um único e mesmo ser de caracteres mistos.

Os restos do segundo crânio, descobertos a alguns quilómetros do primeiro, compreendem em particular um fragmento de frontal que (partindo do principio que é da mesma idade que o outro), confirma a ausência de viseira supra-orbital já observada no anterior. Um pré-mo- lar encontrado ao mesmo tempo é do mesmo tipo que os da primeira mandibula, o que favoreceria a opinião de Smith Woodward.

Seja como for, as diversas tentativas de reconstituição, de que se tratou, fizeram salientar, conforme as tendências dos seus autoras, ou os caracteres «humanos» do fóssil de Piltdown ou, pelo contrário, os seus caracteres «primitivos». A atribuição da mandíbula chimpanzóide continua a ser a grande dificuldade; dois pontos de vista se apresentam irreconciliáveis: 1º o ponto de vista que, fazendo abstracção da mandíbula, quer ver no «Homem de Piltdown» um precursor directo do Homo sapiens representando um ramo distinto dos Pitecantropídeos e dos Neandertalenses; 2° o ponto de vista para o qual a associação de uma morfologia craniana humana com dentição e cérebro humanos pertence à mesma ordem dos factos observados nos Pitecantropideos onde uma morfologia craniana primitiva se alia a uma dentição e membros humanos.

Por agora, o enigma de Piltdown continua, a controvérsia prossegue e durará, talvez, muito tempo ainda, até à descoberta de documentos mais completos e datados com mais certeza” (p. 103-105).

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É isso!

Fonte:
A. Arambourg: “A Génese da Humanidade”. Publicações Europa-América. Lisboa, 1950.

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