As novas formas de preconceito

"Nos séculos em que ocorreu a escravidão, o racismo era expresso de maneira aberta, pois refletia as normas legais da época: os escravos eram propriedades dos donos. Com o advento dos processos de emancipação dos escravos (finais do século XVIII e início do XIX) desenvolve-se um processo confuso onde em muitas situações instala-se o apartheid legal e o implícito também. Mas após os trágicos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial mudanças históricas significativas começaram a acontecer.

A partir deste momento, as formas de expressão do racismo e do preconceito mudaram tão significativamente que se imaginava que estes fenômenos estariam em declínio. Com efeito, uma série de pesquisas, utilizando metodologias tradicionais de coleta de dados ou medidas diretas de atitudes raciais feitas em épocas diferentes, demonstrou que as atitudes contra os negros, em vários lugares do mundo, estavam mudando (Lima & Vala, 2004).

Nos EUA, os estereótipos atribuídos aos negros pelos americanos brancos tornaram-se progressivamente menos negativos. Nos anos 30, mais de 80% dos americanos brancos consideravam os negros como supersticiosos. Esta aceitação aberta do estereótipo negativo caiu para 3% nos anos 90 (Aronson, Wilson, & Akert, 2002; Lima & Vala, 2004)

Na Europa, em uma pesquisa realizada junto a amostras representativas de vários países, 70% dos europeus afirmaram que os imigrantes deveriam ter os mesmos direitos que eles (Ben Brika, Lemaine & Jackson, 1997).

No Brasil, dados comparativos dos estereótipos atribuídos aos negros, na década de 50, em amostras de estudantes universitários brancos, indicaram também um claro padrão de mudança nos estereótipos associados aos negros. Os estereótipos negativos em relação aos negros praticamente caíram em desuso. Em contrapartida, os dados indicam que os estereótipos positivos ganharam mais poder com o tempo (Camino, da Silva, Machado & Martinez, 2000).

Esses resultados demonstram, aparentemente, que o preconceito contra grupos minoritários está em declínio na atualidade. Todavia, uma análise mais cuidadosa desses mesmos dados e de outros apresenta um quadro bem diferente. Nos EUA, por exemplo, não obstante seja verdade que alguns grupos menos privilegiados avançaram em áreas como educação, emprego, e moradia; uma análise mais aproximada revela que, em termos relativos, as desigualdades permanecem e até aumentaram em alguns aspectos (Dovidio & Gaertner, 1998; Pettigrew, 1985).

O que está ocorrendo é uma mudança nas formas de expressão e no conteúdo do preconceito. Assim, as primeiras explicações psicológicas que estudavam um racismo aberto, agressivo e freqüentemente institucionalizado, estão sendo gradualmente substituídas pela preocupação em revelar formas menos evidentes e mais difundidas de racismo, formas estas que reproduzem atitudes discriminatórias sem desafiar as normas sociais vigentes (Camino, 2006).

Estas novas expressões do preconceito recebem diversos nomes e apresentam peculiaridades próprias aos seus contextos de imersão.

Assim, temos diversas formas de racismo identificadas em diferentes países, como descritas a seguir: o racismo moderno na Austrália (McConahay & Hough, 1976; Pedersen & Walker, 1997); o racismo simbólico, (Kinder & Sears, 1981), o racismo aversivo (Gaertner & Dovidio, 1986) e o racismo ambivalente, ambos nos EUA (Katz & Hass, 1988). O racismo sutil na Europa (Pettigrew & Meertens, 1995) e o racismo cordial no Brasil (Turra & Venturi, 1995).

Neste sentido, Billig (1991) afirma que a maioria das pesquisas em psicologia social sobre o preconceito limita-se ao estudo das imagens negativas que os grupos
majoritários têm dos grupos minoritários e da distância social que desejam manter deles. Mas para entender o complexo processo da discriminação social seria necessário analisar o significado ideológico e psicológico do preconceito no contexto das ideologias modernas. Assim, ao analisar especificamente o racismo, Billig concorda com numerosos pesquisadores (McConahay, 1983; Kinder & Sears, 1981; Pettigrew & Meertens, 1995) sobre o fato de existir uma norma geral anti-preconceito tão forte que é compartilhada mesmo pelos grupos racistas mais radicais. Mas discorda de uma interpretação puramente psicológica deste fenômeno. Aspectos ideológicos devem ser considerados.

Assim, segundo Billig (1991), se a ideologia reflete a organização econômica, pode-se esperar que a mentalidade moderna inclua tanto aspirações universalistas dos primeiros movimentos liberais, quanto às aspirações particularmente nacionalistas que a concorrência capitalista foi inculcando. Por isso, na mentalidade pós-moderna coabitam aspirações moralistas de fraternidade internacional e preocupações mais realistas que só podem ser justificadas por considerações bem concretas.

Billig conclui sua análise afirmando que o triunfo de uma ideologia é o triunfo no discurso cotidiano da exigência por justificativas empíricas de seu sucesso. Isto estabelece um paradoxo: quanto mais se critica o preconceito mais os preconceitos do liberalismo são justificados. Por outro lado, poder-se-ia afirmar que no nível conceitual, o problema fundamental das abordagens sobre como o racismo é visto está na relação proposta entre os aspectos psicológico e social. Para alguns autores das abordagens do novo preconceito, as pessoas experimentariam, consciente ou inconscientemente, um conflito psicológico devido ao confronto entre suas atitudes íntimas preconceituosas e as normas sociais externas, contra o preconceito. Este conflito levaria a formas mais sutis ou camufladas de expressão do preconceito. Ao adotar esta concepção de conflito estas teorias mantêm uma dicotomia radical entre individuo e sociedade. Pode-se superar em parte esta dicotomia
considerando que, se os sujeitos experimentam algum conflito em certas situações e terminam expressando-se de maneira ambivalente, não o fazem porque o conflito tem sua origem em processos psicológicos do sujeito, “mas sim por que o sujeito reproduz, como próprios, os argumentos ou repertórios conflitantes que circulam na própria sociedade” (Wetherell, 1996).

A explicação em termos de conflito psicológico interno sustenta-se em boa parte na existência de processos de acomodação nas pessoas, sem entrar no debate da natureza da norma social. Aceitam-se as normas anti-racismo naturalmente, como se de fato fossem normas cujo objetivo fosse a inclusão, na sociedade, das pessoas de cor. De fato como Billig (1985) afirma, num mundo contemporâneo baseados na igualdade e na fraternidade coabitam valores de justiça social junto com valores de auto-realização pessoal e profissional baseados nos princípios meritocráticos (Inglehart, 1991; 1994; Pereira, Lima & Camino, 2001; Pereira, Camino & da Costa, 2005b). Desse modo, a frase “eu não sou preconceituoso, mas devemos reconhecer que os estrangeiros estão tirando o nosso emprego” afirma, concomitantemente, valores éticos pós-modernos e princípios meritocráticos muito concretos.

No Brasil, uma análise das características positivas atribuídas aos negros indica uma nova e sofisticada forma de preconceito, uma vez que os estereótipos positivos aplicados definem claramente papéis sociais específicos para este grupo. Recentes estudos (Camino, 2004; 2005; 2006; Camino, da Silva, Machado & Pereira, 2001; Camino, da Silva & Machado, 2004; Camino, da Silva, Machado & Mendoza, 2007) procuraram mostrar as formas que esse preconceito racial está tomando. Admite-se a existência do preconceito no Brasil, mas curiosamente a grande maioria não se considera preconceituosa. As pessoas parecem ter clara consciência da discriminação racial que se vive no país, mas não aceitam a responsabilidade por esta situação. Ou seja, os brasileiros falam bem dos
negros e mal dos brancos, mas quando perguntados sobre o que pensa o povo brasileiro, falam o contrário, mal dos negros e bem dos brancos.

De fato, parece que as pessoas se conformam à norma, mas não a internalizam. O preconceito dessas pessoas só apareceria quando pudesse ser expresso através de formas socialmente aceitas. Como, por exemplo, usar a maneira de pensar dos brasileiros. Afirmando que os brasileiros são racistas, as pessoas não só reconhecem um fato, mas criam uma dupla norma que lhes guia no seu cotidiano. Assim, observa-se com freqüência que muitas pessoas afirmam que, por elas, teriam algum tipo de relação inter-racial, mas tendo em conta o preconceito dos outros, desistem da fazer tal coisa (Camino, 2006)

Estas novas expressões do preconceito recebem diversos nomes e apresentam peculiaridades próprias aos seus contextos de imersão. E é neste sentido que outros autores vão falar em retorno do racismo (Pereira, 1996). Como argumenta Essed (1991), as novas formas de preconceito referem-se a comportamentos discriminatórios da vida cotidiana das pessoas em contextos culturais específicos.”

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É isso!

Fonte:
Giovani Amado Rivera: “As novas formas de racismo e os valores sociais”. (Dissertação submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia Social. Orientador: Prof. Dr. Leoncio Camino Rodrigues Larrain). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2009.

Nota:

A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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