Novas formas de preconceito e a identidade racial brasileira

“Novas formas de preconceito se desenvolveram com a institucionalização das normas que proíbem a discriminação contra grupos minoritários (McConahay, Hardee & Batts, 1981; Santos, 1999) criando-se assim mecanismos de expressão que não ferem abertamente essas normas (McConahay,1983; Gaertner & Dovidio, 1986; Katz & Hass, 1988; Pettigrew & Meertens, 1995).

Diversas são as teorias que tratam das novas formas de preconceito racial. Para a t
eoria do Racismo Simbólico ou Moderno (McConahay & Hough, 1976; Kinder & Sears, 1981) o preconceito contra os negros decorre da ameaça que estes imprimiriam aos valores do individualismo da cultura ocidental. Os racistas ‘simbólicos’ consideram que os negros estão violando valores socialmente apreciados, e, portanto, não estão seguindo as regras sociais aplicadas por outras gerações às minorias necessitadas. Este grupo racista possui características peculiares, diferentemente dos racistas antigos: não apóiam estereótipos negativos tradicionais (burros, estúpidos, etc.), não são segregacionistas, mas mesmo assim, mantém certo afeto anti-negro de forma quase inevitável.

Este racismo fundamenta-se na defesa do conservadorismo, seguindo normas de justiça baseadas na meritocracia e se caracteriza por uma percepção exagerada das diferenças culturais que separam o endogrupo do exogrupo, e por fim, negam respostas emocionais positivas no que se refere aos membros do exogrupo (Navas, 1997).

Já a teoria do Racismo Aversivo (Gaertner & Dovidio, 1986) afirma que são os contextos de respostas que determinam as expressões mais abertas ou mais discretas do racismo. Ou seja, o preconceito seria mais velado, à medida que as normas anti–racistas estivessem mais claras. Este racismo procura encontrar uma justificação que seja socialmente aceitável como não-racista, partilhando de norma de justiça igualitária e um auto-conceito anti-racista.

Nesse sentido, o racismo expressa-se através das estratégias que os grupos dominantes encontraram para driblar as normas anti-racistas. Trata-se, pois, de discursos ideológicos que justificam a sua situação dominante sem, aparentemente, violar essas normas (Camino et al., 2001). Mais grave ainda, e de forma paradoxal, esses grupos têm conseguido implantar processos discriminatórios em nome da defesa da justiça e da igualdade universais. Assim, o preconceito atualmente é constituído por vários discursos que pregam a defesa irrestrita dos valores igualitários – tolerância, diversidade, liberdade – e, ao mesmo tempo, opõem-se às políticas sociais coerentes com esses valores (Pereira, Torres & Almeida, 2003).

No Brasil, Camino et al. (2001) observaram, da mesma forma que Venturi e Paulino (2005) e Martinez e Camino (2000), que paira, entre estudantes, um sentimento praticamente unânime (98%) da existência de preconceito no país, mas a grande maioria (84%) não se considera preconceituosa. Nestes estudos, cada alternativa relacionava expressamente a existência, ou não, de uma atitude preconceituosa da pessoa e a existência, ou não, de uma atitude preconceituosa do brasileiro. Mesmo assim, a grande maioria dos estudantes (82%) escolhe a opção que relaciona a existência de preconceito no brasileiro à posição individual não-preconceituosa.

Neste sentido, as formas de categorizar as diferenças raciais devem conter, de alguma maneira, esta ambivalência. De fato, Camino et al. (2001) constataram que 69% dos estudantes entrevistados, apesar de não se considerarem preconceituosos, quando perguntados diretamente em que atividades as pessoas de cor negra se engajam mais freqüentemente, descreveram atividades que, embora exijam habilidades naturais (força, dança, esportes), não implicam qualificação especial nem relacionam-se diretamente com o poder ou com a luta pelo poder. Por sua vez, 69,5% dos estudantes que descreveram as atividades nas quais as pessoas de cor branca se engajam mais freqüentemente referiram-se seja a atividades que exigem qualificação profissional, seja a atividades ligadas ao poder. Apenas 16% dos estudantes não indicaram nenhuma atividade, afirmando que a atividade não dependia da cor da pessoa.

Entretanto, quando se introduziu uma possível comparação entre as raças perguntando aos estudantes quais seriam as atividades que as pessoas de cor negra ou de cor branca desempenhariam melhor, quase 2/3 dos alunos consideraram que o sucesso nas diversas atividades independe da cor. No terço restante, nota-se uma tendência oposta à observada quando as atividades eram descritas sem comparação: alguns estudantes afirmam que as pessoas de cor negra desempenham atividades qualificadas melhor que as brancas, enquanto que estas se sairiam melhor nas atividades não qualificadas. Apesar desta reversão, os estudantes, mesmo na situação que explicita a comparação entre raças, continuam a considerar que as pessoas de cor negra saem-se melhor nas atividades ligadas a espetáculos, enquanto que as pessoas de cor branca são melhores nas atividades ligadas ao poder.

Estes dois aspectos parecem fazer parte de traços relativamente consensuais: elogia-se nos negros sua força, seu ritmo, sua sensualidade, sua habilidade nos esportes, etc., enquanto se tem como natural a maior presença dos brancos nas estruturas do poder. Os autores afirmam que, num contexto de comparação, os estudantes brasileiros tendem a reprimir suas respostas negativas, mesmo que estas não sejam abertamente preconceituosas. Poderia-se pensar que este tipo de inibição seria explicada pela teoria do Racismo Aversivo (Gaertner & Dovidio, 1986).

Em outro estudo (Camino, da Silva & Machado, 2004), observaram que os estudantes, quando respondiam por si mesmos, utilizavam mais adjetivos de pessoas simpáticas e menos de pessoas antipáticas para descrever pessoas de cor negra que para descrever pessoas de cor branca, mas, quando respondiam o que achavam que os brasileiros pensam, os resultados se inverteram. Neste caso os estudantes atribuem mais adjetivos de pessoas antipáticas e menos de pessoas simpáticas para descrever pessoas de cor negra, e mais adjetivos positivos e menos negativos para julgar as pessoas de cor branca. Observa-se que quando a responsabilidade é colocada fora do sujeito (nos brasileiros) a forma de avaliar a população negra volta a ser fortemente preconceituosa. Ambos os resultados anteriormente citados poderiam ser interpretados a partir da teoria do Racismo Aversivo (Gaertner & Dovidio, 1986), como uma forma de inibição de atitudes preconceituosas, mas Camino e colaboradores (2004) procuram mostrar que o racismo à brasileira não se explica exclusivamente por mecanismos inibitórios, mas que o racismo tem também um caráter político-ideológico.

Por essas razões, Camino, da Silva, Machado e Martinez (2000) acrescentam adjetivos que descreveriam pessoas do primeiro e terceiro mundo. Quando respondem por si mesmos, os estudantes utilizam mais adjetivos do terceiro mundo e menos do primeiro mundo para descrever pessoas de cor negra, e mais adjetivos do primeiro mundo e menos do terceiro mundo para descrever as pessoas de cor branca. Quando convidados a responder pelos brasileiros, usam o mesmo padrão de respostas do 1º. e 3º. Mundo.

Estes resultados mostram que a categorização racial no Brasil pode estar relacionada com a categorização em termos de Países do 1º. e do 3º. Mundo. Essa divisão sócio-econômica é constituída, inicialmente, pelo processo histórico da dominação colonial (Chaliand, 1977). Ao dividir os países em metrópoles e colônias, estes desenvolviam-se em termos de: (a) capitalista industrial, rico, branco - 1º. Mundo e (b) fornecedor de matéria-prima, pobre, negro/índio (escravos) - 3º. mundo.

É provável que atualmente, onde a escravidão é formalmente proibida, mas a dominância econômica faz parte da lógica do capitalismo, os sentimentos abertamente depreciativos em relação aos negros, criados principalmente na época da escravidão, estejam se transformando em atitudes mais sutis que reforçam a divisão entre países desenvolvidos e não desenvolvidos (Camino, da Silva, Machado & Martinez, 2000).

No próprio interior dos países do 3º. Mundo estaria também ocorrendo esta divisão. A cor da pele e características fenotípicas constituiria um divisor entre países e um divisor no interior destes. Esta divisão não pressupõe atribuir aos não brancos uma raça inferior, como era feito antes, mas uma cultura menos adaptada ao desenvolvimento moderno.

Como as novas formas de racismo têm se desenvolvido? De fato, a maneira de expressão do racismo foi mudando segundo se desenvolviam as formas de relações inter-raciais. Segundo Silva e Rosemberg (2008), após a abolição da escravidão, as relações sociais e políticas entre brancos e negros são marcadas por três processos principais: (a) O país não adotou legislação de segregação étnico-racial (diferentemente dos EUA e da África do Sul), não tendo ocorrido, portanto, definição legal da pertença racial; (b) O país não desenvolveu política específica de integração dos negros recémlibertos à sociedade envolvente, o que fortaleceu as bases do histórico processo de desigualdades sociais entre brancos e negros que perdura até os dias atuais; (c) O país incentivou a imigração européia branca em acordo com a política de Estado (passagem do século XIX para o XX) de branqueamento da população em consonância com as políticas racistas eugenistas desenvolvidas na Europa do século XIX.

Como indicado por Van den Berghe (1969), onde houve escravagismo (como Estados Unidos, África do Sul, América Central, etc.), o trabalho escravo também se desenvolveu preferencialmente no sistema de plantation. Os negros chegaram ao Brasil no século XVI como vítimas do comércio de escravos que se desenvolveu na América até o século XIX, e foram obrigados a trabalhar nas propriedades rurais, inserindo-se num sistema patriarcal de produção rural. Assim, o fenômeno no Brasil teria acontecido de maneira diferenciada de países como Estados Unidos e África do Sul pelo alto grau de miscigenação entre as raças negra e branca.

Assim, como foi percebido pelos próprios brasileiros este processo de miscigenação? Nos primeiros estudos sobre o tema, Nina Rodrigues (1939), Oliveira Viana (1932;1959) e Ramos (1937) consideraram que a influência dos negros na civilização brasileira, verificada através dos altos índices de mestiçagem, seria negativa por eles serem membros de uma raça biológica ou culturalmente inferior.

Posteriormente, Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala (1933), valoriza o processo de mestiçagem a partir da idéia de que este age como uma forma de enriquecimento cultural. Fala-se de “democracia racial”, sustentando-a nos mitos do “Luso-tropicalismo” e do “Senhor Amável”. A atitude pouco preconceituosa do português, somada ao fato de virem poucas mulheres européias à colônia, criou as condições propícias para um processo de mestiçagem. Esta miscigenação é que daria suporte à crença na democracia racial no Brasil, mas Gilberto Freyre, não podendo evitar a evidência dos negros ocuparem na República uma situação marginal, afirma que o negro não teria vez na sociedade brasileira não por ser negro, mas por ser pobre. Outros estudos, que se desenvolveram na segunda metade do Século XX, não só não sustentaram esta visão otimista das relações raciais no Brasil como demonstraram que o “mito da democracia racial” serve como racionalização no desenvolvimento de idéias e práticas discriminatórias (Azevedo, 1975).

É em meados da década de 70 que ocorre a mudança de perspectiva sobre os pressupostos valorativos que orientariam as atitudes discriminatórias no Brasil. Segundo Oracy Nogueira (1979), vigorava no Brasil uma modalidade de preconceito entendido como de marca (fenotípico), diferente do preconceito racial de origem nos EUA.

Nessa modalidade brasileira, o preconceito e as formas correlatas de discriminação se reportariam à intensidade dos fenótipos de cada pessoa, incluindo: tonalidade da cor da pele, tipo de cabelo e formato de parte da face (boca, nariz, etc.). Estes traços fenotípicos estariam ligados a características culturais, e na relação de poder, a marca negra estaria relacionada com conotações depreciativas ao indivíduo e naturalização destas para todo o grupo. É neste sentido que o racismo é uma redução do cultural ao biológico, uma tentativa de fazer o primeiro depender do segundo. Considerando-se a inexistência de uma linha rígida de cor no Brasil, os que se aproximam de características negróides teriam mais probabilidade de serem discriminados (Lima & Vala, 2004c; Guimarães, 1999).

No Brasil, em decorrência do preconceito velado contra os negros, os fenótipos (cor da pele, características físicas, etc.) funcionam como elemento constitutivo da
identidade racial desse grupo. Andrews (1998) mostrou, analisando 100 anos de relações laborais em duas empresas de São Paulo, que os trabalhadores negros recebiam menores salários e mais punições do que os trabalhadores brancos imigrantes ou brasileiros de mesmo grau de instrução e condições sócio-econômicas. Como afirma Guimarães (1999, p. 67), numa obra importante em que analisa o racismo e o antiracismo no Brasil, o racismo à brasileira “trata-se de um racismo sem intenção, às vezes de brincadeira, mas sempre com conseqüências sobre os direitos e as oportunidades de vida dos atingidos”. A observação do cotidiano e as próprias estatísticas governamentais não deixam dúvidas quanto ao fato da população negra do Brasil continuar a ser objeto de discriminação.

O racismo histórico e contemporâneo constitutivo da sociedade brasileira fica evidente quando se analisam diversos indicadores sociais, como renda, educação, saneamento, mas o racismo estrutural e simbólico configura o padrão nas relações raciais no Brasil como, por exemplo, um sofisticado sistema de classificação racial baseado na aparência, condição sócio-econômica e região de residência, e, a convivência com padrões raciais de desigualdade de oportunidades, mas que, ao mesmo tempo, pode ser atenuado e considerado como convivência amistosa em determinados espaços sociais sob determinadas circunstâncias (Van Dijk, 2008).”

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É isso!

Fonte:
Aline Vieira de Lima Nunes: “Inserção Social, Racismo e Desenvolvimento dos Discursos sobre Justiça Interracial”. (Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba, para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, Julho de 2009.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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