Das críticas à revolução científica kuhniana

[...] Não é de se estranhar que os historiadores e, em geral, os interessados no real proceder da ciência tenham visto na Estrutura das Revoluções Científicas uma estimulante renovação, uma filosofia da ciência cujos problemas e formulações lhes fossem familiares, úteis e pertinentes (BELTRÁN, 1989, p. 53, tradução minha).

Em particular, todos nós, com exceção de Toulmin, compartilhamos da convicção de que os episódios centrais do progresso científico (os que tornam o jogo digno de ser jogado e a atividade digna de ser estudada) são as revoluções. (Kuhn, 1979, p. 298).

Thomas Kuhn instaurou um novo momento na tradição historiográfica sobre as revoluções científicas. Seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas alcançou grandes proporções e sua concepção sobre a revolução científica teve grande aceitação,tanto entre os estudiosos como entre o público em geral. O entendimento das revoluções científicas como uma troca de paradigmas tornou‐se patente, em parte, devido à forma didática com a qual Kuhn expõe seus argumentos no decorrer do Estrutura. Além disso, afirma Beltrán, as concepções kuhnianas relacionaram‐se com as idéias sobre o desenvolvimento científico de Koyré, de Popper, entre outros. Mas, apesar da grande recepção e repercussão de seus trabalhos, seguiram‐se inúmeras críticas endereçadas aos trabalhos kuhnianos.

Devido à importância das novas concepções contidas no Estrutura, realizou‐ se um evento cujo norte foram as idéias expressas nessa obra. O “Quarto Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência” ocorreu em julho de 1965, em Londres, sob o comando de Sir Karl Popper. 33 Vários trabalhos se sucederam à apresentação em que Kuhn discute sua relação com o pensamento de Popper. 34 Tal apresentação, intitulada “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa”, compõe o primeiro artigo da coletânea referente ao Colóquio londrino. Entre os trabalhos sucessivos a essa apresentação têm‐se as mais célebres críticas ao projeto kuhniano contido no Estrutura, em especial a três de seus conceitos: Paradigma, Revolução Científica e Incomensurabilidade.

No quinto artigo da coletânea, Margaret Masterman empreende um estudo específico sobre o conceito de paradigma. Conclui que, em uma obra cientificamente clara (visto que é muito lido pelos cientistas) e filosoficamente obscura (visto que os filósofos a interpretam de diferentes maneiras), Kuhn desenvolve uma complexa teoria tendo por base o termo paradigma. Para compreender o legado kuhniano sobre as revoluções científicas seria necessário elucidar o que o autor denomina como paradigma. Ao longo de sua explanação, Masterman elenca vinte e um sentidos diferentes utilizados por Kuhn para classificar esse conceito no Estrutura. A autora afirma que “nem todos esses os sentidos são incompatíveis entre si: alguns podem ser elucidações de outros.” (MASTERMAN, 1979, p. 79). Após listar as diferentes conceituações de paradigma, Masterman questiona se haveria algo de comum entre esses diferentes sentidos e sugere reluzi‐los em três grupos. Quando Kuhn descreve mais uma noção ou entidade metafísica do que uma noção ou entidade científica (como um conjunto de crenças, uma especulação metafísica bem sucedida, mitos ou um princípio organizado que governa a percepção), Masterman classifica esse uso de “paradigmas metafísicos” ou “metaparadigmas”. Outro agrupamento para o termo paradigma é o de natureza sociológica, denominado de “paradigma sociológico”. Paradigmas poderiam, portanto, ser definidos como uma realização científica universalmente reconhecida, como um conjunto de instituições políticas ou ainda, como um conjunto de hábitos científicos anteriores aos metaparadigmas. Por último, aparece o que Masterman denomina “paradigmas de artefato” ou “paradigmas de construção”. Estes se relacionam aos momentos em que Kuhn emprega o termo de forma mais concreta, ou seja, como manual, como paradigma gramatical desse manual, como analogia entre teorias, como fontes de instrumentos, ou como experiência de gestalt. Masterman encerra sua exposição afirmando que a grande inovação realizada por Kuhn teria sido ir além da narrativa gradual das transformações descrevendo o esgotamento de um paradigma e a emergência de outro.

Apesar de Masterman criticar a polissemia do conceito de paradigma, é possível afirmar que essa diversidade de significados trouxe conseqüências positivas para o trabalho de Kuhn. Segundo CONDÉ (2005b), o termo paradigma adquire maior inteligibilidade, em Kuhn, quando entendido não exatamente como sendo um conceito, cujo principal traço seria o de uma formalização unívoca, mas como sendo uma noção, cujos matizes de sentido permitem alcançar uma maior gama de elementos. Assim, o termo pôde denominar uma técnica de instrumentação, um manual científico e também um conjunto de crenças aceitas. Foi justamente tal amplitude de significações o que possibilitou ao projeto de Kuhn transitar em várias áreas, na Filosofia, na História, na Sociologia e mesmo nas chamadas ciências hards.

No Congresso de 1965, outros pesquisadores também questionaram o entendimento de Kuhn sobre as revoluções científicas. Sendo os paradigmas tão polissêmicos, podendo abarcar constelações tão amplas, de métodos, teorias ou valores, Kuhn argumenta que a escolha de um novo paradigma não é apenas regulada pela experiência neutra, pelos dados da natureza ou pela lógica. Tal fato é criticado por Popper, pois, segundo esse autor, o desenvolvimento científico deveria ser regido pela lógica das idéias e não por outros fatores (como os psicológicos, os sociológicos, os irracionais). Popper (1979) e também Watkins (1979) argumentam contra um conceito específico e basilar do entendimento kuhniano das revoluções científicas: a “ciência normal”. Segundo esses autores, o período denominado ciência normal seria inútil para o entendimento do desenvolvimento científico. Isso porque nos períodos normais se testa o experimentador e não a teoria, configurando‐se, portanto, como um momento doutrinatário, acrítico. Logo, esses períodos não poderiam ser considerados “normais” na pesquisa científica, pois, segundo Popper, a ciência normal seria uma condição não questionadora e, portanto, não científica (POPPER, 1979, p. 65). Watkins argumenta contra a demasiada atenção desprendida por Kuhn na descrição desses períodos normais, uma vez que seriam não científicos (WATKINS, 1979, p. 41). Para esses autores, aquilo que Kuhn chama “normal” não poderia ser o normal na produção científica, a preço de perder o status de atividade lógica ou racional, visto que não se tratava de um momento questionador. Assim, o que deveria ser considerado comum na produção do conhecimento era aquilo que Kuhn chamava de extraordinário (ciência extraordinária), visto ser um momento questionador, ou seja, lógico/racional. Como já foi dito, na ciência extraordinária Kuhn prende‐se com maior ênfase às questões sócio‐culturais do que às questões teóricas stricto sensu. Isso acarretava sérios problemas na obra kuhniana, segundo afirmavam os críticos do Estrutura.

Essas alegações renderam à teoria sobre as revoluções científicas de Kuhn o título de relativista. “O mito do referencial (psicológico, sociológico), em nosso tempo, é o baluarte central do irracionalismo.” (POPPER, 1979, p. 70). Popper alega que para a teoria kuhniana a troca de paradigmas seria regida mais pela psicologia da pesquisa do que pela lógica da descoberta, da verdade absoluta, objetiva (POPPER, ibidem, p. 69). As revoluções científicas seriam regidas por fatores não científicos, tal fato inviabilizava a aceitação do modelo kuhniano e o classificava como relativista. Lakatos (1979) também desenvolve crítica semelhante no congresso londrino de 1965. “Para Lakatos (1979), crise é um conceito psicológico ‐ trata‐se de um pânico contagioso ‐ e revolução científica kuhniana é irracional, uma questão da psicologia das multidões, sendo este modelo, por ele considerado, uma redução da filosofia da ciência à psicologia ou sociologia dos cientistas.” (OSTERMANN, 1996, p. 193).

Em outra linha crítica, E. Toulmin (1979) vai de encontro à concepção revolucionária – tradição revolucionária, de descontinuidade – presente tanto na teoria kuhniana quanto nas concepções de Popper, Masterman e Watkins. Para Toulmin, a tradição revolucionária desconsidera as passagens, ou seja, os cientistas de passagem, as teorias de passagem entre uma concepção de mundo e outra. Para esse autor, não é possível descrever o desenvolvimento científico por drásticas revoluções científicas. Seria necessário investigar as unidades de variação ao longo do desenvolvimento científico, algo menos drástico do que as rupturas. Por não aceitar a existência de incompatibilidades conceituais tão abruptas entre as teorias de uma geração e de outra, Toulmin defende a evolução conceitual aos moldes darwinistas, em detrimento das rupturas abruptas, das drásticas revoluções. Para ele, deixando para trás as implicações originais do termo revolução, tal como descritas por Cohen, a nova teoria capaz de descrever o avanço científico estaria na sociologia evolucionista. Percebe‐se que, já em 1965, Toulmin antecipa a visão que será posteriormente defendida por Steven Shapin, uma visão crítica do modelo das revoluções científicas conforme Kuhn, conforme toda a tradição revolucionária, composta por autores como T. Kuhn, A. Koyré, H. Butterfield, R. Hall e B. Cohen. Tratarei dessa questão mais detidamente no próximo capítulo. Por ora, é válido dizer que, segundo Toulmin, a idéia de incomensurabilidade seria a responsável pela visão “catastrofista” que configura as grandes rupturas teóricas das revoluções.

O último conceito do Estrutura questionado no congresso londrino que pretendo trabalhar aqui, e talvez o conceito mais caro da teoria kuhniana (visto que as reformulações de Kuhn se concentrarão nesse ponto), foi a noção de “incomensurabilidade”. Para Popper, por exemplo, o termo incomensurabilidade seria outro termo utilizado por Kuhn que daria margem ao irracionalismo. Isso porque diferentes paradigmas podem estar corretos, pois, são incomensuráveis e não se pode provar que um deles está mais próximo da verdade que o outro. Popper argumenta que a transição da gravidade newtoniana para a einsteiniana, um exemplo de revolução científica segundo Kuhn, não seria um salto irracional. Ambas as teorias seriam racionalmente comparáveis e uma estaria mais próxima da verdade fatual e objetiva que outra. “Existem, ao contrário, inúmeros pontos de contato [.] e pontos de comparação.” (POPPER, 1979, p. 70). A incomensurabilidade que inviabiliza o confronto crítico, essencial para a pesquisa científica, não pode ser senão um equívoco lógico de Kuhn, explica Popper. Nessa mesma direção, Watkins diferencia a noção de incomensurabilidade (que não seria uma noção viável) com a incompatibilidade. Segundo esse autor, as diferentes teorias de uma sucessão científica não seriam incomensuráveis, pois haveria inúmeros pontos de contato, conforme explicou Popper. Pode‐se dizer, porém, que as teorias são incompatíveis, diferentes ou opostas. Enfim, algo que não inviabiliza o confronto crítico que garante ao processo seu caráter científico.

Autores como Popper e Watkins, que primaram pelo confronto crítico de diferentes idéias, criticaram duramente a utilização da noção de incomensurabilidade, tal como elaborado no Estrutura. Posteriormente, Thomas Kuhn empreenderá reformulações sobre alguns de seus conceitos e, sobretudo, sobre a questão da incomensurabilidade. Verei esses pontos mais detalhadamente no próximo item. Contudo, resta adiantar que apesar de toda a revisão empreendida por Kuhn, alguns pontos de seu trabalho não foram efetivamente solucionados, entre eles talvez esteja o conceito de “incomensurabilidade”.

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É isso!


Fonte:
Francismary Alves da Silva: “Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em História, na Linha de Pesquisa Ciência e Cultura na História, elaborada sob a orientação do Prof.o Dr.o Mauro L. L. Condé. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010.

Nota:

A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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