Uma breve história da medicina mental no Brasil

“Podemos considerar o ano de 1852 como o marco do início das atividades da medicina mental no Brasil, pois foi neste ano que ocorreu a inauguração do primeiro hospício do Brasil e da América Latina, o Hospício Pedro II, situado na Praia Vermelha, Rio de Janeiro.

O nascimento da primeira instituição psiquiátrica brasileira foi o resultado da confluência de diversos fatores, dentre os quais estão as fortes reclamações feitas por uma elite médica quanto à ameaça à ordem pública representada pelos loucos
circulando livremente pelas ruas, as freqüentes denúncias de maus tratos que os loucos submetidos aos cuidados da Santa Casa sofriam e uma prova de poder e modernização dada pelo novo Império Brasileiro.

O nascimento do hospício no Brasil, diferentemente da França, seu lugar de origem, é fruto de um consenso entre as elites e o Império em prol de uma modernização brasileira segundo os moldes europeus.

O hospício nasce, sim, da ambição de vestir um país imperial, baseado numa economia agrícola de mão de obra escrava, de modelo patriarcal e patrimonialista, carente de qualquer projeto de cidadania, e onde a distinção entre o poder religioso e as instituições laicas do Estado ainda não ocorrera, com os trajes do liberalismo à européia.

De modo geral, o discurso do alienismo no Brasil encontrava-se muito influenciado pelos discursos da medicina mental francesa, apresentando como referências iniciais Pinel e Esquirol e, num segundo momento, Morel e Magnan. No entanto, independentemente da ampla disseminação do alienismo francês nesse momento, o funcionamento asilar antecede em muito o início da atividade médica especializada e sua regulamentação. Somente em 1881 são criadas as cadeiras universitárias de clínica psiquiátrica e de moléstias mentais na Bahia, e em 1882 a lei 3141 põe em plena execução este ensino. E mais: apenas em 1887, João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921) assume a direção do hospital sendo, então, o primeiro médico alienista com formação específica.

Até esse momento, a administração encontrava-se nas mãos das freiras representantes da Santa Casa de Misericórdia e a direção do hospício era exercida pelo generalista Nuno de Andrade. É em 1889, com a proclamação da República, que ocorre a laicização do Hospício Pedro II, que em 1890 passa a se chamar Hospita Nacional dos Alienados.

Nesse momento inicial, é importante notar que, tanto o hospício quanto o alienismo no Brasil, surgem atrelados a um projeto de constituição de uma identidade nacional e refletem as diferentes formas segundo as quais este projeto foi concebido: 1) inicialmente o discurso alienista se organiza a partir de propostas de combate à insalubridade e instauração de uma nova ordem urbana; 2) em seguida, afirma seu lugar de verdadeiro representante da modernidade, fazendo frente ao discurso religioso; 3) posteriormente, a nascente medicina mental participa ativamente da proposta imperial de “europeizar” e “embranquecer” o Brasil, proposta essa baseada nas teorias raciais européias, de cunho social-darwinista e evolucionista; 4) e, por último, com o advento da República, assume papel preponderante na formulação do ideário de uma pátria republicana, fundada em critérios científicos de organização.

Com a chegada da República
Apesar das mudanças administrativas ocorridas no Hospital Nacional dos Alienados, que passou da direção religiosa para a direção médica especializada no final do século XIX, não houve grande melhora no tratamento ao qual eram submetidos os internos. Segundo Edmundo Maia, em 1902, um inquérito indicou o Hospital Nacional dos Alienados como “uma casa para detenção de loucos, onde não há tratamento conveniente, nem disciplina, nem qualquer fiscalização”.

É neste momento que o então presidente da República, Rodrigues Alves, (1848-1919) nomeia o psiquiatra Juliano Moreira (1873-1933) para a direção da Assistência a Alienados e para a direção do Hospital Nacional. Vale destacar que, neste mesmo período, Oswaldo Cruz (1872-1917) é nomeado, também pelo presidente, para a direção dos serviços de Saúde Pública.

Saúde Pública e a Psiquiatria dão-se as mãos na tarefa comum de sanear a cidade, remover a imundície e a morrinha, os focos de infecção que eram os cortiços, os focos de desordem que eram os sem-trabalho maltrapilhos a infestar as cercanias do porto e as ruas do centro da cidade.

Sob a influência de Juliano Moreira ocorrem muitas transformações na psiquiatria. Dentre elas, está a quebra da hegemonia dos discursos alienistas de inspiração francesa. Juliano Moreira e seus discípulos encontravam-se engajados com a psiquiatria organicista alemã, representada pelas idéias de Kraepelin. Sob tal influência teórica, estes psiquiatras buscavam explicar diversos fenômenos, especialmente a doença mental, exclusivamente a partir de uma causalidade biológica, o que podemos perceber a partir da fala do próprio Juliano Moreira:

As parafrenias de Kraepelin e a paranóia no sentido extricto sofrem a acção dos factores hereditarios”. (...) nas arvores genealógicas de taes psychoses encontro com freqüência casos de eschizophrenias, o que revela um certo grau forte de parentesco entre as referidas formas mórbidas.

Somam-se a estas transformações a promulgação, em 1903, da primeira Lei Federal de Assistência aos Alienados; a criação dos “Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências afins”, em 1905; e, em 1907, a criação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal.

A Psiquiatria passa a ser reconhecida como especialidade médica autônoma em 1912, e, desta data até 1920, ocorre um significativo crescimento no número de estabelecimentos destinados aos considerados loucos. Além disso, durante este período são inaugurados a Colônia do Engenho de Dentro, a Colônia de Jacarepaguá e o Manicômio Judiciário.

Apesar das inúmeras transformações ocorridas, o que podemos verificar é que a psiquiatria brasileira se funda e se sustenta, ainda por um longo espaço de tempo, sob o paradigma da segregação/exclusão da loucura. Mesmo a partir de a atividade médica ser formalizada como a detentora de um saber exclusivo sobre a loucura e a criação de todo um novo aparato médico-institucional, não foi possível frear a superlotação nos hospitais psiquiátricos, que passavam, cada vez mais, a ser vistos como depósito de gente, sem qualquer finalidade curativa. A recém criada disciplina psiquiátrica mal se consolida e já passa por uma grave crise – talvez comparável à que a psiquiatria européia passara em meados do século XIX.

Soma-se a isto um contexto social em acelerada transformação: os centros urbanos, especialmente o eixo Rio-São Paulo, cresciam desordenadamente, a industrialização do país já se acenava e trazia consigo um intenso ritmo de trabalho, as epidemias se expandiam progressivamente, especialmente entre as populações mais pobres, as endemias também, tendo no alcoolismo seu maior representante, e a loucura parecia estar avançando junto com o progresso.

São os distúrbios mentaes cada vez mais, um crescente perigo nacional, pois que elles augmentam dia a dia e ao mesmo tempo que os factores psychologicos, cada vez representam papel de maior importância na vida dos collectivos."

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É isso!

Fonte:
Marcela Peralva Aguiar: “Aprimorando a “raça brasileira: Uma análise dos discursos da psiquiatria no início do século XX no Brasil”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Ciências Humanas e Saúde. Orientador: Benilton Bezerra Jr.). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.

Nota:

O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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