A desterritorialização simbólica dos afro-descendentes

"A Constituição de 1988 define, em seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), os direitos territoriais dos remanescentes de quilombos. Mas o que são os quilombos, se pensarmos em termos de território e de pertencimento? O quilombo, segundo definição de José de Souza Martins em O Cativeiro da Terra, era o povoado ou aldeia escondida na mata onde moravam negros fugidos do cativeiro; ou ainda, como afirma Clóvis Moura em Rebeliões nas Senzalas, “a unidade básica de resistência do escravo. Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquer região em que existia a escravidão, lá se encontrava ele como elemento de desgaste do regime servil.”

Moura nos informa ainda que os quilombos não eram circunscritos a determinadas áreas geográficas — destruídos dezenas de vezes, novamente surgiam em outros lugares, estabelecendo novos sistemas de defesa. Não eram territórios definidos geograficamente, mas se consolidaram como territórios simbólicos, caracterizando a luta contra a opressão, a violência e tudo o que significava a escravidão. A exceção mais notável foi o Quilombo dos Palmares, situado na serra da Barriga, atual município de União dos Palmares, em Alagoas, e que na época pertencia a Pernambuco.

O Quilombo dos Palmares constituía-se de 11 povoados distribuídos por uma extensão de 60 léguas e foi considerado por Rocha Pitta, um cronista da época, “como uma república rústica”, tal era a organização da comunidade comandada por Zumbi. Palmares resistiu aos ataques durante 100 anos, quando a 20 de novembro de 1695, Zumbi foi morto em uma investida brutal pelo bandeirante Domingos Jorge Velho.

A decisão constitucional abre, então, uma discussão em torno de conceitos tais como identidade e território, com vistas a definir quem são os remanescentes de quilombos e a quem deve se atribuir o direito definido no dispositivo legal. O termo quilombo adquire novos significados para adequar sua carga histórica ao contexto atual em que se torna necessário identificar, para dar aplicabilidade à lei, quem são os herdeiros legais das terras de quilombos. Os resultados de uma das pesquisas empreendidos nesta direção vêm circunscrever esse lugar simbólico onde os conceitos de identidade e território se entrecruzam e, ao mesmo tempo, se afastam e excluem.

(...) parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um território maior. Se, por um lado, temos território constituindo identidade de uma forma bastante estrutural, apoiado em estruturas de parentesco, podemos ver que território também constitui identidade de uma forma bastante fluída, levando em conta a concepção de F. Barth (1976) de flexibilidade dos grupos étnicos que, confrontado por uma situação histórica peculiar, realça determinados traços culturais que julga relevantes em tal ocasião. É o caso da identidade quilombola, construída a partir da necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas duas décadas.

A segunda acepção de território na formação de identidade por si mesma nos remete a uma noção de subjetividade, ao indicar que “território também constitui identidade de uma maneira fluida”, relacionando a “identidade quilombola” à necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas décadas, conforme propõem as pesquisadoras citadas. A emergência do ato constitucional leva à necessidade de definição objetiva não só de território, mas também de identidade, o que dá ensejo a diversas interpretações que pouco fazem além de tentar resolver a questão da lei e, com isso circunscrever de maneira reducionista uma história densa e de lutas onde o território parece ter sido a última das reivindicações.

Ao demarcar territórios como política fundamental para a preservação da história e da cultura dos afro-descendentes como participantes do processo civilizatório nacional, o estado não está reconstruindo ou preservando a história dos afro-descendentes, mas circunscrevendo o lugar da história dos afro-descendentes dentro da história oficial e da cultura hegemônica, onde a posição destes atores sociais estará sempre atrelada a uma condição subalterna. Um território construído pelo Estado, onde o conceito de identidade não encontra mais seus elementos constitutivos e autênticos."

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É isso!


Fonte:
Joseti Marques Xisto da Cunha: “A IMPRENSA NA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE RACIAL NO BRASIL: Um estudo de análise crítica do discurso jornalístico”. (Programa de Pós-Graduação Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro Curso de Doutorado. Orientador: Prof. Dr. Milton José Pinto).Rio de Janeiro, 2005.

Nota:
O título e a imagem inseridos no textos não se incluem na referida tese.

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