Foucault e o conceito de “bio-poder”

Ajustamos para nós um mundo em que podemos viver – supondo corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo; sem esses artigos de fé, ninguém suportaria hoje viver! Mas isto não significa que eles estejam provados. A vida não é argumento; entre as condições para a vida poderia estar o erro.

Até meados do século XVIII, o poder soberano sempre teve como uma de suas características o poder de vida e morte, derivado da pater potestas, que permitia ao pai, livre disposição da vida de seus filhos e escravos, já que a tinha “dado”. Entre o soberano e seus súditos, esse poder podia ser visto de forma mais atenuada, quando ficava restrito ao chamado direito de réplica, ou seja, em casos onde a defesa do Estado tornava necessária a exposição da vida ou, de natureza direta, onde a soberano tinha o direito de matar o súdito a título de castigo pela infração das leis ou em caso de atentado à sua própria vida. Dessa forma, o direito de vida e morte não era pleno, na forma de um privilégio nas sociedades primitivas, mas condicionado à defesa do soberano, à sua sobrevivência e manutenção da paz229; era o direito de “causar a morte e deixar viver” relacionado com a instância do confisco, isto é, d a apropriação de riquezas, do tempo, dos corpos e da vida.

A partir da época clássica, o confisco passou a organizar e produzir forças, a ser visto como um reforço, uma vigilância, um poder destinado a barrá-las e destruí- las. Poder matar passou a ser uma estratégia.

O direito de morte deslocou-se para um poder capaz de gerar e ordenar a vida. O direito do soberano de decretar a morte de seus súditos, transferiu-se para um direito de todo o corpo social de garantir, manter e desenvolver a vida. As guerras que foram travadas nesse período não aconteciam para garantir a vida, a segurança do soberano ou do Estado, mas para impedir a destruição mútua em nome da necessidade de viver. Matar não era mais uma questão jurídica vinculada à soberania, mas uma questão biológica, com a função de garantir, sustentar, reforçar e multiplicar a vida. As guerras sangrentas e seus massacres surgiram como um exercício ao nível “da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população”.

Foucault procurou esclarecer que o poder, ao assumir a função de gerir a vida, usou sua própria lógica e a sua razão de ser para dificultar a aplicação da pena de morte. Portanto, a pena capital passou a ser possível, apenas e tão somente, quando exercida sobre alguém, que fosse considerado um perigo à vida de outras pessoas. Nota-se aí um deslocamento para um poder político que assumiu a tarefa de gerir e proteger a vida. O direito de “causar a morte e deixar viver” foi substituído pelo poder de “causar a vida ou devolver a morte”.

No século XVII e XVIII, esse poder desenvolveu- se em dois pólos diferentes que passaram a investir na vida: as disciplinas anátomo- políticas, desenvolvidas a partir de um procedimento de um poder centralizado no corpo-máquina, portanto, necessitado de um adestramento canalizador de forças, aptidões, utilidades, enfim, inserido e integrado aos sistemas econômicos; e, uma bio-política da população, desenvolvida a partir de um mecanismo regulador de um poder centralizado em torno de um corpo- espécie, suporte dos processos biológicos.

O poder de morte, que simbolizava o poder soberano, foi substituído pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolveram- se disciplinas e surgiram problemas referentes à natalidade, longevidade, saúde pública, habitação, diversas técnicas de sujeição dos corpos e de controle das populações .

Com o abandono do modelo jurídico, inaugurou- se uma nova era para o poder, que passou a ser inserido em um outro modelo, ligado à vida e aos seus mecanismos: um “bio-poder”, amparado, de um lado pelas disciplinas e instituições pedagógicas, militares, tendo como função a aprendizagem e a manutenção da ordem e, de um outro lado, com a função de gerenciar e regular a população e a demografia, abrindo espaço para a filosofia da ideologia, que com seu discurso, elaborou uma teoria que lhe serviu de apoio. A articulação desses dois vértices constituiu a tecnologia do poder presente no século XIX, onde podemos localizar o dispositivo da sexualidade.

Mais importante que a moral ascética que desqualificou o corpo, este bio-poder, isto é, a colocação da vida na ordem do saber/poder, produziu a formação e desenvolvimento do capitalismo, garantido “à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho da reprodução e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos”. O capitalismo passou a precisar de um aumento de suas forças, desenvolvendo aparelhos de Estado, por exemplo, as instituições; estas, por sua vez, foram inventadas para servirem de técnicas de poder, agindo ao nível dos processos econômicos e das forças envolvidas, operando como fator de segregação e hierarquização e, garantindo, assim, as relações de dominação, colocando os “fenômenos relativos à vida, na ordem do saber/poder e no campo das técnicas políticas”.

Esta inserção da vida na história ocorreu no período após a Revolução Francesa, portanto, posterior à fome e à peste presentes até o século XVIII. O campo biológico passou a interferir no político na medida em que o homem começou a aprender sobre o seu corpo, seu funcionamento e sua saúde. A morte passou, então, a fazer parte do plano de controle do saber e da intervenção do poder, referindo - se a uma bio- história e a uma bio-política. Na primeira constatou- se uma intervenção na história através de movimentos vitais e, na segunda, a vida e seus mecanismos entraram no domínio dos cálculos, fazendo com que o saber/poder fosse um agente de transformação da vida humana. O homem que, segundo Aristóteles, era um animal vivo com existência política, passou a ser considerado, na era moderna, um animal político cuja vida biológica foi colocada em jogo.

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É isso!

Fonte:
MARIA CRISTINA OROPALLO: “A PRESENÇA DE NIETZSCHE NO DISCURSO DE FOUCAULT”. (Dissertação apresentada à Universidade São Judas Tadeu para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientação: Prof. Dr. Plínio Junqueira Smith). UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU. São Paulo, 2005.

Nota:

O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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