Quando a fé se transforma em mercadoria

“Parece-me que a discussão acadêmica em torno do tema religião e mercado no contexto brasileiro deveu-se ao surgimento dos movimentos de cura divina, iniciados na década de 50. Duglas Monteiro, na década de setenta, após analisar alguns movimentos de cura divina, percebe nestes a presença de características que os situam no contexto de uma prática religiosa fundamentalmente inserida no mercado e que iria se acentuar nas décadas subsequentes. Vejamos algumas das características por ele percebidas nestes movimentos:

a) “Em primeiro lugar, a constituição de uma situação de mercado que tem em germe todos os problemas de ‘marketing’ que lhe são peculiares, tais como a necessidade de atender às exigências variáveis do consumidor, garantindo, ao mesmo tempo, aquela diferença marginal que distingue o produto, mas isto sem prejuízo para a padronização imposta por uma ação racional.

b) “Em segundo lugar, a redução da importância das fidelidades e das clientelas cativas, em proveito da expansão de clientelas flutuantes e transitónas, formadas por consumidores que buscam eficácia nos gestos, nas palavras e nos objetos carregados de força, oferecidos por uma certa agência, mas que também não tem dúvida em somar eficácias dos produtos de diferentes empresas”.

c) “A significativa complementariedade e, até mesmo, a convergência objetiva entre práticas religiosas que remontam a tradições diferentes, senão antagônicas, caracterizaria alguma coisa que talvez pudesse ser vista como uma das ‘harmonias econômicas’ possíveis nesse mercado. É isso que sugere o encontro entre as entidades de umbanda e os poderes invocados pela cura divina.”

d) “A redução da importância das querelas doutrinárias e a irrelevância da formação teológica dos agentes. (...) À formação teológica sobrepôe-se hoje, como indispensável para os missionários que dirigem os movimentos de cura divina, uma formação (na maior parte dos casos, ‘em serviço’) que os capacite a administrar a dirigir, enquanto animadores, grandes concentrações; a adquirir a sensibilidade para captar as variações nas preferências dos consumidores, o desembaraço da complexidade das tramas da sociedade industrial moderna.”

e) “De lugar, por excelência, da mensagem de conversão-salvação e, secundariamente, de orientação ética, a Bíblia passa a ser um instrumento de legitimação do poder - especificamente - do poder de ‘operar maravilhas”.

Enfim, Duglas Monteiro percebe já nos anos 70, manifestações claras decorrentes da inserção da religião na economia de mercado, pregando uma mensagem de libertação, de cura, invocando a manifestação do poder divino transcendente, enquanto se organiza de forma racional de conformidade com os ditames da economia capitalista. Ele vê o fenômeno de uma religião voltada para as massas, com uma dientela flutuante, e objetivando atender às exigências do consumidor.

Certamente, o que Duglas Monteiro percebeu nas religiões de cura divina exacerbou-se em muito em algumas manifestações religiosas mais recentes, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus. Se à época em que ele fez sua pesquisa o veículo de comunicação de massa era o rádio, através do qual os missionários procuravam alcançar o seu público, nas duas últimas décadas a televisão se popularizou estando presente em praticamente todos os lares e sendo em grande medida preferida ao rádio, que ainda tem grande audiência e continua sendo explorado como instrumento de comunicação pelas várias igrejas. Todavia, a Igreja Universal e outras tantas ligaram Deus na tomada da TV, e tal estratégia de comunicação é fundamental para o seu sucesso.

Na mesma década de 70, Rubem Alves, tecendo considerações ao texto de Duglas Monteiro, segue por outra ótica na análise das empresas de cura divina. Vejamos suas considerações:

Sugiro, portanto, que o fenômeno das empresas de cura divina deva ser compreendido segundo um modelo econômico e não religioso. O que lhe dá a sua configuração específica é o fato da comercialização de bens espirituais, e não o fato de serem espirituais os bens comercializados.
É necessário evitar um equivoco. Ao sugerir que as empresas de cura divina sejam interpretadas a partir da economia não estou, de forma alguma, sugerindo que superestruturas sejam produtos e reflexos de infra- estruturas. Não reduzo o religioso ao econômico. Note-se que estou questionando que as empresas de cura divina devam ser classificadas como religião. A meu ver não estamos diante de uma manifestação religiosa que lança mão de métodos empresariais. Sugiro a direção inversa: a mentalidade de empresa aqui começa a produzir e a distribuir bens espirituais. Esta é a razão por que me parece que poderemos chegar a resultados surpreendentes se, ao invés de enfatizar o caráter religioso da empresa, no exercício da ‘arte da desconfiança’, preferirmos abordar o fenômeno a partir do caráter empresarial do religioso. Pergunto-me se nas empresas de cura divina não estamos diante de uma nova fronteira promíssora que se abre para a economia, o comércio dos bens espirituais? Saúde é um bem espiritual. Não se trata simplesmente de uma dor de estômago, uma tosse que não pára, uma palidez que impressiona. Lado a lado com os sintomas físicos estão o medo, a incerteza, a ansiedade. É possível incorporar as necessidades espirituais à lógica dos valores de troca.”

Por fim, conclui Rubem Alves:

Parece-me que a empresa de cura divina é apenas uma dentre as várias tendências da economia para comercializar bens espirituais. Nas palavras a um tempo ingênuas e cínicas de Alvin Toffier, estamos diante de um novo momento do capitalismo, acusado de materialista pelo marxismo: a ‘espiritualização da economia’. Também os valores espirituais podem ser produzidos e distribuídos segundo a lógica dos valores de troca. Assim, a mais variada gama de ‘experiências’ já se torna acessível pela mediação do dinheiro. (...) É possível ter experiências sem se deixar questionar por elas e sem questioná-las. Ao cliente da cura divina pouco importa compreender o que está ocorrendo. O que importa é que a coisa funcione. Se não funcionar, ele pouco tem a perder. Sem a cura divina, ele estaria no desamparo, de qualquer forma”.

Na verdade, tanto a análise de Duglas Monteiro quanto a de Rubem Alves abordam a questão da relação religião-mercado, sendo que o que as diferencia é o fato de a abordagem de Duglas Monteiro analisar a religião a partir de sua inserção no mercado, enquanto que Rubem Alves aborda a absorção da religião pelo mercado, transformando-a em mais uma de suas mercadorias.

Mendonça, 13 anos depois, fazendo uma análise do neopentecostalísmo destaca a característica empresarial das igrejas que nele se inserem:

1) “Características empresariais de prestação de serviços ou de oferta de bens de religião mediante recompensa pecuniária, com modernos sistemas de administração e ‘marketing’. Algumas já são multinacionais”.

Vê-se pois, que Mendonça percebe no neopentecostalismo uma das características dantes mencionadas por Duglas Monteiro e Rubem Alves, enfocando o seu caráter empresarial.

Lísias Negrão, fazendo referência aos textos de Duglas Monteiro e Rubem Alves conclui:

“A crescente mercantilização e burocratização da religião no mundo contemporâneo expressaria, creio eu, este duplo movimento: de um lado, uma religião que se assume cada vez mais enquanto tal, deixando de lado sua plunfuncionalidade; de outro lado, ao assumir-se, apela cada vez mais aos princípios racionahzadores caracteristicicos das esferas seculares”.

Enfim, Negrão conclui que religião e empresa são conceitos que parecem intercambiar-se. De um lado, a religião se assume cada vez mais enquanto tal, de outro, ela apela cada vez mais para os princípios racionalizadores das esferas seculares, assim como fazem as empresas, logo, reunindo características religiosas e ao mesmo tempo empresarias.

Mais recentemente (1997), Campos, em sua pesquisa acerca da Igreja Universal chegou à seguinte conclusão:

Concluímos também que coexistem, no mesmo lugar, atitudes típicas de fiéis de um ‘templo’ e clientela de um ‘mercado’. Estes últimos não se integram no grupo nem formam comunidade. São pessoas em trânsito, que buscam somente benefícios passageiros. Os fiéis permanecem e estão levando a Igreja Universal a se tomar uma ‘igreja’ e não simplesmente um ‘mercado’”.

Analisando os textos de Duglas Monteiro e Rubem Alves, 20 anos após terem sido os mesmos escritos, associando-os à análise de Mendonça e Campos, podemos perceber claramente a sua atualidade, e é-nos de alguma forma mais fácil tirar algumas conclusôes à luz do desdobramento dos grupos religiosos de cura divina e do neopentecostalismo.

Considerando os grupos religiosos atuais, destacando a Igreja Universal do Reino de Deus, parece-me que trata-se de uma empresa, que utiliza-se de todos os recursos possíveis a fim de vender os seus bens religiosos. Uma empresa muito bem estrutura de conformidade com as exigências burocráticas de uma economia de mercado, altamente competitiva, em fase de grande expansão, utilizando-se de todo o aparato dos meios de comunicação, de marketing, de assessona empresarial, jurídica, econômica, política etc., sempre com uma meta bem clara, crescer; atrair uma grande clientela e arrecadar cada vez mais capital, e reinvesti-lo afim de continuar crescendo cada vez mais.

Por outro lado, considerando o culto da Igreja Universal, sua prática litúrgica, percebe-se a força dos elementos mais primitivos da religião associados à formação de uma comunidade que tem se solidificado cada dia mais, e que se utiliza de vários signos da religião cristã. Percebemos a presença de um grupo de fiéis ao lado de um grupo de pessoas que estão à busca de benefícios transitórios. Desta forma, concordo com Leonildo Campos, bem como com Lísias Negrão, que há na Igreja Universal tanto elementos da religião, como elementos empresariais. Parece-me que o grande crescimento da Igreja Universal deve-se a esta associação do religioso com o empresarial. Desta forma, a Igreja Universal utiliza-se de elementos da religião, bem como utiliza-se dos princípios racionalizadores do mercado e os aplica na sua estrutura organizacional, nos moldes de uma empresa moderna, assim como utiliza-se de práticas monetárias em seus cultos, conforme já consideramos no capítulo anterior, afim de angariar mais dinheiro e assim se fortalecer como empresa-igreja.

O acúmulo de dinheiro pela Igreja Universal, sua gama imensa de oferta de bens religiosos em troca de dinheiro a insere necessariamente na condição de uma empresa de bens religiosos, bens que na sua maioria se constituem em promessa de cura, de libertação de demônios, de prosperidade, de solução para problemas familiares, afetivos etc. Na verdade a Igreja Universal se coloca como uma panacéia para todos os males das pessoas.

Assim, concluimos que a Igreja Universal do Reino de Deus é uma combinação de empresa e igreja, porque, se por um lado ela traz consigo elementos próprios do cristianismo, como os sacramentos, a Bíblia, as orações, o culto, por outro ela está organizada de forma empresarial, sintonizada com as demandas do mercado, pronta a reformular a sua oferta de bens religiosos de conformidade com as exigências dos consumidores. Parece-me que a Igreja Universal soube combinar bem melhor que outras igrejas que a antecederam os elementos próprios da igreja com os da empresa, tomando-se portanto uma igreja-empresa. Assim, enquanto a maioria das igrejas protestantes desenvolveu um discurso condenatório ao emprego de práticas empresariais na administração eclesiástica, a Igreja Universal utilizou-se de todos os recursos de administração empresarial afim de projetar-se no mercado e conquistar o seu espaço.

Discordo portanto daqueles que atribuem o crescimento da Igreja Universal tão somente às suas práticas místicas, bem como daqueles que atribuem o seu crescimento ao seu tino empresarial. A meu ver o crescimento da Igreja Universal deve-se à sua combinação dos ingredientes igreja-empresa. É este casamento que tem feito da Igreja Universal uma igreja prolífera.

Ora, obviamente a procura por uma religião tal como a Igreja Universal não é obra do acaso. Tal procura deve-se a fatores sócio-culturais. É o que bem mencionou Rubem Alves em suas considerações das Empresas de Cura Divina:

Por detrás da opção popular pela ‘cura divina’ se encontra o desespero quanto à cura humana: a inacessibilidade dos agentes de saúde, o alto custo dos serviços médicos e dos medicamentos, as barreiras burocráticas que se interpõem entre o doente e a cura. Na cura divina o enfermo está pelo menos convencido do cuidado pessoal do Grande Médico, em oposição ao crescente anonimato que caracteriza as relações paciente-médico (especialmente o paciente pobre)”.

É justamente esse vácuo social, essa incapacidade do Estado responder às necessidades básicas da população, de proporcionar-lhes assistência médica, alimentação, educação, segurança, dentre outras, que se insere a Igreja Universal, oferecendo a esperança de cura, apoio afetivo, emocional, que cativa as pessoas, despertando nelas a esperança de solução para os seus males, e ajudando-as de alguma forma a reorganizarem suas vidas.

É pois no contexto do pluralismo religioso, no qual o monopólio deixou de existir, que cada grupo religioso tem que disputar os seus fiéis, os seus consumidores, a sua clientela, e neste afã, muitos grupos religiosos, dos quais destacamos a Igreja Universal, tem se organizado empresanalmente, de conformidade com as exigências do mercado, procurando desta forma alcançar o maior número de pessoas possivel, e conseqüentemente, um maior capital.”

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É isso!

Fonte:
JUVÊNCIO BORGES SILVA: “A IGREJA UNIVERSAL: MISTICISMO E MERCADO”.(Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio S. Silva). UNICAMP. Campinas, 2000.

Nota:

A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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