Ciência e Não-ciências

“A partir daqui, distanciamo-nos da análise do discurso como apresentado por Foucault, para tentar estabelecer um vínculo entre o discurso de formalização das etnociências e o estabelecimento das não-ciências. Para Stengers não há oposição entre verdadeira ciência e ideologia, já que uma é responsável pela invenção propriamente científica, e portanto, da história das ciências como progresso, e a outra é concebida como uma impureza, mais ou menos fatal, mas em todo caso separável do progresso”.

Sendo que ambas estão interrelacionadas na prática coletiva, segundo esta perspectiva, o poder também não tem de ser esquecido, já que faz parte dos desdobramentos do acontecimento. Na apreciação desta autora, a análise do poder, responde a uma pergunta que se coloca aos atores-autores suscitados por esse acontecimento, e que nos interessa sublinhar para contextualizar o objetivo que nos propomos nesta parte do trabalho: a que os faculta a diferença entre ciência e não-ciência em que se apóiam? Até onde poderão fazê-la valer? Até onde essa diferença será reconhecida como fonte de autoridade? Em que domínios ele se constituirá apenas numa restrição para um problema que ela não define?.

Neste sentido, Stengers propõe que teorias como as da produção científica, têm na verdade sim, a ver com as teorias vetadas como ideológicas, quando aplicadas em práticas coletivas, e a abordagem que ela pretende dar a esta relação, tenta evitar toda oposição epistemológica entre uma verdadeira teoria, legítima, e uma pretensão teórica “ideológica”.

Toda teoria afirma um poder social, um poder de julgar o valor das práticas humanas, e nenhuma se impõe sem que, em algum momento, o poder social, econômico ou político tenha agido. Mas o fato de ele ter participado não é suficiente para desqualificar a teoria. O passado que herdamos, está saturado de “boas questões” esquecidas em nome de pretensões teóricas triunfantes, mas também de pretensões teóricas que, contra toda expectativa moral, engendraram histórias fecundas.

A respeito da nossa discussão, o comentário de Giddens sobre a noção controversa de ideologia nos conduz ao debate da relação entre poder e autoridade na institucionalização das não-ciências e da subestimação dos sistemas de conhecimento indígenas como simples tradição e mitos. Para mim, comenta Giddens:

A ideologia diz respeito ao modo como as idéias servem para sustentar as desigualdades de poder –e tais idéias podem ser os conceitos evidentes que fazem parte da consciência prática. A ideologia não tem conteúdo independentemente de sua relação com o poder (..) Ela não inclui apenas os grandes sistemas de idéias, como o nacionalismo ou as doutrinas religiosas. Alguns dos tipos mais arraigados de ideologia se baseiam nas convenções cotidianas –na consciência prática e na conversação diária.

No que se refere ao poder da autoridade, Stengers coloca que “o cientista transforma-se em representante acreditado de uma conduta em relação à qual toda forma de resistência poderá ser considerada obscurantista ou irracional” . Baseando-se em Feyerbend, a autora argumenta uma crítica contra a identificação da objetividade como o produto de uma conduta objetiva; se se fizer da objetividade o destino comum de nossos conhecimentos, o ideal que estes devem ter por alvo, diz ela, é que “toda prática de conhecimento será intimada a se submeter à diferenciação daquilo que ela tende a confundir se não for científica: conhecimento objetivo, científico, de um lado, projetos, valores, significações, intenção, de outro” .

Portanto, segundo Stengers: “é sempre o poder que se dissimula atrás da objetividade ou da racionalidade quando elas se tornam argumento de autoridade”.

Para observar a imposição de uma autoridade, sobre outras, neste sentido, a perspectiva cosmovisional de ocidente, temos de observar o horizonte das pesquisas dentro de um tema mais geral, como Foucault nomeia a perspectiva de análise historiográfica que ele defende; segundo ele, o tratamento do discurso teria de ser feito no sistema de sua institucionalização.

O do modo de existência dos acontecimentos discursivos em uma cultura, o que se trata de fazer aparecer é o conjunto de condições que regem, em um momento dado e em uma sociedade determinada, o surgimento dos enunciados, sua conservação, os laços estabelecidos entre eles, a maneira pela qual os agrupamos em conjuntos estatuários, o papel que eles exercem a série de valores ou de sacralizações pelos quais são afetados,a maneira pela qual são investidos nas praticas ou nas condutas, os princípios segundo os quais eles circulam, são recalcados, esquecidos, destruídos ou reativados.

Deste modo, a contra-história a partir de uma análise endógena poderá ser o alvo para que um contra-discurso seja proposto, uma forma diferente de representar o universo cosmovisional através de uma outra perspectiva a respeito dos sistemas de conhecimentos dos silenciados. Portanto, ao abordarmos a relação entre poder e autoridade, defendemos a necessidade de uma crítica à produção colonizante do conhecimento para fins de expansão econômica capitalista e para a exploração dos recursos naturais e humanos. Neste sentido, Trinchero apresenta que “a colonialidade do saber se organiza através da reprodução do conhecimento do mundo em acordo ao modo dominante de entender-lo.

Ao mesmo tempo que temos de refletir a respeito das formas de legitimação desta autoridade. Como temos observado na primeira parte do segundo capítulo, os enunciados contidos nas representações sobre a alteridade desde o século XVII têm possibilitado uma hierarquização sociocultural antagônica e dicotômica entre sistema de conhecimento a forma ocidental e o sistemas de conhecimentos dos não-ocidentais, por meio da ideologização negativa e a politização das aproximações do conhecimento dos outros, legitimando assim as condições e os papéis dos atores sociais nas estruturas nacionais e mundiais. Neste sentido, concordamos com Trinchero ao afirmar que “uma história é produzida com intenção de ter ela uma capacidade de hegemonia como discurso de poder”.

Com o anteriormente afirmado, vemos como o discurso converte-se num condicionante que guia o corpo metodológico para construir um eles são, que se baseia na interpretação da memória e de arquivos objetivamente comprovados. A critica que fazemos ao discurso hegemônico exotizante dos indígenas, é o fato de ser a base subjetiva que tem domesticado o saber a respeito do sistema de conhecimentos e sobre a dinâmica sociocultural destes grupos. Neste sentido, Taracena comenta a respeito da exotização do saber dos povos indígenas no período que vem de 1945-1985:

Os que intercediam pela eliminação do “índio” não podiam entender as razões pelas quais os indigenistas falavam da conservação da cultura indígena, pois para eles não existia no mundo indígena nada que se pudesse nomear como cultura. Além, ao se transformar o conceito evolução no critério principal de definição da cultura, para eles as costumes e as práticas tradicionais indígenas não podiam se qualificar como tal.

Então, como observado por Foucault, é neste tipo de espaço de ação, que se estabelecem e se especificam as relações da ideologia com as ciências; segundo Foucault, a influência da ideologia sobre o discurso científico é o funcionamento ideológico das ciências no nível de sua utilização técnica em uma sociedade, assim, ideologia e discurso científico se relacionam da seguinte forma:

Articulam-se onde a ciência se destaca sobre o saber. Se a questão da ideologia pode ser proposta à ciência, é na medida em que esta, sem se identificar com o saber, mas sem apaga-lo ou excluí-lo, nele se localiza, estrutura alguns de seus objetos, sistematiza algumas de suas enunciações, formaliza alguns de seus conceitos e de suas estratégias; é na medida em que a ciência encontra seu lugar em uma regularidade discursiva e, por isso, se desdobra e funciona em todo um campo de práticas discursivas ou não.

Trinchero por sua vez, explica que se se pensasse que a ciência pode encontrar um caminho de legitimidade no conhecimento crítico, a procura deve se orientar à produção de saberes que combatam a pretensão de hegemonismo do conhecido (preexistente e atuante como saber desde os dispositivos e disposições do poder) mediante o uso de argumentos sustentáveis e exaustivos, requerendo para tal empresa o distanciamento do poder hegemônico.

Mas, lamenta-se o autor, o distanciamento não depende somente da vontade do investigador, que se encontra enredado nos critérios, condições, possibilidades e limites que impõe o campo intelectual e acadêmico. Segundo Trinchero, o campo intelectual e acadêmico está atravessado pelo conflito de classes sociais, sendo que as disputas de hegemonia nas academias, universidades, centros de pesquisa são em certa medida os efeitos de este conflito.

Ao refletir sobre o poder e a autoridade, faz-se visível o fato de que para existir uma autoridade tem de existir ao mesmo tempo, algo, ou alguém sobre o qual exercer poder; a partir dali é que, no cenário do estabelecimento de um discurso hegemônico, aparecem os atores: o sujeito e o objeto e com eles o ponto de incômodo: a demanda de representatividade.”

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É isso!

Fonte:
María Jacinta Xon Riquiac: "Os outros, os silenciados, os globais e contemporaneamente presentes, os incomodamente não vencidos. Os Maias entre eles". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em História das Ciências pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista).Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. São Paulo, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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