Civilização e barbárie em Euclides da Cunha

“Quando pensamos em civilização e barbárie, pensamos logicamente na imagem de extremos, um civilizado, se portando de forma adequada, racional; o outro como sua antítese, ou seja o bárbaro, o irracional. Desta forma, civilização e barbárie se complementam, fortalecendo-se, ajudando a criar a identidade um do outro. É aqui que entra a análise de Edward Said, em Orientalismo, onde este autor ilustra justamente como o Ocidente construiu sua imagem de “civilizado”, tendo como base a imagem de “bárbaro”. Citando Said, o Orientalismo é “um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre “o Oriente” e ( maior parte do tempo) “o Ocidente”.”533 Assim, o Ocidente construiu a sua imagem civilizada, organizada, frente ao mundo oriental, que lhe parecia bárbaro.

John Luckacs também ilustra bem a definição de civilização e barbárie e em especial a idéia de “primitivo” surgiram na língua inglesa em 1540. Segundo o autor, este termo “sugeria, inicialmente, pessoas que ainda estravam “atrás” de nós, isto é, atrás e não à frente, atrás de nós no tempo e não no espaço: em outras palavras, “atrasadas”. Indo mais além ele demonstra que foi a partir de 1600 que “civilização” havia-se transforado em antônimo de “barbarismo” e “primitivismo” (do Dicionário Oxford de 1601 - “civilizar: retirar da rudeza, educar para a civilidade”). Concluindo este raciocínio, Lukacs ilustra que depois, já na metade do século XIX para o início do XX, a mesma idéia de civilização ganhou espaço se associando a idéia de cultura e de progresso.

Cultura, progresso, civilização, barbárie e atraso. Esta mesma lógica imperava na visão que a elite brasileira tinha frente à população mestiça e negra e em particular à população sertaneja. A imagem da civilização – do progresso, do desenvolvimento, do mundo idealizado da Europa nos trópicos - frente à barbárie que supostamente imperava no interior.

É dentro deste contexto que muitos intelectuais buscavam encontrar, nesta população “atrasada”, “retrógrada”, “degenerada”, “bárbara”, os fundamentos, a razão da existência da própria nação brasileira. Esta temática aparece em vários autores do período e em particular nos quatro autores aqui estudados.

Porém, à medida em que estudavam a “barbárie”, era evidente que esta era idealizada, imaginada, vendo nelas elementos que se traduziam e se tornaram fundamentais para a “civilização”.Ou seja, as imagens de “barbárie” e “civilização” se fundiam, se mostravam próximas, se faziam sentir. Mesmo quando pareciam conseguir se libertar desta visão, estes intelectuais acabavam entrando em contradições e em reformulações destas idéias, produzindo visões bastante tensas e contraditórias.

O caso de Euclides da Cunha é emblemático. Positivista, defensor do progresso, da República, da modernização e da civilização, ele se vê numa situação onde estes dois elementos aparecem como antagônicos, mas na medida em que ele analisa a sua realidade ele pode perceber que tal antagonismo é na realidade falso, sem sentido e vinculado a uma imaginário preconceituoso.

Para ele, a civilização e a barbárie são elementos que não apenas se contrapõem, mas se cruzam, mostrando assim uma ligação efetiva entre o que os sujeitos designados a partir daqueles conceitos.

Comecemos pela análise que faz em Os Sertões. Motivado pela idéia da superioridade racial, Euclides constrói uma imagem de Canudos como sendo o reflexo do atraso, composta de bárbaros, vivendo de forma primitiva, uma antítese da civilização. Era um lugar mal organizado, sem planos urbanísticos, onde se reproduziriam os sinais de degeneração, da barbárie. Euclides faz severas críticas a Canudos, mostrando a falta de um planejamento urbano, uma vez que não se conseguia distinguir a formação das ruas, as casas feitas de pau-a-pique, com apenas três compartimentos pequenos, a argila que dava um aspecto repugnante às moradias. Tudo isto se traduzia na seguinte conotação:

“O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante, traduzindo decerto modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.”

Cunha descreve que Canudos crescia vertiginosamente, arrebatando pessoas de diversas comunidades e cidade de todo o sertão, o que levava ao crescimento vertiginoso do arraial:

A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia ; e, à medida que se formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali acoitada. Era a objetivação daquela insânia imensa. Documento iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo.”

Dentro das casas, Euclides identifica a mesma pobreza, em particular da mobília, onde não existiam nem camas e nem mesas; apenas bancos, canastras, reses, santos Antônios e imagens de Santa Maria; e algumas armas que poderiam ser utilizadas, tais como facões e armas de fogo, caso de espingardas.

A descrição feita mostra Canudos como um lugar mal organizado, sem quaisquer preocupações com a urbanização ou com as habitações. Ele completa este quadro relatando que o entorno da região também pouco contribuía para melhorar o quadro e seu aspecto geral, marcada pelas paisagens tristes e sem vida, de colinas nuas e uniformes, sem vegetação e sem aspecto de vida.

Euclides descreve também as atividades dos residentes de Canudos: pela manhã, se dedicavam a construir casebres, que no entender do autor pareciam obedecer ao traçado de um plano de defesa, feita ao acaso, sem um plano urbanístico. O escritor mostra aqui sua percepção de militar, descrevendo o entorno de Canudos com as idéias de defesa militar, ilustrando um plano de defesa:

Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-o no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras cavadas em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo volvidos, rasantes com o chão, para todos os rumos.”

Para ele, é a barbárie que reina em Canudos. Seja na raça, na cultura e na religião, tudo lá remeteria a um estágio inferior da civilização:

Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravescidas, todas as condições do estádio social inferior. Na falta da irmandade de sangue, a consangüinidade moral dera-lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o fácies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros.”

O imaginário da barbárie se traduzia na forma como a religião se desenvolvia em Canudos. Euclides via os hábitos religiosos ali praticados como uma demonstração de inferioridade desta população: era um “misticismo bárbaro”, marcado pelo medo e pelas crises de histeria, pela loucura. Mesmo as pregações contrárias à República eram vistas por ele como uma demonstração do baixo grau de desenvolvimento da população canudense.

Uma das frases mais importantes de Euclides, de que Canudos foi um refluxo na história, tem um sentido dúbio: era o momento em que, confrontada com a barbárie, a civilização se tornava a própria barbárie.

Euclides via a história como um progresso. Canudos surgia para ele como algo que se perdeu no passado, primitivo, enquanto toda a civilização se dirigia e se desenvolvia em outro sentido. Assim, Canudos representava o atraso, não apenas material, mas também no seu estágio primitivo, comparando-os com povos mais antigos, procurando assim enfatizar que os sertanejos estavam em um estágio atrasado na sua evolução social, o que era portanto o determinante no seu comportamento, em aproximação com aventureiros do século XVII, por exemplo.

É neste ponto que Euclides começa a questionar a idéia da civilização e em especial a do litoral, vista pelo autor como um exemplo de abandono de parte do Brasil, que vivia no interior. Por isso chama o Brasil de “civilização de empréstimo” e faz uma crítica bastante pesada sobre o próprio país; que copiamos o que de mais chama a atenção no exterior, mas nos esquecemos de ver e compreender as exigências da nossa própria nacionalidade. E que fomos bastante “ignorantes” (palavra minha), o que nos teria impedido de ver e compreender o sertanejo no seu contexto original, ou de perceber o atraso em que vivia parte da população.

E o choque da guerra de Canudos aproximou, na visão do autor, a civilização da barbárie. Com a guerra, criou-se uma imagem de Canudos como um obstáculo ao estabelecimento do progresso ao qual o Brasil estaria destinado.

Como diz Ricardo Luiz de Souza,

Os sertões passa a ser o texto em que Euclides procura conciliar criticamente as diretrizes modernizadoras da República com os segmentos mais desprivilegiados da Nação”.

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É isso!


Fonte
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Ricardo Sequeira Bechelli: “METAMORFOSES NA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL: Tensões no paradigma racial - Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna". (Tese de doutorado em História Social apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Prof. Dr. Marcos Silva). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2009.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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