A religião das marcas

Consumo e espiritualidade

“Muito do consumo de hoje, mormente do simbolismo das mercadorias, por meio de marcas bilionárias, propicia encantamento e sentido ao indivíduo, e se propõe a preencher o espaço outrora ocupado por valores mais profundos da família, comunidade e religião. A marca ultrapassa a designação do valor de utilidade do bem, em direção a um cerne espiritual: “[...] a marca tem uma essência, ela tem uma ‘alma’ que são os valores básicos que a definem, seu ‘núcleo espiritual’” (FONTENELLE, 2002, p. 177).

O gerenciamento das identidades de marca mimetiza a famosíssima declaração de Charles Revson, fundador do império Revlon de cosméticos: “Na fábrica produzimos cosméticos; na drogaria vendemos esperança” (apud KOTLER, 1995, p. 224). Isso porque, nas palavras de Klein, os atuais profissionais de marketing seguem o mantra “a pose vale mais que o objeto” (2000, p. 219), e defendem que os produtos estão para a fábrica, assim como as marcas estão para a mente. “Muitas multinacionais de nome de marca [...] querem transcender sua necessidade de se identificar com seus produtos terrenos” (2000, p. 219).

Vários bens vêm sendo alvo de veneração semelhante à devotada às religiões tradicionais. Consumidores chegam a reverenciar objetos, lugares e experiências de consumo quando tencionam atribuir-lhes um significado bem além de sua utilidade e da mera relação material e funcional, em direção à transcendência. Atkin (2005, p. 141) assim descreve o comportamento dos consumidores de uma loja da Apple em Nova York:

Ao longo das galerias se encontram as livrarias eclesiásticas do “software”, e os textos sagrados — os manuais e os guias dos usuários. E, por toda parte, exercendo o ministério de maneira silenciosa e reverencialmente, se encontram os acólitos trajados de negro, sempre dispostos a explicar o procedimento para instalar o software ou dar instruções de como descarregar música. Na parte alta das escadas se encontra o santuário interior. Os congregantes, silenciosamente, ali se reúnem e tomam assento em bancos frente a um púlpito situado à esquerda de uma gigantesca tela plana radiante de cores e de vida. [...] À direita da entrada se encontra o altar, a última parada de uma hora de martírio para os membros. Uma larga viga de madeira colorida com luzes e caixas registradoras aceitando as oferendas dos comprometidos, auxiliados por sorridentes diáconos (tradução minha).

Belk, Wallendorf & Sherry (1989) também investigaram a possibilidade de o consumo assumir algumas características do sagrado, tendo discorrido acerca de sua dimensão espiritual.

[...] consumo envolve mais do que os propósitos que levam as pessoas a obter suas necessidades diárias. O consumo pode se tornar um veículo de experiência transcendental, quer dizer, o comportamento de consumo exibe certos aspectos do sagrado (BELK; WALLENDORF; SHERRY, 1989, p. 2, tradução minha).

Aceitando a premissa da existência de bens imbuídos de uma dimensão sagrada, “os objetos de luxo talvez constituam a sacralização mais difundida da sociedade de consumo” (D’ANGELO, 2006, p. 156). Principalmente pela raridade e aura de mítico que os circunda. E o mesmo autor complementa:

A princípio, todo consumidor que possuísse um objeto de luxo tenderia a dispensá-lo cuidados e importância superiores, devido ao significado coletivo — e conseqüentemente individual — que possui. Esse significado coletivo produz no imaginário do consumidor uma verdadeira analogia moderna à salvação religiosa, tornando o luxo uma ‘eufemização do sagrado’ na qual se reproduzem emoções através de simbologias mais leves e maleáveis do que aquelas adotadas pelas sociedades antigas.

Sung é um desses raros autores que buscam estabelecer conexões entre consumo e transcendência, que já vinham sendo ensaiadas na obra Desejo, mercado e religião (1998), focando o desejo como mola mestra tanto da religião, quanto do sistema de mercado capitalista, que dará origem não apenas à sociedade de consumo, mas ao próprio consumismo. Ele aproveita para destacar a diferença entre toda a vasta gama dos desejos e o leque limitado das necessidades, criticando a sobreposição que muitos autores fazem entre ambos, como se sinônimos fossem. A dimensão religiosa trata dos desejos mais profundos do ser humano, aqueles conectados a Deus, à vida pós-morte, à salvação do corpo e da alma. O mercado, por sua vez, também está alicerçado sobre desejos. Desejos “terrenos” e materiais, cuja satisfação é trocada por dinheiro na arena das lojas, butiques, supermercados e shopping centers. O que é um cenário muito belo, não fossem os danos à ecologia e os custos sociais decorrentes do mesmo. Como Sung observa ao longo da obra, tais mecanismos capitalistas que tão bem satisfazem os incontáveis desejos humanos, provocam em paralelo malefícios ao planeta, a exclusão
social e sacrifícios de vidas humanas. Afinal, o atual sistema econômico neoliberal tem como premissa a geração máxima de riqueza e não a superação da pobreza. Sung retrata um dualismo que se manifesta, por um lado, no motor do progresso cujo combustível é o mimetismo das camadas menos favorecidas procurando emular as elites e, pelo outro, os graves problemas sociais decorrentes dessa emulação: “[...] um sistema econômico que diviniza uma instituição humana, o mercado, e em seu nome exige sacrifícios de vidas humanas em troca da promessa de ‘acumulação ilimitada de riqueza’” [...] (SUNG, 1998, p. 35-36). Ele chega a apontar que o capitalismo pretende substituir o cristianismo como realizador de promessas, de um pós-morte cristão para um futuro intra-histórico capitalista. E erige a ponte final entre o que costumava pertencer à esfera religiosa tradicional, e que hoje faz parte dos domínios do mercado, ao defender que o progresso vertiginoso que gera milhares de maravilhas tecnológicas e que tanto facilita e encanta a vida das pessoas passou a ocupar o território do sonhado paraíso divino pós-morte intermediado pela Igreja sacralizada: “Neste sentido, podemos afirmar que a secularização do mundo moderno não significou o fim das religiões, mas o surgimento de um novo tipo de religião: a religião econômica” (SUNG, 1998, p. 88).

É o chamado mito do progresso. Com esse mito, desaparece a noção do limite para ações humanas e surge a idéia de que “querer é poder”. E quem melhor do que o capitalismo para encampar as promessas outrora advindas da religião e da utopia? O progresso, alavancado por este capitalismo, se fundamenta no livre mercado, que “reivindica para si, ou melhor, os ardorosos defensores do mercado atribuem a ele o caráter de sagrado” (SUNG, 1998, p. 63-64). Mas a modernidade é marcada não só pelo
desenvolvimento tecnológico, quanto (quiçá até principalmente) pela supervalorização do hedonismo — a busca incessante de prazeres imediatos, que não raramente são confundidos com felicidade. A ênfase que outrora residia em um paraíso celeste pós-morte, ou no presente mesmo, na utopia de uma sociedade perfeita, agora é no “aqui e já”, na maximização do prazer.

Nas palavras de Rocha (2005, p. 127):

[...] possuir produtos e serviços é ser feliz. São cervejas que trazem lindas mulheres, carros que falam do sucesso pessoal, cosméticos que seduzem, roupas que rejuvenescem. Produtos e serviços que, agradavelmente, conspiram para fazer perene nossa felicidade. Consumir qualquer coisa é uma espécie de passaporte para a eternidade, consumir freneticamente é ter a certeza de ser um peregrino em viagem ao paraíso.

E o mito do progresso, alavanca para uma melhor qualidade de vida, portal para a felicidade a qualquer preço, é ilustrado por Lipovetsky (2007, p. 52-53):

O antigo imaginário da consagração completa aos supremos ideais se esvaiu, deixando de servir de estímulo ou sentido para a existência. O desenvolvimento de si mesmo se erige como o ideal pleno, como o grande referencial e o móvel psicológico da era hiperconsumista. O Homo felix ultrapassou o Homo politicus. Mudar a sociedade? Não é mais essa a questão. A palavra de ordem é: aumentar a qualidade de vida presente, tanto para si como para os mais próximos; ganhar dinheiro; consumir, tirar férias, viajar, se distrair, praticar um esporte, decorar a casa.

O mito do progresso que é germinado pelo fim último materialista chega a se tornar uma espécie de “narcótico de nossa civilização” (NEEDLEMAN, 1991, p. 196), que não está conduzindo necessariamente a uma maior qualidade de vida: o tempo ganho devido a uma determinada maravilha tecnológica é imediatamente corroído por alguma outra atividade até então inexistente, sem propiciar mais tempo livre às pessoas, mas conduzindo a uma luta permanente contra o relógio, a cada dia perdida como uma conta corrente aberta a cada manhã, e que chega à noite sempre no “vermelho”. O tempo vem sendo cada vez mais um “bem escasso”, sendo um dos principais geradores de angústia na pós-modernidade, uma espécie de ansiedade epidêmica. É como se o progresso traduzido por tecnologia e prestação de serviços tivesse o condão mágico de expandir o tempo. Ironicamente, o progresso multiplica as coisas que cada um tem de fazer, e o tempo economizado na execução de uma tarefa é imediatamente engolido na execução de outra. Traduzindo: a sociedade pós-moderna fabrica maravilhas tecnológicas que não vêm sendo acompanhadas por uma correspondente evolução e aprofundamento no sentido da vida das pessoas. Os avanços da ciência, que possibilitam à tecnologia se desenvolver de modo acelerado e contínuo, estão claramente defasados dos ensinamentos para uma vida com sentido: com mais realização interior, autoconhecimento, auto-realização, menos estresse e mais altruísmo.

O materialismo busca resolver, de forma rápida e prática, o vazio existencial e a falta de sentido de vida de muitas pessoas, mas nesse processo de ação no mundo exterior, oblitera viagens ao interior do indivíduo. Para Fromm (1977), a compulsão pelo rápido e pelo novo, origem do consumismo, é nada mais que um mecanismo de fuga íntima de si mesmo e da intimidade com o outro. O que é complementado por (NEEDLEMAN, 1991, p. 167):

[...] o erro do materialismo é um erro de percepção da realidade, baseado na falta de contato experimental com o mundo interior. Aquilo que conhecemos como ganância e possessividade, acompanhados da característica crueldade e exploração humana, são resultados dessa ignorância do mundo interior. Voltamo-nos para o mundo exterior superficialmente percebido à procura daquilo que só pode ser obtido por intermédio do acesso profundo ao eu interior. O materialismo não é um “pecado”, é um engano.”

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É isso!


Fonte:
MÁRIO E. RENÉ SCHWERINER: “O CONSUMISMO E A DIMENSÃO ESPIRITUAL DAS MARCAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA”. (Tese de Doutorado apresentada no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, em cumprimento parcial às exigências para obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Práxis Religiosa e Sociedade. Orientação: Prof. Dr. Jung Mo Sung). Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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