O evangelho segundo o McDonald’s

A necessidade da ideologia para a rede fast-food

"A fundamentação da ideologia para o mundo do trabalho está pautada no modelo de produção atual, denominado de toyotismo, com dimensões bem mais abrangentes que o modelo de produção fordista, sem, no entanto, fugir da forma produtora de mercadorias do sistema capitalista. O impacto do toyotismo, porém, é mais ágil e lucrativo na produção de mercadorias, causando diferentes e novas conseqüências diretas para o trabalhador, com a busca não mais da forma individual de produzir, mas da integração dos trabalhadores em equipe.

Neste modelo insere-se, de acordo com o que pesquisamos, a rede de fast-food McDonald’s, na qual o trabalho em equipe possui um importante papel dentro da organização da empresa. As metas são traçadas e destinadas às equipes de trabalho que, movidas pelos “prêmios”, instalam a competitividade e todos trabalham em ritmo acelerado. Este espírito de equipe criado pela empresa permite que o trabalhador permaneça trabalhando mesmo após as oito horas diárias permitidas.

O trabalho em equipe favorece à empresa por existir uma maior cobrança sobre o trabalhador, permitindo que se cobre deste trabalhador o cumprimento de determinados conhecimentos que extrapolam as exigências da função para a qual foi contratado. Para tanto, a rede promove competições com a finalidade de provocar no trabalhador o conhecimento de procedimentos que envolvem todo o processo produtivo. O conteúdo das competições implica saber exatamente, por exemplo, o tempo exato de fritura para preparo do hambúrguer, da batata e dos demais alimentos que comercializam. A equipe ainda deve saber como funcionam os equipamentos, qual o peso exato dos produtos e o tempo de preparo de cada um; enfim, além de dominarem o trabalho de todas as estações de produção, inclusive a de caixa, devem ter conhecimento de toda a informação referente ao funcionamento dos maquinários que operam. Para tanto , não poupam esforços. Como afirmam em seus depoimentos:

quando se aprende uma estação de trabalho, por exemplo, a chapa, onde frita o hambúrguer para colocar no lanche, cada estação tem um papel que chama nível de verificação. São listas de procedimentos de trabalho (...) mas a gente tem que saber dados do produto da estação, o equipamento, aí a gente leva o manualzinho, que é um livrinho, para casa, para estudar. Eu comecei a levar pra casa, e a maioria dos colegas também, desde que comecei a trabalhar e ficava estudando, estudando para ir bem, eu e minha equipe, nas competições (Funcionário da rede, em entrevista para esta pesquisa).

Além do trabalho em equipe, ocorrem também competições entre elas, abordando o funcionamento do maquinário que operam, possibilitando, desta forma, o conserto, caso ocorra algum problema técnico ou numa eventual emergência, descartando a necessidade de um técnico para reparar pequenos problemas e, conseqüentemente, não demandando interrupção da produção.

Existem competições dentro da empresa que faz com que o funcionário não se dedique à empresa só na hora do trabalho (...) só os funcionários extremamente capacitados, treinados e muito interessados sabem qual o peso, especificações de equipamento que só o técnico sabe. Então, o que agente faz: acaba levando os livrinhos para casa, porque a gente não tem tempo de estudar na hora do trabalho, a gente não pára, em casa a gente fica decorando, para ser o melhor da estação, para vencer a competição da loja e fazer a loja vencer a competição do setor e, depois, representar o setor junto dos outros setores (Funcionário da rede, em entrevista para esta pesquisa).

Podemos crer, desta forma, que o espírito de competição disfarça uma maior exploração do trabalhador, que constantemente busca superar-se, ultrapassando, muitas vezes, seu período de trabalho sem remuneração. Para safar-se das horas extras, a empresa, através de seus gerentes, influencia cautelosamente os trabalhadores a registrarem seus cartões de ponto e voltarem ao trabalho.

Na ausência de bons salários as redes tentam inculcar o espírito de equipe nos jovens. Àqueles que não trabalham com afinco, que chegam tarde ou que relutam em ficar além do horário é transmitida a noção de que estão dificultando a vida de todos os demais, deixando os amigos e colegas na mão. (SCHLOSSER, 2002, p. 102)

Verifica-se que as práticas trabalhistas do McDonald’s são semelhantes à do sistema de linha de montagem, como o fordismo, em que existe a divisão do trabalho, mesclada hoje com o toyotismo:

No balcão da frente, caixas registradoras computadorizadas soltam seus pedidos. Assim que um pedido é feito, botões se acendem, sugerindo outros itens do cardápio a serem acrescentados. Os funcionários que trabalham no balcão são instruídos a aumentar o tamanho de um pedido com recomendações de promoções especiais, empurrando sobremesas, apontando para a lógica financeira por traz da compra de um refrigerante maior. Ao mesmo tempo em que fazem isso, são instruídos a se comportarem de maneira agradável e amigável. (SCHLOSSER, 2002, p. 96)

Para o sucesso desta forma de organização nos restaurantes, a rede investe pesado no treinamento de sua gerência, que coordena diretamente o trabalho dos atendentes. De acordo com um dos gerentes que entrevistamos, seu perfil deve ser de alguém simpático, orgulhoso da empresa em que trabalha, um exemplo a ser seguido, já que iniciou sua carreira como atendente ; no entanto, nem todos conseguem manter esta simpatia constante. Em muitas entrevistas, os atendentes reclamaram da forma de tratamento dos gerentes, que muitas vezes agem com estupidez e gritam, fazendo exigências impossíveis de serem cumpridas. Como disse um funcionário, “na hora de maior movimento a gente tem de fazer as coisas ainda mais rápido, e se é um dia que a gente não tá muito ligado, o gerente grita mesmo” (Funcionário do McDonald’s, em entrevista para esta pesquisa).

A estratégia construída pela rede torna a recompensa verbal um substituto do pagamento de horas-extras e de melhores salários, ocultando, desta forma, a verdadeira intenção da empresa, que é de maior exploração da força de trabalho e, conseqüentemente, maior lucratividade.

O lucro, desta forma, é a sustentação do sistema capitalista, que inverte propositalmente sua lógica, separando o trabalhador do que produz, ou seja, o criador é separado de sua criação, o que acarreta a construção metafísica do processo produtivo social.

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse qüiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais. (MARX, 1983, p. 71)

A nossa pesquisa sobre a rede McDonald’s evidenciou que o trabalho continua a ser, na sociedade contemporânea, uma centralidade fundamentalmente humana, havendo, sim, uma amplitude do entendimento do que vem a ser o ser social da classe trabalhadora.

Uma noção ampliada de classe trabalhadora inclui, então, todos aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário, incorporando, além do proletário industrial, dos assalariados do setor de serviços, também os proletários rurais, que vendem sua força de trabalho para o capital. Essa noção incorpora o proletário precarizado, o subproletário moderno part time, o novo proletário dos Mcdonald’s, os trabalhadores terceirizados e precarizados, os trabalhadores da economia informal, além dos trabalhadores desempregados (ANTUNES, 2000, p. 103).

O que já foi demonstrado nos escritos de Marx, que aponta para a ruptura do trabalho com a lógica do capital, permanece, uma vez que a forma de produzir continua sendo ditada pelo capitalismo. O trabalhador não perde, dessa maneira, seu potencial criador de valor, havendo, sim, uma mudança no interior desta categoria trabalho , com aumento da tecnologia. Nem por isso deixa de ser um modelo capitalista de produção, havendo somente uma mudança na produção de mercadorias, própria do sistema capitalista. Diretamente relacionada com este assunto, entendemos ser a ideologia o momento ideal da ação humana. Como declara Lukács: “nasce direta e necessariamente do hic et nunc sociedade” (LUKÁCS, 1981, p. 446)27.

Esse poder que a ideologia exerce desempenha função específica e determinada por uma dada situação social favorável à sua tendência e ao seu desenvolvimento histórico, como Lukács coloca. Apenas com o intuito de delimitarmos o que compreendemos por ideologia, afastamo-nos da utilização que a reduz a simples falseamento da consciência, uma vez que a:

Ideologia não é a consciência, mas uma forma específica desta; especificidade cujo traço marcante é o de estar voltado à prática, o de estar presente em toda a prática humano-social. Tendo em vista essa sua característica essencial, a ideologia não pode ser o mesmo que consciência da realidade, pois as generalizações produzidas pela ideologia estão sempre orientadas pela práxis, pelo objetivo de transformar ou manter uma realidade dada. (LUKÁCS apud VAISMAN, 1986, p. 53)

Sendo assim, a ideologia funciona como um momento ideal que antecede e orienta a ação, na medida em que a espécie humana é um ser fundamentalmente prático. Neste sentido, o enfoque que nossa pesquisa aborda passa necessariamente pelo poder da ideologia, uma vez que as condições capitalistas exigem do trabalhador práticas que são contrárias aos seus interesses:

O poder da ideologia dominante é indubitavelmente imenso, mas isso não ocorre simplesmente em função da força material esmagadora e do correspondente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes. Tal poder ideológico só pode prevalecer graças à vantagem da mistificação, por meio da qual as pessoas que sofrem as conseqüências da ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar, consensualmente, valores e políticas práticas que são de fato absolutamente contrários aos seus interesses vitais. (MÉSZÁROS, 1996, p. 26)

No tocante especificamente ao que estamos tratando, para a realização de uma maior exploração, o trabalhador precisa estar em “harmonia” com as práticas determinadas.

Obrigar as pessoas a se submeter aos ditames do trabalho realizado como um “hábito” mecânico – ditames que emanam do impulso inexorável do capital para o lucro – foi transformado em uma virtude inquestionável. (MÉSZÁROS, 1996, p. 89)

O discurso sobre as novas formas de trabalho é, fundamentalmente , uma racionalização ideológica que, se não aplicada na prática, poderá gerar conflitos de classes. Assim, para aprovar a contínua viabilidade da ordem econômica estabelecida, a ideologia desempenha um papel importante no processo de readaptações estruturais.”

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É isso!


Fonte:
CARMEN LUCIA RODRIGUES ALVES: “O EVANGELHO SEGUNDO O McDONALD’S UM ESTUDO SOBRE O PROCESSO DE PRODUÇÃO DA FAST-FOOD”. (Dissertação apresentada aoPrograma de Estudos PósGraduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História (Área de Concentração: História Social), sob orientação do Prof. Dr. Antonio Rago Filho). Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2006 .

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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