Concepções de preconceito e intolerância

“O conceito de intolerância faz parte da nossa sociedade há séculos, porém, conforme o mundo foi se transformando, esse conceito também se modificou. Segundo Bobbio (1992: 2003), a princípio, o termo era usado ao se tratar apenas de aceitação ou não da religião ou postura política de minorias. Desse modo, quando os filósofos dos séculos XVII e XVIII, John Locke e Voltaire, escreveram sobre esse tema em suas respectivas obras Carta acerca da Tolerância e Tratado sobre a Tolerância, preocupavam-se com a intolerância religiosa, muito praticada naquele momento. Hoje o termo foi generalizado e é também utilizado ao se referir à intolerância direcionada a qualquer tipo de minoria (étnica, lingüística etc.).

Cardoso (2003:57) também observou que na modernidade o conceito de intolerância/tolerância sofreu ampliação, pois no renascimento o termo tolerância se referia basicamente à liberdade religiosa e já no século XIX, esse passou a referir-se à liberdade de pensamento, de expressão e de ações. Assim, acreditamos ser necessário diferenciar o sentido desses dois tipos de intolerância: 1.intolerância a crenças e opiniões diversas, que implica um discurso sobre a verdade. Ex. intolerância política e religiosa; 2. intolerância face ao diferente, por motivo físico ou social. Ex. intolerância com o negro, o pobre, o homossexual, entre outros. Para Bobbio (1992:204), esses dois sentidos de intolerância possuem diferentes causas. “A primeira deriva da convicção de possuir a verdade; a segunda deriva de um preconceito”. Após diferenciar o significado histórico e geral de tolerância, esse teórico diz que diferentes “verdades” religiosas devem ser toleradas, sem que adeptos das várias religiões “abram mão” de suas doutrinas, porém, diferenças raciais, étnicas, entre outras, devem ser aceitas e respeitadas, não apenas toleradas.

Conforme afirma o sociólogo Rouanet (2003:10), o mundo judaico-cristão herdou, juntamente com a idéia monoteísta de um Deus único, a intolerância religiosa, não existente na Antiguidade Clássica, politeísta e dessa forma hospedeira de deuses de outros povos.

Segundo Voltaire (apud Cardoso 2003:43), tanto os gregos quanto os romanos eram muito tolerantes com as diferentes religiões, a ponto de os atenienses ter um altar destinado aos deuses estrangeiros, que não podiam conhecer. Assim, os motivos de condenações na Antigüidade eram, em geral, por rebeldia civil, não por problemas religiosos.

Foi na idade média, com o apogeu da igreja católica, que a intolerância religiosa ganhou traços alarmantes. Nos séculos XVI e XVII, devido ao grande número de conflitos causados pela intolerância com as religiões minoritárias, o comportamento tolerante com as minorias religiosas foi ordenado, e esse conceito passou a ser jurídico. (Habermas, 2003:10) . Mas foi somente com o Iluminismo que a tolerância passou a ser um princípio de ordem geral, imposto pela razão, não mais uma concessão outorgada pela autoridade estatal (Falcon, apud Bueno, 2006:24).

Para Cardoso (2003:85), há, no cerne das idéias de liberdade presentes no ideal iluminista e no regime liberal europeu, profundas ambigüidades, pois

de um lado a razão iluminista emancipou o indivíduo, ao dissolver o dogmatismo religioso e a superstição, de outro, com seu caráter instrumental, ela acabou colocando os homens em constante tensão e luta contra a natureza exterior e interior e dos homens entre si.

Esse momento segue uma lógica mercantil, em que ciência e trabalho alienam o homem moderno, que para obter sucesso renuncia a si mesmo enquanto ser humano. Outra contradição apontada por Cardoso (2003:89) são os fatos ocorridos no território americano: escravidão e violência contra negros e o massacre indígena, juntamente com a imposição da cultura branca européia a esses povos.

Como explicação desses fatos, devemos salientar que as idéias de tolerância e liberdade clamadas naquela época foram elaboradas aos moldes europeus e assim, as outras culturas foram julgadas a partir de parâmetros do eurocentrismo. Segundo a visão do colonizador europeu, os povos americanos e negros faziam parte de uma cultura primitiva. Assim, deveriam ser civilizados mesmo contra vontade, pois não possuíam vontade racional, livre a autônoma.

Com o renascimento e o desenvolvimento do iluminismo e das idéias racionalistas, formou-se no mundo ocidental um paradigma cultural de ser humano que era o do homem (masculino), branco, adulto, europeu ocidental, cristão, culto, racional e materialmente desenvolvido. “Encontra-se aí a raiz de grande parte dos preconceitos em relação à mulher, ao homossexual, ao negro, ao índio, à criança, ao velho, aos imigrantes, aos membros de religiões não cristãs, aos incultos, aos pobres etc.(Cardoso, 2003:15). Apesar das constantes discussões acerca da diversidade cultural e da aceitação às diferenças, esse paradigma de ser humano“desenvolvido” persiste até hoje.

No mundo atual, a luta pela sobrevivência e a concorrência no mercado de trabalho, juntamente com a ideologia de valorização da cultura nacional, fez ressurgir na Europa uma nova era de intolerância diante dos movimentos migratórios de trabalhadores de países periféricos.

Desse modo, no final do século XX, incentivado por ações da Unesco, ressurgiu o debate sobre a intolerância no mundo todo. Entre 1994 e 1995 foram realizadas sete grandes conferências internacionais sobre o tema. Nesses debates a intolerância ganhou novas definições e contextualizações. Os diversos participantes dessas conferências, no entanto, concordaram ser necessária a educação para a tolerância.

Diversos intelectuais como Marcuse (1970:89), Bobbio (1992:110/111) e Cardoso (2003:14) contrapõem uma definição positiva de tolerância a uma definição negativa desse conceito. Bobbio (1992:110/111) salienta ainda que o conceito oposto intolerância também tem dois significados, negativo e positivo e que tolerância em sentido positivo se opõe a intolerância em sentido negativo e vice-versa.

Assim, seguindo esses conceitos, tolerância pode significar: 1. aceitar o outro, o diferente; ter consciência da alteridade (tolerância positiva) 2. indulgência culposa, condescendência com o mal por preguiça ou cegueira de valores (tolerância negativa). E intolerância : 1. severidade, rigor, firmez a (intolerância positiva) 2. indevida exclusão do diferente (intolerância negativa).

Ao utilizarmos livremente esses conceitos, referimos à tolerância em sentido positivo e à intolerância em sentido negativo. No entanto, nas sociedades democráticas, discute-se os limites da tolerância, ou seja, o que deve ser permitido e o que deve ser vetado, sem que isso seja autoritarismo. Para Marcuse (1970:113) a suspensão do direito de expressão apenas se justificaria se a sociedade estiver em perigo extremo, porém, o que define uma sociedade em perigo também são critérios subjetivos e questionáveis.

Bobbio (1992:213) e Rounet (2003:11) pregam a não tolerância com os intolerantes. Este ainda afirma que não devemos aceitar passivamente o inaceitável, como as guerras, a violência urbana das grandes cidades, a miséria dos países de terceiro mundo, entre outros.

Muitas vezes, o uso dos termos intolerância e preconceito é feito indiscriminadamente como se esses verbetes fossem sinônimos, pois esses dois termos têm em comum a não aceitação do outro, do diferente. Leite (2008), no entanto, com base nas definições de tolerância e intolerância dos filósofos Voltaire (1994[1764]) e Bobbio (1992), aponta como principal diferença entre os verbetes o fato do traço semântico mais forte das definições de intolerância ser um comportamento, uma reação explícita a uma idéia ou opinião. Já o preconceito, ao contrário, pode ser uma idéia, que jamais se revele. Desse modo, ele não leva o sujeito à construção de um discurso acusatório sobre a diferença.

Assim, podemos dizer que o preconceito “não tem origem na crítica, mas na tradição, no costume ou autoridade” (LEITE, 2008) e “pode construí-se sobre o que nem foi pensado, mas assimilado culturalmente” (LEITE, 2008) e “a intolerância, por sua vez, nasce, necessariamente, de julgamentos, de contrários e se manifesta discursivamente. É resultado da crítica e do julgamento de idéias, valores, opiniões e práticas.” (LEITE,2008) Levando esses conceitos para o âmbito da linguagem, Leite (2008) diz ainda que o preconceito lingüístico: é a discriminação silenciosa e sorrateira que o indivíduo pode ter em relação à linguagem do outro, é um não-gostar, um achar feio ou errado um uso (ou uma língua), sem a discussão do contrário, daquilo que poderia configurar o que viesse a ser bonito ou correto. É um não-gostar sem ação discursiva clara sobre o fato rejeitado. A intolerância, ao contrário, é ruidosa, explícita, porque, necessariamente, se manifesta por um discurso metalingüístico, calcado em dicotomias, em contrários, como, por exemplo, tradição x modernidade, saber x não-saber e outras congêneres.”

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É isso!


Fonte:
Iara Lucia Marcondes : “OS COSULTÓRIOS GRAMATICAIS: UM ESTUDO DE PRECOCEITO E ITOLERÂCIA LIGÜÍSTICOS”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Profa. Dra. Marli Quadros Leite). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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