A Criminologia no Brasil

[...] uma história da Criminologia no Brasil ainda está por ser desenvolvida, história essa que ressalta tanto o papel de determinados setores das elites nacionais na formulação e direcionamento das políticas criminais quanto os aspectos discriminatórios dessas mesmas políticas, que não apenas se voltaram para as assim chamadas classes perigosas, mas que igualmente criaram e fizeram circular concepções e estigmas que impregnaram profundamente o senso comum e as práticas dos operadores do Direito e dos agentes de controle social no Brasil ao longo de quase um século (Marcos César Alvarez).

As teorias racialistas encontraram na sociedade brasileira, principalmente no pensmento jurídico e médico, fortes correntes difusoras. Há, sobre os primeiros a incorporar a antropologia criminal de Lombroso no Brasil, algumas contradições que se destacam.

Alguns, afirma Alvarez (2002), consideram João Vieira de Araújo (1844-1922), professor da Faculdade de Direito do Recife, como o primeiro intelectual a utilizar, em suas aulas, os princípios da criminologia e a propor uma reformulação do código penal brasileiro; outros, atribuem a Tobias Barreto o pioneirismo, em razão aos estudos sobre as categorias de responsabilidade penal

Assim, de uma forma ou de outra, a criminologia foi trazida, para o Brasil, por uma gama variada de intelectuais, que contribuíram para consolidar no país não apenas idéias, mas institutos que viabilizassem seus discursos e práticas, como o Instituto Disciplinar para Menores Abandonados e Delinqüentes (1902) e o Gabinete de Identificação e Estatística da Polícia Civil do Distrito Federal (1902), que, em 1941, receberia o nome de Instituto de Identificação Félix Pacheco.

Deste modo, a criminologia e demais teorias foram adotadas como perspectivas que, mesmo superadas em diversas regiões da Europa, continuavam em posições de prestígio no Brasil. Em resumo, por meio da obra de Lombroso e seus interlocutores brasileiros, a criminologia, como doutrina de convergência entre a medicina e o direito, abriu espaço para a análise do “indivíduo criminoso”, sua classificação e sua identificação. Nas palavras de Marcos César Alvarez:

[...] o diálogo que se estabeleceu na época entre saber médico e jurídico, não só porque os médicos estão bastante envolvidos nos debates a respeito das questões jurídicos penais, mas também porque a criminologia representou efetivamente um espaço de convergência entre saber médico e saber jurídico ao longo de toda a Primeira República, mesmo que com isso não tenham sido eliminados os pontos de tensão e conflito existentes entre essas duas categorias profissionais. (ALVAREZ, 1996, p. 30)

As teorias criminológicas buscavam responder a determinadas necessidades que
apareciam diante dessa camada de intelectuais. Dentre os fatos que surgiam, encontravam-se a necessidade de controle sobre a população de negros libertos que seguiam em direção aos centros urbanos, aos núcleos negros de capoeira, aos diversos movimentos sociais e aos bairros que, ao aumentar sua população encontravam-se sem controle e sem padrões de higienização. “Assim, o antigo medo das elites diante dos escravos será substituído pela grande inquietação em face da pobreza urbana nas principais metrópoles do país” (ALVAREZ, 2000).

Se, como afirma Bourdieu (2002), os indivíduos em sociedades particulares e, em
momentos históricos específicos, criam ou identificam problemas e fatos apresentados como dignos de estudos, artigos e atenções não apenas da intelectualidade, mas de toda a população, podemos afirmar, em consonância, que a criminologia no Brasil vem responder a essas diversas conotações sobre a realidade nacional de então.

O conceito de criminoso nato, trazido pela criminologia, portanto, sofisticava a idéia de um indivíduo condizente, anatomicamente, à criminalidade, à marginalidade e ao banditismo. Os indivíduos passavam a ser julgados não mais pelos seus atos transgressores à lei e à ordem instituída, mas por suas condições anatômicas e por sua suposta imaturidade intelectual.

A partir de sua prática e do seu discurso, a criminologia identificava aquele com
potencialidades para a desordem e para a degeneração, no intuito de adestrar e controlar o corpo e a “alma criminosa”. Àqueles com “alma criminosa” competiria uma penalização distinta, de acordo com suas particularidades raciais, históricas e geográficas, não podendo a igualdade jurídica sobrepor-se às suas condições biológicas e hereditárias.

Os desdobramentos da criminologia avançavam sobre o Brasil, destinados a consolidar uma espécie de micro-poder disciplinar sobre os considerados socialmente perigosos, invadindo materialmente a realidade dos indivíduos.

Este poder, que se verifica na possibilidade de identificação e, consequentemente, na contenção, é exercido fora do âmbito estatal, mas institucionalizado pela academia nacional. O Estado, aqui, como é entendido por Foucault (2000), é visto como um instrumento que, a partir de estímulos financeiros, corrobora para a formação de um campo de saber destinado ao controle social.

Portanto, a criminologia ou antropologia criminal, amplamente confundidas e aglutinadas uma a outra, dentro do pensamento social, se fundamentou como saber destinado ao controle social dos considerados como potencialmente criminosos e como mecanismo capaz de justificar ações desempenhadas por órgãos nascidos do próprio Estado, como fontes de repressão social: polícias, milícias, guardas, força pública, etc.

Espalhando-se por quase todo país, à medida que novos setores sociais se desenvolviam como potencialidades de interferências na realidade social e na ordem estabelecida, na Nova República, essas idéias ganhavam força e nova aplicabilidade.

Em outros termos, a Criminologia aparece em dimensões mais amplas quando as elites examinam a possibilidade de acesso à cidadania e a participação na vida pública e política de um setor popular, até então, marginalizado pelo processo de escravização (ALVAREZ, 2005). Para Bourdieu (2000), o poder é caracterizado pelas relações de força entre as posições sociais. Como, em geral, as classes dominantes detêm maior força social e política, que garante o monopólio legítimo de poder, a condição pública da maioria da população era evidentemente limitada.

As elites republicanas, desde o princípio, manifestam grande desconfiança diante da possibilidade de a maior parte da população contribuir positivamente para a construção da nova ordem política e social. O novo regime republicano, longe de permitir uma real expansão da participação política, irá se caracterizar pelo seu aspecto não democrático,
pela restrição da participação popular na vida política (ALVAREZ, 2000, p. 693).

Com apoio em Bourdieu (2001), podemos afirmar que, dentro das lutas no campo
intelectual, o que está em jogo é o poder sobre o uso de categorias particulares e de sinais que definem a visão legítima sobre o mundo natural e social. O que ocorre aos intelectuais brasileiros do período é uma apropriação de conceitos e categorias que permitem explicar e justificar a realidade social. Assim, a apreensão simbólica das categorias interpretativas passa a atribuir, para esses intelectuais, um status de poder e domínio científico, garantindo a manutenção da ordem, da propriedade privada, do sistema político, da hierarquia social, da distribuição da cidadania, entre outros. Um verdadeiro habitus (Bourdieu, 2001), que se constituiu, ao longo das últimas décadas do século XIX. e permanece na primeira metade do século XX, enraizando-se em diversos segmentos sociais.

A noção de habitus é definida, em Bourdieu (2001), como um conhecimento adquirido e também um haver, um capital, que indica a disposição incorporada, quase postural do agente envolvido na situação. De maneira bem simples, o conceito de habitus pode ser entendido como a reprodução ativa de interpretações e conceitos elaborados no passado.

Desse modo, os argumentos da antropologia criminal ao serem incorporados pela
intelectualidade, de modo específico e seletivo, resultaram em habitus. De outra maneira, os conceitos da antropologia criminal converteram-se a uma forma comum, a um capital adquirido e compartilhado para identificar tipos sociais que carregariam a degeneração e a predisposição natural ao crime, vista em seu corpo, por meio das marcas raciais.

O caráter simplista e reducionista dos argumentos, tanto da antropologia criminal como da criminologia, podem ser considerados os principais fatores da grande aceitação das teorias no país (ALVAREZ, 2005). A falta de críticas rigorosas às teorias, até meados da segunda metade do século XX, deve-se às características dos intelectuais do período, que seguiam seus mestres, sem questionamento, em um sistema de proteção que garantia benefícios e cargos especiais. Uma nova forma de pensar, que hoje, se torna um velho habitus de pensar, uma vez que tais pressupostos continuam a povoar o imaginário de diversos setores da sociedade
brasileira, principalmente as elites e as classes consideradas como os especialistas em questões penais e criminais.

Assim, os discursos se apropriam de categorias específicas, legitimadas por um caráter científico e utilizadas para identificar parte significativa da população. Ao deter o significado simbólico dessas categorias, os discursos dos especialistas são aceitos e difundidos, garantindo o poder nas mãos de poucos através de um saber institucionalizado. Ou seja, o estabelecimento de um discurso que legítima a “desigualdade” e fundamenta uma nova forma de imaginar o que chamamos aqui de identidade bandida (TERRA, 2008). A idéia de identidade bandida tem a finalidade de definir a identidade social construída sobre a figura dos negros, a partir da difusão da antropologia criminal e da criminologia no Brasil.

Posto isso, infere-se que a noção assinala uma identidade criada por um grupo intelectual que, a partir de supostas características biológicas, psicológicas e morais, designaria um outro grupo. Dessa forma, a identidade bandida é colocada para um grupo social por outros agentes externos a esse mesmo grupo e reconhecida por meio de caracteres físicos, em especial, pela a cor da pele.

Com base nos estudos de Foucault, podemos afirmar que a criminologia emerge, nas sociedades modernas e capitalistas, como um novo saber indicado para a análise e para a identificação dos sujeitos sociais, uma vez que se trata de uma disciplina voltada para uma prevenção da criminalidade e para uma antecipação do “criminoso”.

Nesse sentido, a criminologia individualiza os corpos no espaço social, exercendo a vigilância e o controle sobre determinada parcela da população. O sujeito, hipoteticamente propenso à criminalidade e identificado através do corpo, como sendo mestiço e negro, é produto do poder e do saber criminológicos. Nas palavras de Alvarez (2000), “[...] a idéia de que o objeto das ações jurídica e penal deve ser não o crime, mas o criminoso, considerado como um indivíduo anormal”.

O que se verifica, portanto, é uma constante investida da intelectualidade sobre os
corpos dos pauperizados. Com isso, se por um lado, a criminologia e a antropologia criminal permitiam identificar e marcar os corpos, por outro lado, permitiam, também, um conjunto de práticas, programas e ações que objetivavam conter não a ação do indivíduo, mas o próprio indivíduo culpabilizado antecipadamente.

O objetivo das elites e dos intelectuais não era a reabilitação social das camadas
populares, por intermédio de institutos ou de programas assistenciais. Mas, sim, suas finalidades correspondiam, objetivamente, a prevenção social e biológica do crime, a partir da identificação física do criminoso, ou como queriam alguns autores da época, como Silvio Romero, a extinção das “raças inferiores” por meio de processos de branqueamento.

Segundo Michel Foucault (2000), o objetivo era agir, de uma determinada maneira, para que se obtivessem estados globais de equilíbrio através de processos biológicos do homem-espécie, com o intuito de assegurar um certo tipo de regulamentação.

De uma tecnologia centrada na individualização e na técnica disciplinar dos corpos, a criminologia passa a regular e a prevenir a vida social, o corpo social, centrando seus cuidados, concomitantemente, no indivíduo e na vida. Com o intuito de regular o corpo social, ameaçado pelas “desigualdades” biológicas e sociais, surge uma tecnologia que visa a segurança do conjunto em relação a seus possíveis perigos internos.

O desafio contido em todas essas discussões era tratar heterogeneamente os desiguais, conforme suas desigualdades e não estender a igualdade jurídico-penal e a cidadania para o conjunto da população (BARBOSA, 1999).

Neste sentido, quem irá proporcionar um impulso à criminologia, enquanto disciplina convergente entre os saberes médico e jurídico, além de discussões fervorosas que visavam uma especialização do direito penal, conforme as características biológicas, históricas, climáticas de cada acusado, será o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues.”

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É isso!

Fonte:
Lívia Maria Terra: “Negro suspeito, negro bandido: Um estudo sobre o discurso policial”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Sociologia. Exemplar apresentado para exame de defesa de dissertação. Linha de pesquisa: Gênero, etnia e saúde Orientador: Dagoberto José Fonseca). UNESP - Universidade Estadual Paulista. Araraquara, 2010.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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