Descoberta no interior de Minas: um vetor, um parasito e uma nova doença tropical (1908-09)
"Em junho de 1907, Chagas foi designado para combater uma epidemia de malária que grassava na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora, e paralisava o projeto que pretendia integrar o sul ao norte do país com o prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), do Rio até Belém do Pará. No município de Lassance, onde se construía uma estação da ferrovia, ele instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Enquanto coordenava as atividades de profilaxia, costumava observar e examinar espécies da fauna brasileira, em função de seu crescente interesse pela entomologia e pela protozoologia. Em 1908, ao examinar o sangue de um sagüi, identificou um protozoário do gênero Trypanosoma, que batizou de Trypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco.
Naquele período, o estudo dos tripanossomas vinha atraindo a atenção dos pesquisadores no campo da medicina tropical. Do ponto de vista médico-sanitário, a questão estava na ordem do dia desde que se comprovara que, além de doenças animais, tais protozoários causavam patologias humanas, como a tripanossomíase africana. Conhecida como doença do sono ou letargia dos pretos, esta enfermidade espalhou-se por aquele continente em uma grande epidemia a partir de 1901, gerando preocupação entre os países europeus que tinham colônias nas regiões afetadas. O tema atraía atenção também pelas questões específicas que trazia às teorias sobre os ciclos evolutivos dos protozoários. Lutz, que havia estudado tripanossomas em laboratórios europeus, começou a pesquisá-los no Brasil em 1907, ao ser comissionado pelo governo do Pará para investigar uma enfermidade de cavalos na ilha de Marajó, localmente conhecida como “mal de cadeiras”, que era causada por um tripanossoma e transmitida por uma mosca.
O assunto era particularmente importante para os protozoologistas alemães seguidores de Schaudinn, entre os quais Prowazek, que, presente em Manguinhos desde julho de 1908, acompanhou de perto as descobertas feitas por Chagas neste terreno. O estudo dos tripanossomas foi o caminho específico, segundo Magali Romero Sá, pelo qual a protozoologia alemã exerceu um papel decisivo na organização e consolidação da medicina tropical em Manguinhos. Prowazek, que era chefe do laboratório de protozoários do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo, tinha experiência no estudo destes protozoários, a partir dos trabalhos que realizara com Schaudinn (que em 1904 havia publicado importante trabalho sobre tripanossomas de pássaros) e dos estudos que ele próprio produzira em 1905. Ao chegar em Manguinhos, trouxe, para experiências, alguns animais infectados por um tripanossoma patogênico para cavalos. Naquela ocasião, comunicou aos colegas brasileiros que acabara de ser anunciado na Alemanha a descoberta, num macaco brasileiro exibido num circo, de uma nova espécie de tripanossoma. Assim, é muito provável que Chagas já tivesse sua atenção particularmente direcionada a este assunto ao realizar as pesquisas que o levariam, em Lassance, ao encontro não apenas do minasense, mas de um outro tripanossoma, identificado logo depois num percevejo e que viria a compor a descoberta que o consagraria como cientista.
O início da seqüência que levaria a este segundo tripanossoma revela outro aspecto do olhar orientado de Chagas: além da busca de parasitos, o interesse por artrópodes que pudessem servir-lhes de vetores. Numa viagem a Pirapora, em que Chagas e Belisário Penna pernoitaram, junto com os engenheiros da ferrovia, num rancho às margens do riacho Buriti Pequeno, o chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem Cantarino Mota, mostrou-lhes um inseto sugador de sangue muito comum na região, conhecido vulgarmente como barbeiro, pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormiam (ver Anexo, Figura 3). O percevejo era abundante “nas habitações pobres, nas choupanas de paredes são rebocadas e cobertas de capim”, atacando o homem à noite, “depois de apagadas as luzes, [e] ocultando-se, durante o dia, nas frestas das paredes, nas coberturas das casas, em todos os esconderijos, enfim, onde possa encontrar guarida”. Aquele tipo de inseto nunca tinha chamado a atenção dos cientistas como possível vetor de doenças, pois a grande maioria das espécies da família dos Reduviidae se alimenta de plantas (ver Anexo, figura 4).
Sabendo da “importância de insetos sugadores de sangue em patologia humana e veterinária, como transmissores de espécies mórbidas parasitárias” aos homens e aos animais, Chagas examinou alguns barbeiros e encontrou, em seu intestino, formas flageladas de um protozoário, com certas características que o fizeram pensar que poderia tratar-se de “um parasito natural do inseto ou [...] uma fase evolutiva de um tripanossoma de vertebrado”.
Quanto a esta segunda hipótese, a primeira suspeita foi a de que poderia ser o próprio Trypanosoma minasense, sendo o barbeiro, portanto, o vetor que o transmitiria aos sagüis. Por não dispor em Lassance de condições experimentais para elucidar a questão (uma vez que os macacos da região estavam contaminados pelo minasense), Chagas enviou a Manguinhos alguns daqueles insetos. Oswaldo Cruz os fez picarem sagüis criados em laboratórios (e portanto livres de qualquer infecção). Cerca de um mês depois, encontrou formas de tripanossoma no sangue de um dos animais, que havia adoecido. Voltando ao Instituto, Chagas constatou então que o protozoário não era o minasense, mas uma nova espécie de tripanossoma, à qual batizou d Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre (ver Anexo, Figura 5). A nota anunciando esta descoberta foi redigida em Manguinhos em 17 de dezembro de 1908 e publicada nos Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene, revista do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo.
Sob a orientação de Prowazek, Chagas iniciou estudos sistemáticos sobre o ciclo evolutivo do novo parasito, que, em cumprimento a dois postulados de Koch, mostrou-se desde logo capaz de infectar experimentalmente cães, cobaias e coelhos e de ser cultivado em agar-sangue. O barbeiro, por sua vez, passou a ser minuciosamente investigado por Arthur Neiva. Em busca de outros hospedeiros vertebrados do T. cruzi e suspeitando que o homem pudesse ser um deles (hipótese reforçada por seus conhecimentos sobre a malária, também transmitida por um inseto hematófago domiciliário e causada por um hematozoário), Chagas retornou a Lassance.
“Dada a preferência do conorhinus pelo sangue humano, suspeitamos, de acordo com a teoria da evolução filogenética dos hemo-flagelados, pudesse ser parasito do homem o tripanossoma encontrado no aparelho digestivo daquele hematófago. Orientamos dest’arte nossas pesquisas [...]”.
Com base nestas hipóteses, Chagas empreendeu exames sistemáticos de sangue nos moradores de casas onde houvesse barbeiros, além de procurar “a existência de elementos mórbidos característicos de tripanossomíases”. Ao examinar animais domésticos, verificou a presença do T. cruzi no sangue de um gato. Depois de várias tentativas sem sucesso, no dia 14 de abril de 1909, finalmente encontrou o parasito no sangue de uma criança febril. Em nota prévia escrita em Lassance no dia seguinte e enviada ao Brasil Médico, uma das principais e mais difundidas revistas médicas do país na época, anunciou sua descoberta:
“Num doente febricitante, profundamente anemiado e com edemas, com plêiades ganglionares engurgitadas, encontramos tripanossomas, cuja morfologia é idêntica à do Trypanosoma cruzi. Na ausência de qualquer outra etiologia para os sintomas mórbidos observados e ainda de acordo com a experimentação anterior em animais, julgamos tratar-se de uma tripanossomíase humana, moléstia ocasionada pelo Trypanosoma cruzi, cujo transmissor é o conorrhinus sanguissuga (?) Berenice, uma menina de dois anos, era o primeiro caso do que seria considerada a partir de então uma nova doença humana. O fato seria imediatamente divulgado também junto à comunidade científica internacional, mediante publicações nos Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene e no Bulletin de la Société de Pathologie Éxotique.
Aos 22 de abril, ao mesmo tempo em que o Brasil Médico trazia em suas páginas a descoberta feita em Lassance, ela foi comunicada em sessão da ANM por Oswaldo Cruz, que leu um trabalho escrito por Chagas no mesmo dia da nota enviada àquela revista. Com maior detalhamento do que fizera naquela nota, neste texto são apresentados uma síntese do processo da descoberta, informações sobre os hábitos do inseto transmissor (“vorazmente hematófago, atacando como um verdadeiro flagelo os moradores, impedindo e perturbando o sono”), dados clínicos sumários sobre a nova entidade mórbida (“que o vulgo denomina ‘opilação’ e que nada tem que ver clinicamente com a anquilostomíase”) e as principais características do novo tripanossoma, que, destacava Chagas, “apresenta pontos inteiramente novos em seu ciclo evolutivo”.
Na imprensa, o episódio foi bastante noticiado e, em alguns casos, a exaltação de “um dos mais belos ornamentos do Instituto Oswaldo Cruz” vinha acompanhada de algumas imprecisões na tentativa de “traduzir”, para os leigos, o significado da descoberta face às teorias científicas da medicina tropical. Assim, em matéria da Gazeta de Notícias, afirmando que os estudos de Chagas vinham “revolucionar a ciência médica no que diz respeito aos tripanossomas”, o redator salientava que “as idéias de Mansen [sic], Schaudinn e outros patologistas eminentes ruíram por terra”. Depois dos trabalhos anunciando a descoberta, Chagas publicou, em agosto de 1909, no primeiro volume das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, um extenso trabalho sobre o novo parasito e seu ciclo evolutivo.
A descoberta e os estudos em Lassance tiveram um impacto imediato na carreira científica de Chagas, que alcançou grande proeminência no mundo científico, com efeitos diretos em sua inserção na vida institucional de Manguinhos. Em março de 1910, Oswaldo Cruz abriu concurso para preencher a vaga de “chefe de serviço” aberta com a ida de Rocha Lima para a Alemanha. A seleção seria feita com base no mérito científico, auferido pelas publicações dos candidatos, e em, segundo lugar, pelo tempo de serviço. Este foi um evento de grande importância para a instituição. Segundo Benchimol e Teixeira, “o novo ocupante do cargo já era encarado como o mais provável candidato à sucessão de Oswaldo Cruz”. Chagas obteve a primeira colocação e os trabalhos que havia publicado sobre a nova doença tiveram peso decisivo para isso. A partir de então, ele de fato iria conquistar cada vez mais poder nas estruturas internas de Manguinhos.
Em 26 de outubro daquele ano, após publicar os primeiros resultados de seus estudos clínicos sobre a doença, Chagas foi admitido solenemente como membro titular da ANM, onde proferiu uma conferência detalhando tais estudos. Nos anos seguintes, ele seguiria apresentando suas pesquisas em eventos e instituições importantes do campo médico brasileiro, sempre com grande repercussão na imprensa. Em julho de 1911, realizou conferência na Associação Médico-Cirúrgica de Minas Gerais e, em agosto, retornou à ANM para outra apresentação. Em 1912, além de conferência na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, a classe médica mineira tornou a ouvi-lo, por ocasião do VII Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia. Foi nestas comunicações, publicadas em seguida em revistas médicas, que Chagas apresentou os principais enunciados sobre o quadro clínico e os aspectos sociais da nova entidade mórbida.
Em meados de 1911, um evento marcou a divulgação da descoberta e da nova doença no cenário científico internacional. No pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene e Demografia (realizada em Dresden, Alemanha, e que documentava os trabalhos do Instituto Butantan, a campanha contra a febre amarela de Oswaldo Cruz na capital federal e as pesquisas e coleções científicas do IOC), a doença de Chagas teve grande destaque e foi o tema que mais despertou a atenção do público. Vasto material sobre o assunto foi exibido, incluindo apresentações cinematográficas. Tal projeção constitui mais uma evidência da centralidade que o tema assumia em Manguinhos. O próprio Oswaldo Cruz registrou, na época, seu entusiasmo quanto à repercussão do trabalho de seu discípulo:
“Com efeito, à Exposição tem ido uma verdadeira romaria de sábios de toda a Alemanha. [...] ficaram todos encantados pelos estudos de Chagas. Quando no cinematógrafo viram as fitas dos doentes de Chagas, não se puderam conter e irromperam em aplausos e vivas”.
Depois do sucesso em Dresden, o ano de 1912 seria o momento de consagração de Chagas. Em junho, foi agraciado com uma importante distinção no campo científico internacional, o Prêmio Schaudinn, concedido de quatro em quatro anos pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo ao melhor trabalho em protozoologia. A comissão formada para a concessão do prêmio, da qual fazia parte Oswaldo Cruz, era composta pelos mais importantes nomes da microbiologia e da medicina tropical, como Koch (falecido durante o processo do julgamento), Manson, Ross, Laveran, Metchnikoff, Roux, Golgi e Grassi.
Graças à repercussão da descoberta e dos estudos de Chagas, Oswaldo Cruz obteve, junto ao governo federal, verbas especiais para equipar um pequeno hospital em Lassance, a fim de sediar os estudos clínicos sobre a nova doença, e para dar início, em Manguinhos, à construção de um hospital destinado às pesquisas e acompanhamento dos casos clínicos identificados no norte de Minas Gerais e em outras regiões do país. Sob a liderança de Chagas e com a colaboração de vários pesquisadores do IOC, a nova tripanossomíase passou, desde 1909, a ser estudada em seus vários aspectos, como as características biológicas do vetor, do parasito e de seu ciclo evolutivo, o quadro clínico e a patogenia (evolução) da infecção, suas características epidemiológicas, os mecanismos de transmissão e as técnicas de diagnóstico."
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É isso!
Fonte:
SIMONE PETRAGLIA KROPF: “Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação - 1909-1962." (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social. orientador: Prof . Dr. André Luiz Vieira de Campos). Universidade Federal Fluminense.Niterói, 2006.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
"Em junho de 1907, Chagas foi designado para combater uma epidemia de malária que grassava na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora, e paralisava o projeto que pretendia integrar o sul ao norte do país com o prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), do Rio até Belém do Pará. No município de Lassance, onde se construía uma estação da ferrovia, ele instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Enquanto coordenava as atividades de profilaxia, costumava observar e examinar espécies da fauna brasileira, em função de seu crescente interesse pela entomologia e pela protozoologia. Em 1908, ao examinar o sangue de um sagüi, identificou um protozoário do gênero Trypanosoma, que batizou de Trypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco.
Naquele período, o estudo dos tripanossomas vinha atraindo a atenção dos pesquisadores no campo da medicina tropical. Do ponto de vista médico-sanitário, a questão estava na ordem do dia desde que se comprovara que, além de doenças animais, tais protozoários causavam patologias humanas, como a tripanossomíase africana. Conhecida como doença do sono ou letargia dos pretos, esta enfermidade espalhou-se por aquele continente em uma grande epidemia a partir de 1901, gerando preocupação entre os países europeus que tinham colônias nas regiões afetadas. O tema atraía atenção também pelas questões específicas que trazia às teorias sobre os ciclos evolutivos dos protozoários. Lutz, que havia estudado tripanossomas em laboratórios europeus, começou a pesquisá-los no Brasil em 1907, ao ser comissionado pelo governo do Pará para investigar uma enfermidade de cavalos na ilha de Marajó, localmente conhecida como “mal de cadeiras”, que era causada por um tripanossoma e transmitida por uma mosca.
O assunto era particularmente importante para os protozoologistas alemães seguidores de Schaudinn, entre os quais Prowazek, que, presente em Manguinhos desde julho de 1908, acompanhou de perto as descobertas feitas por Chagas neste terreno. O estudo dos tripanossomas foi o caminho específico, segundo Magali Romero Sá, pelo qual a protozoologia alemã exerceu um papel decisivo na organização e consolidação da medicina tropical em Manguinhos. Prowazek, que era chefe do laboratório de protozoários do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo, tinha experiência no estudo destes protozoários, a partir dos trabalhos que realizara com Schaudinn (que em 1904 havia publicado importante trabalho sobre tripanossomas de pássaros) e dos estudos que ele próprio produzira em 1905. Ao chegar em Manguinhos, trouxe, para experiências, alguns animais infectados por um tripanossoma patogênico para cavalos. Naquela ocasião, comunicou aos colegas brasileiros que acabara de ser anunciado na Alemanha a descoberta, num macaco brasileiro exibido num circo, de uma nova espécie de tripanossoma. Assim, é muito provável que Chagas já tivesse sua atenção particularmente direcionada a este assunto ao realizar as pesquisas que o levariam, em Lassance, ao encontro não apenas do minasense, mas de um outro tripanossoma, identificado logo depois num percevejo e que viria a compor a descoberta que o consagraria como cientista.
O início da seqüência que levaria a este segundo tripanossoma revela outro aspecto do olhar orientado de Chagas: além da busca de parasitos, o interesse por artrópodes que pudessem servir-lhes de vetores. Numa viagem a Pirapora, em que Chagas e Belisário Penna pernoitaram, junto com os engenheiros da ferrovia, num rancho às margens do riacho Buriti Pequeno, o chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem Cantarino Mota, mostrou-lhes um inseto sugador de sangue muito comum na região, conhecido vulgarmente como barbeiro, pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormiam (ver Anexo, Figura 3). O percevejo era abundante “nas habitações pobres, nas choupanas de paredes são rebocadas e cobertas de capim”, atacando o homem à noite, “depois de apagadas as luzes, [e] ocultando-se, durante o dia, nas frestas das paredes, nas coberturas das casas, em todos os esconderijos, enfim, onde possa encontrar guarida”. Aquele tipo de inseto nunca tinha chamado a atenção dos cientistas como possível vetor de doenças, pois a grande maioria das espécies da família dos Reduviidae se alimenta de plantas (ver Anexo, figura 4).
Sabendo da “importância de insetos sugadores de sangue em patologia humana e veterinária, como transmissores de espécies mórbidas parasitárias” aos homens e aos animais, Chagas examinou alguns barbeiros e encontrou, em seu intestino, formas flageladas de um protozoário, com certas características que o fizeram pensar que poderia tratar-se de “um parasito natural do inseto ou [...] uma fase evolutiva de um tripanossoma de vertebrado”.
Quanto a esta segunda hipótese, a primeira suspeita foi a de que poderia ser o próprio Trypanosoma minasense, sendo o barbeiro, portanto, o vetor que o transmitiria aos sagüis. Por não dispor em Lassance de condições experimentais para elucidar a questão (uma vez que os macacos da região estavam contaminados pelo minasense), Chagas enviou a Manguinhos alguns daqueles insetos. Oswaldo Cruz os fez picarem sagüis criados em laboratórios (e portanto livres de qualquer infecção). Cerca de um mês depois, encontrou formas de tripanossoma no sangue de um dos animais, que havia adoecido. Voltando ao Instituto, Chagas constatou então que o protozoário não era o minasense, mas uma nova espécie de tripanossoma, à qual batizou d Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre (ver Anexo, Figura 5). A nota anunciando esta descoberta foi redigida em Manguinhos em 17 de dezembro de 1908 e publicada nos Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene, revista do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo.
Sob a orientação de Prowazek, Chagas iniciou estudos sistemáticos sobre o ciclo evolutivo do novo parasito, que, em cumprimento a dois postulados de Koch, mostrou-se desde logo capaz de infectar experimentalmente cães, cobaias e coelhos e de ser cultivado em agar-sangue. O barbeiro, por sua vez, passou a ser minuciosamente investigado por Arthur Neiva. Em busca de outros hospedeiros vertebrados do T. cruzi e suspeitando que o homem pudesse ser um deles (hipótese reforçada por seus conhecimentos sobre a malária, também transmitida por um inseto hematófago domiciliário e causada por um hematozoário), Chagas retornou a Lassance.
“Dada a preferência do conorhinus pelo sangue humano, suspeitamos, de acordo com a teoria da evolução filogenética dos hemo-flagelados, pudesse ser parasito do homem o tripanossoma encontrado no aparelho digestivo daquele hematófago. Orientamos dest’arte nossas pesquisas [...]”.
Com base nestas hipóteses, Chagas empreendeu exames sistemáticos de sangue nos moradores de casas onde houvesse barbeiros, além de procurar “a existência de elementos mórbidos característicos de tripanossomíases”. Ao examinar animais domésticos, verificou a presença do T. cruzi no sangue de um gato. Depois de várias tentativas sem sucesso, no dia 14 de abril de 1909, finalmente encontrou o parasito no sangue de uma criança febril. Em nota prévia escrita em Lassance no dia seguinte e enviada ao Brasil Médico, uma das principais e mais difundidas revistas médicas do país na época, anunciou sua descoberta:
“Num doente febricitante, profundamente anemiado e com edemas, com plêiades ganglionares engurgitadas, encontramos tripanossomas, cuja morfologia é idêntica à do Trypanosoma cruzi. Na ausência de qualquer outra etiologia para os sintomas mórbidos observados e ainda de acordo com a experimentação anterior em animais, julgamos tratar-se de uma tripanossomíase humana, moléstia ocasionada pelo Trypanosoma cruzi, cujo transmissor é o conorrhinus sanguissuga (?) Berenice, uma menina de dois anos, era o primeiro caso do que seria considerada a partir de então uma nova doença humana. O fato seria imediatamente divulgado também junto à comunidade científica internacional, mediante publicações nos Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene e no Bulletin de la Société de Pathologie Éxotique.
Aos 22 de abril, ao mesmo tempo em que o Brasil Médico trazia em suas páginas a descoberta feita em Lassance, ela foi comunicada em sessão da ANM por Oswaldo Cruz, que leu um trabalho escrito por Chagas no mesmo dia da nota enviada àquela revista. Com maior detalhamento do que fizera naquela nota, neste texto são apresentados uma síntese do processo da descoberta, informações sobre os hábitos do inseto transmissor (“vorazmente hematófago, atacando como um verdadeiro flagelo os moradores, impedindo e perturbando o sono”), dados clínicos sumários sobre a nova entidade mórbida (“que o vulgo denomina ‘opilação’ e que nada tem que ver clinicamente com a anquilostomíase”) e as principais características do novo tripanossoma, que, destacava Chagas, “apresenta pontos inteiramente novos em seu ciclo evolutivo”.
Na imprensa, o episódio foi bastante noticiado e, em alguns casos, a exaltação de “um dos mais belos ornamentos do Instituto Oswaldo Cruz” vinha acompanhada de algumas imprecisões na tentativa de “traduzir”, para os leigos, o significado da descoberta face às teorias científicas da medicina tropical. Assim, em matéria da Gazeta de Notícias, afirmando que os estudos de Chagas vinham “revolucionar a ciência médica no que diz respeito aos tripanossomas”, o redator salientava que “as idéias de Mansen [sic], Schaudinn e outros patologistas eminentes ruíram por terra”. Depois dos trabalhos anunciando a descoberta, Chagas publicou, em agosto de 1909, no primeiro volume das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, um extenso trabalho sobre o novo parasito e seu ciclo evolutivo.
A descoberta e os estudos em Lassance tiveram um impacto imediato na carreira científica de Chagas, que alcançou grande proeminência no mundo científico, com efeitos diretos em sua inserção na vida institucional de Manguinhos. Em março de 1910, Oswaldo Cruz abriu concurso para preencher a vaga de “chefe de serviço” aberta com a ida de Rocha Lima para a Alemanha. A seleção seria feita com base no mérito científico, auferido pelas publicações dos candidatos, e em, segundo lugar, pelo tempo de serviço. Este foi um evento de grande importância para a instituição. Segundo Benchimol e Teixeira, “o novo ocupante do cargo já era encarado como o mais provável candidato à sucessão de Oswaldo Cruz”. Chagas obteve a primeira colocação e os trabalhos que havia publicado sobre a nova doença tiveram peso decisivo para isso. A partir de então, ele de fato iria conquistar cada vez mais poder nas estruturas internas de Manguinhos.
Em 26 de outubro daquele ano, após publicar os primeiros resultados de seus estudos clínicos sobre a doença, Chagas foi admitido solenemente como membro titular da ANM, onde proferiu uma conferência detalhando tais estudos. Nos anos seguintes, ele seguiria apresentando suas pesquisas em eventos e instituições importantes do campo médico brasileiro, sempre com grande repercussão na imprensa. Em julho de 1911, realizou conferência na Associação Médico-Cirúrgica de Minas Gerais e, em agosto, retornou à ANM para outra apresentação. Em 1912, além de conferência na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, a classe médica mineira tornou a ouvi-lo, por ocasião do VII Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia. Foi nestas comunicações, publicadas em seguida em revistas médicas, que Chagas apresentou os principais enunciados sobre o quadro clínico e os aspectos sociais da nova entidade mórbida.
Em meados de 1911, um evento marcou a divulgação da descoberta e da nova doença no cenário científico internacional. No pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene e Demografia (realizada em Dresden, Alemanha, e que documentava os trabalhos do Instituto Butantan, a campanha contra a febre amarela de Oswaldo Cruz na capital federal e as pesquisas e coleções científicas do IOC), a doença de Chagas teve grande destaque e foi o tema que mais despertou a atenção do público. Vasto material sobre o assunto foi exibido, incluindo apresentações cinematográficas. Tal projeção constitui mais uma evidência da centralidade que o tema assumia em Manguinhos. O próprio Oswaldo Cruz registrou, na época, seu entusiasmo quanto à repercussão do trabalho de seu discípulo:
“Com efeito, à Exposição tem ido uma verdadeira romaria de sábios de toda a Alemanha. [...] ficaram todos encantados pelos estudos de Chagas. Quando no cinematógrafo viram as fitas dos doentes de Chagas, não se puderam conter e irromperam em aplausos e vivas”.
Depois do sucesso em Dresden, o ano de 1912 seria o momento de consagração de Chagas. Em junho, foi agraciado com uma importante distinção no campo científico internacional, o Prêmio Schaudinn, concedido de quatro em quatro anos pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo ao melhor trabalho em protozoologia. A comissão formada para a concessão do prêmio, da qual fazia parte Oswaldo Cruz, era composta pelos mais importantes nomes da microbiologia e da medicina tropical, como Koch (falecido durante o processo do julgamento), Manson, Ross, Laveran, Metchnikoff, Roux, Golgi e Grassi.
Graças à repercussão da descoberta e dos estudos de Chagas, Oswaldo Cruz obteve, junto ao governo federal, verbas especiais para equipar um pequeno hospital em Lassance, a fim de sediar os estudos clínicos sobre a nova doença, e para dar início, em Manguinhos, à construção de um hospital destinado às pesquisas e acompanhamento dos casos clínicos identificados no norte de Minas Gerais e em outras regiões do país. Sob a liderança de Chagas e com a colaboração de vários pesquisadores do IOC, a nova tripanossomíase passou, desde 1909, a ser estudada em seus vários aspectos, como as características biológicas do vetor, do parasito e de seu ciclo evolutivo, o quadro clínico e a patogenia (evolução) da infecção, suas características epidemiológicas, os mecanismos de transmissão e as técnicas de diagnóstico."
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É isso!
Fonte:
SIMONE PETRAGLIA KROPF: “Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação - 1909-1962." (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social. orientador: Prof . Dr. André Luiz Vieira de Campos). Universidade Federal Fluminense.Niterói, 2006.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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