O mito Brasil-natureza

“A natureza foi considerada o principal motivo de orgulho do brasileiro, segundo pesquisa realizada nas principais cidades do país em 1995, pelo Instituto Vox Populi e pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CHAUÍ, 2000).

Como um forte referencial na construção de uma imagem sobre o Brasil, apropriada de modo político e ideológico desde os tempos em que a frota de Portugal chegou à costa brasileira, a natureza representa em última instância uma idéia poética de Brasil.

O mito do Brasil-natureza desempenhou importante papel na consolidação da república em fins do século XIX, época em que várias nações do mundo ocidental estavam em formação, ao ser assumido como um discurso de nação e de identidade nacional com o qual se pretendia justificar e trazer unidade a um território e a um povo, garantindo um único poder político de Estado protetor da economia e das riquezas.

A bandeira nacional, um dos principais símbolos utilizados para a invenção da nação em toda a Europa e na América, tem no Brasil aspectos singulares. Segundo Chauí, desde a revolução francesa, as bandeiras tendem a ser tricolores e são insígnias das lutas políticas por liberdade, igualdade e fraternidade. Em contrapartida, “a bandeira brasileira é quadricolor e não exprime o político, não narra a história do país. É um símbolo da natureza. É o Brasil jardim, o Brasil paraíso” (2000: 62).

Nas escolas, aprendemos que o verde da bandeira simboliza a grandeza de nossas matas, o amarelo nossa riqueza mineral, principalmente o ouro, o azul representa o nosso céu e a faixa branca aquilo que somos: um povo ordeiro cujo destino é o progresso.

O hino à bandeira bem explica: “em teu seio formoso retratas / esse céu de puríssimo azul / a verdura sem par dessas matas / e o esplendor do cruzeiro do sul”. O hino nacional também afirma que o Brasil é “gigante pela própria natureza”, “florão da América” e que “teus risonhos lindos campos têm mais flores”. O “sol da liberdade”, que em “raios fúlgidos brilhou no céu da pátria”, traz uma referência aos mitos medievais e renascentistas das cidades perfeitas guiadas pelo Sol, assim como a “mãe gentil” é uma referência ao mito da mãe Terra, que provê o sustento e a fartura de seu povo.

Ao final do século XIX e início do século XX, encontramos o período da história em que o ufanismo nacionalista baseado no mito do Brasil-natureza atingiu o apogeu, seja na poesia nativista de Gonçalves Dias, na poesia cívica de Olavo Bilac ou no romance indianista de José de Alencar, cuja principal obra,
O Guarani, figura como exemplo singular do nacionalismo romântico ao narrar as aventuras do índio Peri, que se apaixona pela bela Ceci, descendente européia, que vive no Brasil em meio a um cenário de natureza monumental e selvagem do Brasil do século XVII.

Em 1900, por conta da comemoração do quarto centenário da descoberta do país, o visconde de Ouro Preto, Afonso Celso, lança o livro
Por que me ufano de meu país, em que apresenta vários motivos para a superioridade do Brasil em relação às outras nações. O primeiro motivo de ufanismo é a grandeza territorial do país. Outro motivo é a beleza incomparável da natureza, atestada por viajantes e poetas (a fauna, a flora, o Amazonas, a baía de Guanabara...). O Brasil, segundo Afonso Celso, possui todas as riquezas naturais enquanto a amenidade do clima não permite o desenvolvimento de nenhuma moléstia exclusiva no país, da mesma forma que “nenhum problema sanitário se lhe apresenta insolúvel”. O autor afirma que “a temperatura não incomoda ou acabrunha o homem, exigindo-lhe sacrifícios”.

O Brasil “é privilegiado da Providência”, pois não registra catástrofes como ciclones, terremotos, vulcões, correntes traiçoeiras, furacões; e o brasileiro pode confiar na natureza pois ela não o trai, não o amedronta, ao contrário, “dá-lhe tudo quanto pode dar, mostrando-se-lhe sempre magnânima, meiga, amiga, maternal”
. Para se ter uma idéia do impacto do livro na constituição do imaginário nacional, ele foi considerado leitura obrigatória nas escolas públicas até a década de 40, sendo reeditado em 1997 pela Academia Brasileira de Letras.

O Brasil-natureza é, portanto, constituinte da memória herdada
do povo brasileiro, e a representação simbólica atualmente está concentrada na região amazônica, por ser o maior e ainda mais preservado ecossistema brasileiro, alvo de disputas políticas no Estado, tentativas de interferências por parte de instituições científicas, organismos internacionais e movimentos ambientalistas.

Uma questão interessante é buscar saber através de quais mecanismos o mito do Brasil-natureza é reinventado na contemporaneidade. Como exemplo, temos o programa Globo Repórter, exibido em 1
o de julho de 2005 e que trata da Amazônia. Inicia-se com uma imagem do sistema solar aos poucos se aproximando e focando o planeta Terra em primeiro plano, posteriormente focando a América do Sul e o Brasil. O texto que acompanha a imagem é o seguinte:

A Via Láctea é um conjunto com cerca de 100 bilhões de estrelas. A 30 mil anos-luz do centro da Galáxia está o nosso Sistema Solar. Uma só jovem estrela de 5 bilhões de anos é responsável pela vida em nosso planeta. Vista do espaço, a Terra ainda é azul. E o Brasil, verde.”

O Brasil é uma imagem verde vista pelos satélites. Nesse contexto, as novas tecnologias permitem uma construção de um discurso que confirma a identificação total do país com a natureza, o mito Brasil-natureza assim se reinventa, adaptado ao paradigma tecnológico vigente, do qual os satélites são representantes singulares, justamente por sua capacidade de
visão e, conseqüente mente, de uma tentativa de controle sobre a órbita terrestre.

Note-se que a identificação do Brasil com a natureza se dá, antes de mais nada, pela imagem, e não através de um discurso argumentativo, como foi feito em séculos anteriores.

O verde aqui não é mais apresentado como um símbolo, uma representação da natureza, tornou-se uma
imagem real, capturada por um satélite que mostra o Brasil tal como ele é visto de cima. Ao informar que o Brasil é verde, o documentário está apresentado um fato comprovado pela imagem gerada por novas tecnologias. O verde da bandeira nacional é símbolo da natureza, porém agora o verde não é mais um símbolo, e sim um fato, uma imagem-realidade.

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É isso!

Fonte:
FERNANDO GASPARINI: “MÍDIAS, OCULTAMENTOS E REVELAÇÕES: TRAGÉDIA AMBIENTAL E CAPITALISMO”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação e Comunicação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de mestre. Orientador: Prof. Dr. Luis Carlos Lopes). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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