Do “exótico” ao “político”

“O reconhecimento de que o discurso jornalístico opera sentidos balizado pelo conflito entre o primitivo e o civilizado, e, em última análise, pelos índios vs os não-índios, não apaga a inegável contribuição da Imprensa para que a problemática indígena definitivamente encontrasse o seu lugar em diferentes instâncias de poder, entre elas, a própria mídia. Especialmente nos anos 70 e 80, quando diversos povos indígenas se envolveram na criação do movimento pan-indígena no Brasil, movimento que surgiu no contexto da mobilização da sociedade civil contra a ditadura militar. Segundo Matos (2001), foi a partir daí que os índios passaram de “outro exótico” a “outro” ator político, legitimando a sua existência frente à sociedade brasileira (op.cit: .87).

Os governos militares, da chamada “linha dura”, reprimiam qualquer manifestação da sociedade civil que contestasse o seu regime autoritário. Foi uma época marcada pela repressão armada, pela tortura de presos políticos e pela forte censura. Conta Matos que, para fugir desse aparato repressor, foram organizadas resistências clandestinas, incluindo guerrilhas urbanas e rurais e, nesse clima de tensão política,

“a questão indígena serviu como uma espécie de válvula de escape para aqueles que discordavam do regime militar autoritário. Por algum tempo, segmentos da sociedade civil ocuparam-se com os problemas das populações indígenas no Brasil como forma de tecer, publicamente, críticas à política da ditadura militar, sem provocar com isso uma repressão violenta por parte das autoridades governamentais” (op.cit: 88).

Segundo essa autora, foi nesse contexto sociopolítico que a Imprensa brasileira – um dos principais alvos da repressão e censura – mudou o seu enfoque sobre a problemática indígena, deixando de explorar exclusivamente a imagem exótica dos índios para tratar de suas questões como de interesse nacional. Ela cita o caso do jornal O Estado de São Paulo, “conhecido pelas suas reportagens tendenciosas contra os direitos indígenas” como “um dos que mais divulgou (SIC) os conflitos pelos quais passavam as populações indígenas no Brasil” (loc.cit.).

Por sua vez, o governo federal passou a olhar essas questões como de “segurança nacional” e subordinou (formalmente) o poder de decisão da Funai – Fundação Nacional do Índio – sobre assuntos relevantes, entre eles, a demarcação de terras indígenas ao Conselho de Segurança Nacional (CSN). Foi aí também que reportagens sobre os índios saíram dos cadernos de cultura e ganharam destaque nas páginas de política, inclusive, nas primeiras páginas dos jornais. “Por meio das questões indígenas, a imprensa conseguiu veicular certas informações sobre a situação política nacional, que de outro modo seriam duramente censuradas (loc.cit).

Nesse percurso, a Imprensa colaborou para que a imagem dos índios como exóticos fosse não substituída, mas intercalada a uma visão mais politizada. Como exóticos, os índios eram mantidos à margem da sociedade nacional, já nessa outra abordagem, passaram a ser politicamente integrantes da sociedade, com direitos legítimos a serem resguardados pelo Estado, assim como tornaram-se capazes de representar a realidade vivida naquele momento pelos brasileiros de uma maneira geral (op.cit: 89).

Em outras palavras, as populações indígenas foram usadas para expressar os direitos civis dos cidadãos brasileiros (notem: reforçando o sentido outro de que os índios não são brasileiros, como vimos na análise do caso dos cintas-larga), ameaçados pela ditadura militar.

Todavia, se o interesse era utilizar a figura do índio como uma saída para driblar a repressão, de algum modo, isso teve uma conseqüência ideológica: a problemática indígena destacou-se, na Imprensa, como uma questão legítima de direitos dentro do Estado Nacional. Como foi ressaltado anteriormente, o processo histórico que redefiniu o campo político das relações interétnicas no Brasil, com a organização do movimento pan-indígena, contou com uma atuação importante da Imprensa, à medida que nela e por ela o índio deixou de ser apenas o “outro” exótico para ser visto como “outro” político.

Por sua vez, os povos indígenas reconheceram esse locus privilegiado que é a Imprensa na re-produção e legitimação de conceitos e representações, de ordem e disciplina (temos, aí, um exemplo de discursos disciplinadores) e construíram uma nova relação com ela e com os meios de comunicação, em geral. Desde então – e de forma mais recorrente nos dias de hoje – os índios passaram a interagir com os meios de comunicação de acordo com seus próprios interesses. Recorrem a eles (também) quando necessitam de apoio para suas manifestações ou para pressionar o Governo, sem perder de vista o devido cuidado com a imagem de seus líderes que vão aparecer em público.

É importante destacar esse “controle” de imagem significa os índios na sua condição de índio , uma vez que eles se deixam mostrar adotando uma postura que condiz com o imaginários dos brancos sobre ser índio. Essa postura é defendida por Freire (2003) quando afirma que assim como os brancos querem manter seus valores, os índios também querem. “Não interessa a eles saírem vestidos de calça jeans e camisa pólo. Não é isso que configura a interação. Ele critica ainda o que considera uma aceitação ‘natural’ da postura etnocêntrica dos brancos, que julgam os índios a partir dos conceitos ocidentais: “Questiona-se muito o fato de os índios não terem entre si uma relação trabalhista formal. É comum ouvir pessoas classificando-os de preguiçosos. De certa, esses comportamentos são reforçados pela Imprensa”, diz, embora reconheça que muito já se tenha avançado.

Se, nos anos 70 e 80, a Imprensa contribuiu para que a sociedade tomasse conhecimento dos desrespeitos contra os direitos dos índios (que tinham como pano de fundo a denúncia contra a repressão e o desrespeito aos direitos dela própria, daí porque a causa indígena ganhou a sua simpatia), na década de 90, o perfil das notícias se caracterizou pelo revezamento de: (1) denúncias sobre crimes cometidos contra essas populações; (2) críticas ao Estado brasileiro, por não cumprir os direitos garantidos pela Constituição; e (3) re-afirmação da imagem do índio-exótico. Essa tendência só foi possível porque, com a abertura política, “o Estado passou a amparar-se, ideologicamente, na idéia da consolidação da democracia nacional, estando sempre às voltas com os fantasmas do regime autoritário dos anos anteriores” (Matos, 1997).

O espaço dedicado às questões indígenas nos últimos anos é centrado basicamente em quatro grandes temas: (1) a demarcação das terras indígenas; (2) movimentos indígenas; (3) violência e desrespeito aos direitos indígenas; e (4) os 500 anos do “descobrimento” do Brasil (este último, mais evidente no final do século, devido às comemorações incentivadas pelo Governo). Sem, contudo, se distanciar de uma visão simbólica e estereotipada dos índios.

O objeto desta reflexão é um exemplo desse contorno: ao mesmo tempo em que chocou a opinião pública (muito mais porque o crime fora praticado por adolescentes da classe média alta de Brasília do que por a vítima ter-se tratado de um índio), a morte do índio Pataxó Hã-Hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos refletiu – e ainda hoje reflete – uma das imagens socialmente construídas para os índios – seres de “natureza pura”, que devem permanecer na aldeia, sem contato com a “civilização”.

A cobertura sobre a demarcação das terras indígenas é tratada basicamente de duas maneiras: denúncia, ao noticiar os conflitos de terra envolvendo índios e não-índios (garimpeiros, madeireiros, fazendeiros etc.) e projeção política do Governo brasileiro, ao noticiar, “com tom triunfalista, a assinatura de portarias ministeriais e de decretos presidenciais que promovem o processo demarcatório” (op.cit: 93). Sobre as mobilizações políticas, as notícias apresentam um enfoque que privilegia a “integração” dos índios na sociedade nacional.

Todavia, essa noção não é a de mera assimilação, mas de envolvimento político, uma resistência que começou com o próprio movimento pan-indígena, quando as populações não aceitaram a proposta do Governo de criação dos “critérios de indianidade” para saber quem era índio. Nos dias atuais, a participação de lideranças indígenas ou de seus representantes no cenário da política nacional tem alcançado mais visibilidade na Imprensa. “Entretanto, algumas representações continuam orientando os discursos jornalísticos, como, por exemplo, o de indivíduos não-civilizados, privilegiados, preguiçosos, entre outros”, afirma Freire (2003).

Em relação à comemoração dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil, cabe uma reflexão particular. A Imprensa resgatou as diferentes leituras para o episódio – a chegada dos europeus – e para a figura dos índios, donde podemos destacar dois vieses: o discurso da celebração, do “descobrimento” (é festa: Cabral descobriu o Brasil em 1500) e o discurso da invasão (comemorar o quê ou por quê?), sendo um em oposição ao outro.”

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É isso!

Fonte:
Ana Paula Freire: “NOTÍCIAS DE UM CRIME NO MUNDO CIVILIZADO: AS MORTES DE GALDINO PATAXÓ”. (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense - UFF, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Mídia e Discurso. Orientadora: Profa Dra Tânia C. Clemente de Souza). Universidade Federal Fluminense – UFF. Niterói, 2004.

Nota
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A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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