A sociedade do espetáculo

Minha vida era um palco iluminado,
Eu vivia vestido de dourado, palhaço das perdidas ilusões,
Cheio dos guizos falsos da alegria,
Andei cantando a minha fantasia,
entre as palmas febris dos corações...
” - (SÍLVIO CALDAS, 1976)

“Podemos pensar a sociedade do espetáculo, a partir dessa canção, como representação de um “palco iluminado” cujos protagonistas vendem “ilusões e fantasias”. A seguir, teceremos algumas considerações sobre esse universo de imagens e de espetáculos e analisaremos as suas repercussões na nossa cultura.

No final dos anos 60, o sociólogo francês Guy Debord (1997) denominou de “sociedade do espetáculo” as novas modalidades de convívio social que emergiam naquela época. Para ele, a noção de espetáculo refere-se ao exibicionismo e à teatralidade através dos quais os atores inscrevem-se como personagens no cenário social.

A sociedade do espetáculo sustenta-se nas aparências, na produção de bens, de representações, e na acumulação de espetáculos. O espetáculo controla a vida, no social, através da sua economia de consumo. Toda a realidade individual torna-se social, através do espetáculo. As paixões e os sofrimentos humanos, que antes eram íntimos e privados tornam-se públicos, descaracterizados e devastados pela mídia.

Nesse cenário, a realidade e os acontecimentos são apresentados como objetos de mera contemplação, nos quais realidade e fantasia fundem-se, criando uma grande ilusão e, simultaneamente, um equívoco na maneira de o sujeito perceber as coisas. Isso ocorre de tal modo que é difícil distinguir a cópia do original, o público do privado, o real do sonho, exteriorizando, espetacularizando o que seria de natureza íntima. Desse modo, ser e parecer identificam-se, no registro imaginário, levando o sujeito a um estado de alienação e desconhecimento de si, visto que essa realidade, ao mesmo tempo que se aproxima do verdadeiro, é também alienante, devido a seu poder de atração, de fascinação, ou até mesmo de terror.

Assim, podemos dizer, que a ficção não imita a vida, mas é a própria realidade da vida. A imagem leva-nos a acreditar que as coisas são como parecem ser. É essa aparência que se reconhece como verdadeira. O mais drástico desse processo é que as relações com o outro também são permeadas pelas representações e pela superficialidade.

O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. [...] Não é um suplemento do mundo real, é o âmago do irrealismo da sociedade real. [...] O espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade.
(DEBORD, 1992, p. 14)

A sociedade do espetáculo encarna-se na estética do corpo, que captura o olhar do outro. O ato de exibir-se e de ser olhado passa a catalisar a economia psíquica do sujeito. E o corpo torna-se a grande estrela nesse mundo de aparências e de imagens, no jogo de sedução. Nesse espaço, o sujeito é auto-suficiente, não se defronta com o limite do outro; ele é apenas objeto de seu olhar. Narcísica, essa relação não abre espaço para a alteridade nem para a solidariedade. Existe apenas Narciso e o seu corpo.

Nessa cultura da superficialidade e das “aparências”, o sujeito assume a posição de “nada querer saber” do que se passa lá fora de seu mundo. Nada importa, a não ser o seu próprio gozo, o seu próprio corpo, a sua própria imagem, apenas isso. A realidade transforma-se em simples imagens, com seus efeitos hipnóticos, capturada pelo olhar especular. Os outros sentidos, como o toque e a palavra, que possibilitam um encontro com o outro e a alteridade, perdem o seu significado. Na cena do espetáculo, eles são apagados, ou até excluídos. O que prevalece é o ato de apreender o mundo passivamente e isoladamente, através do olhar.

O espetáculo, na concepção de Guy Debord, é uma “verdadeira guerra de Ópio”, que leva a uma busca insaciável de bens e produtos, sustentados pelo próprio espetáculo. Ele vende ilusões: “o produto é o dado real desta ilusão e o espetáculo a sua manifestação” (DEBORD, 1992, p. 3). Com o primado do “possuir-ter”, ocorre um deslizamento ou, melhor dizendo, “uma degradação do ser para o ter" (DEBORD, 1992, p. 18). O sujeito encontra-se vazio de um sentido interior. Não é à toa que se torna freqüente, na clínica, a queixa carregada de grande sofrimento e angústia – “a falta de sentido para a vida, quando se tem tudo”. E o sujeito se pergunta: O que eu faço (ou O que me falta) para eu ser feliz? Esses discursos revelam o lado nefasto do espetáculo e o esvaziamento do ser pelo ter.

O espetáculo é uma concepção de mundo que se positivou mediando as relações interpessoais. É a afirmação do social, como diz Debord, como “simples aparência”; por isso mesmo, vazia de sentido. Se antigamente o sujeito era aceito e valorizado socialmente pelo seu caráter e pela sua palavra, na atualidade ele vale por aquilo que possui, ou melhor, pelas aparências.

Nesse contexto, ocorre um apagamento dos limites do eu e do mundo, assim como um estado de indiferenciação entre a presença-ausência e o verdadeiro-falso – princípios fundamentais na estruturação psíquica e na apreensão da realidade. Para Birman, no texto “Mal-estar da atualidade” (2000), corroborando as idéias de Debord, essas injunções imaginárias e superficiais do eu são tão marcadas que o eu se torna quase indistinguível de sua superfície exterior. É a mídia que dá substância e intensifica os sonhos narcísicos de fama, glória e poder. Sem ela, o espetáculo esvazia-se e perde seu poder extasiante de sedução. O corpo é o objeto de investimento narcísico nesse cenário; ele representa o próprio eu.

E a mulher, ao ocupar a cena do espetáculo, revela-nos muito bem a extensão e a intensidade dessa exterioridade, manifesta na exposição exacerbada e erotizada do corpo. Ela é o estandarte desse palco iluminado. Como os corpos em convulsão, espetaculosos, das histéricas, no tempo de Freud, o corpo feminino anuncia hoje não apenas o poder de sedução do sexual, mas também um mal-estar da atualidade marcado pela violência e intolerância, pela exploração mercadológica da sexualidade e por uma certa incursão dos dispositivos que constroem a subjetividade do feminino.”

---
É isso!


Fonte:
MARIA DA CONCEIÇÃO ARAÚJO VALENÇA: “A feminilidade em Freud e na contemporaneidade: repercussões e impasses”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Católica de Pernambuco, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Clínica. Orientador: Prof. Dr. ZEFERINO DE JESUS BARBOSA ROCHA. Co-Orientadora: Profa. Dra. ANA LÚCIA FRANCISCO). Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2003.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!