A Era Vargas e o determinismo biológico

“Nesse período, a simbiose entre aparelho repressivo e modernização científica se aprofundava e terminava por favorecer as estratégias da Escola Positiva. Mais do que isso, as tendências totalitárias que o regime desenvolveu iriam privilegiar a objetivação de inimigos sociais, para o que os determinismos biológicos poderiam ser de grande utilidade. As reflexões de Hannah Arendt sobre o totalitarismo e a aplicação delas para o caso brasileiro por Elizabeth Cancelli se fazem aqui necessárias.

O aprimoramento institucional dos aparelhos repressivos do Estado nos anos 30 é o objeto central da obra “O mundo da violência - A Polícia da Era Vargas”, de Elizabeth Cancelli. A autora trabalha com vários conceitos elaborados por Hannah Arendt, em “Origens do Totalitarismo”. No entanto, a definição estrita de governo totalitário de Arendt não caberia, à princípio, ao Governo de Vargas, o que Cancelli parece não levar em consideração. Para Arendt, apenas os regimes de Stalin e Hitler poderiam ser classificados como totalitários, o que excluiria até mesmo o fascismo italiano de Mussolini. Em “Origens...”, o Governo Vargas não é objeto de análise, nem mesmo como exemplificação. Mas não é nenhuma temeridade colocá-lo ao lado das ditaduras unipartidárias não totalitárias que a autora enumera quando trata do período que antecede à Segunda Guerra: além da própria Itália, a Romênia, a Polônia, os Estados Bálticos, a Hungria, Portugal e, mais tarde, a Espanha. Falta a estas ditaduras, por exemplo, a necessidade da superação do nacionalismo e a pretensão do poder universal: “A luta pelo domínio total de toda a população da terra, a eliminação de toda realidade rival não totalitária, eis a tônica dos regimes totalitários...”.

O que facilita a tarefa de Cancelli ao utilizar os conceitos de Arendt sobre totalitarismo ao tratar de Vargas é justamente um desses conceitos: o de infecção totalitária. Tal opção metodológica flexibiliza bastante o arsenal conceitual disponível, saindo-se da rigidez de uma lógica de conceitos mutuamente excludentes para um espectro de variação contínua. Um governo pode não ser tipicamente totalitário, mas apresentar diferentes graus de contaminação totalitária. Isso permitiu a Cancelli operacionalizar vários dos conceitos de Arendt relacionados às características de um governo totalitário: o apoio das massas, o culto ao Líder e seu papel central na mitificação totalitária, a preponderância da polícia na hierarquia do poder, a necessidade da instabilidade permanente para o domínio social absoluto, a busca da destruição da existência jurídica e moral dos perseguidos.

Mas de todos os atributos de um regime totalitário que as autoras concebem, o mais significativo e de maior interesse para a presente pesquisa é o mecanismo de construção dos inimigos objetivos, ou inimigos potenciais. O totalitarismo, e isso para ambas as autoras, necessita identificar setores inteiros da população a serem perseguidos e eventualmente exterminados, como forma de impor ao restante da população o controle absoluto. Para Elizabeth Cancelli, no Brasil dos anos 30 e parte dos 40, o regime buscou sustentar o seu autoritarismo na construção de tais inimigos objetivos. A essência dessa tese é que nada do que as pessoas desses grupos fizessem ou deixassem de fazer tinha alguma relação com a perseguição que lhes era imposta. Eram perseguidas pelo que eram, não pelo que faziam. Para Foucault, é justamente esse o fundamento da criminologia:

O laudo psiquiátrico, mas de maneira geral a antropologia criminal e o discurso repisante da criminologia encontram aí uma de suas funções precisas: introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos susceptíveis de um conhecimento científico, dar aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobra as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser.

Dessa forma, a primazia da polícia e a construção social do inimigo objetivo tinham na contribuição científica do determinismo biológico um aliado bastante privilegiado. O grau mais institucionalizado da penetração das idéias da Escola Positiva nesse período tem relação com essas novas necessidades do Estado."

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É isso!


Fonte:
Luis Antonio Coelho Ferla: “Feios, sujos e malvados sob medida Do crime ao trabalho, a utopia médica do biodeterminismo em São Paulo - 1920-1945". (Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Econômica, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção de título de Doutor em Ciências. Orientadora: Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura. Universidade de São Paulo São Paulo, 2005.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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