Bíblia, Interpretação e Natureza
"Para Galileu, tanto a Natureza como a Escritura são obras de Deus; portanto, são como dois livros desprovidos de erros: “Não pode a Sagrada Escritura jamais mentir ou errar, e possuem os seus decretos absoluta e inviolável verdade.” O erro estaria na interpretação da Escritura, por parte daqueles que não entenderiam o seu real sentido, ou naqueles que estudariam a Natureza e não teriam entendido seus modos de operar e recônditas razões. Com relação à interpretação da Bíblia, Galileu escreve:
“Os seus interpretes e expositores poderiam, entretanto, incorrer por vezes em erros, e de várias maneiras. Entre esses erros, um seria gravíssimo e freqüentíssimo, ocorrendo sempre que tais intérpretes quisessem ater-se ao mero significado das palavras, porque assim produzir-se-iam não só diversas contradições, mas graves heresias e também, blasfêmias.”
Com relação à Natureza e à ciência, afirma ele:
“Visto, pois, que a Escritura, em muitas passagens, não apenas permite, mas necessariamente exige exposições diferentes do aparente significado das palavras, parece-me que nas discussões naturais ela deveria ser citada somente em última instância. Porque, procedendo igualmente do Verbo Divino a Sagrada Escritura e a Natureza, aquela como palavra ditada pelo Espírito Santo e esta como perfeitíssima executora das ordens de Deus, sabendo-se agora, ainda mais, que as Escrituras dizem muitas coisas diferentes da verdade absoluta, quanto ao aspecto e significado das palavras, a fim de adaptarem-se ao entendimento de todos, e sendo, todavia, a Natureza inexorável, imutável e indiferente a que suas recônditas razões e modos de operar sejam acessíveis ou não ao entendimento dos homens, razão pela qual jamais transgride os termos das leis a ela impostas, parece que o concernente aos efeitos naturais, que a experiência sensível coloca-nos diante dos olhos, ou que as necessárias demonstrações comprovam, não deva de maneira alguma ser colocado em dúvida pelas passagens da Escritura devido ao fato de haver nas palavras uma aparência de significado diferente.”
Galileu propõe a distinção entre um saber fundado na autoridade da revelação e o saber fundado em princípios acessíveis às faculdades humanas: a razão e os sentidos. Podemos citar também uma passagem da Carta a Cristina de Lorena:
“Parece-me que, nas discussões de problemas concernentes à Natureza, não se deveria começar com a autoridade de passagens das Escrituras, mas com as experiências sensíveis e com as demonstrações necessárias.”
Para Galileu, o saber acerca da Natureza só poderia ser adquirido através de um processo contínuo de investigação (experiências sensíveis e demonstrações necessárias). Em sua opinião, não se poderia e nem deveria recorrer à Bíblia para negar ou confirmar uma doutrina científica. Por outro lado, as proposições naturais estabelecidas pelas experiências sensíveis ou as demonstrações necessárias deveriam servir de critério na interpretação das Sagradas Escrituras.
Galileu negava à teologia e aos teólogos o direito de decidirem sobre a verdade ou falsidade de proposições cosmológicas, por estas não serem do domínio da ciência destes. Não afirmava, porém, que a verdade não estivesse na Bíblia. O sentido do texto bíblico é ambíguo por ter que acomodar-se à linguagem do povo; portanto, é necessário buscar seu verdadeiro sentido.
Ainda na carta a Cristina de Lorena Galileu escreve:
“Mas que o próprio Deus que nos dotou de sentidos, de discurso e de intelecto, tenha querido, postergando o uso destes, dar-nos por outro meio os conhecimentos que podemos conseguir através deles, de tal modo que mesmo no que se refere às conclusões concernentes à Natureza que, ou pelas experiências sensíveis ou pelas demonstrações necessárias, se nos apresentam expostas diante dos olhos e ao intelecto, devemos negar os sentidos e a razão, não creio que seja necessário crê-lo.”
Nesta frase, relativamente longa, Galileu afirma, por meio de uma dupla negação, que o homem é dotado de certos meios que lhe permitem adquirir conhecimentos, isto é, conclusões referentes à Natureza. Tais meios são os sentidos, o discurso ou a razão e o intelecto. Uma conclusão pode então se apresentar exposta diante dos olhos pelo uso dos sentidos (experiência sensível) ou ao intelecto, através do discurso racional, sob a forma de demonstrações necessárias.
Assim, Galileu parece retomar, não só a distinção aristotélica entre sentidos, razão e intelecto como também seu conceito de ciência como demonstração necessária e o primado da experiência visual.No entanto essa semelhança quanto a estes aspectos não impede a distinção radical que encontramos entre a visão aristotélica do mundo e a nova concepção galileana da natureza. A distinção aristotélica entre um mundo imutável, o mundo do movimento circular e uniforme e o mundo terrestre, mutável, sujeito ao movimento retilíneo, foi negado por Galileu; consequentemente demonstra ele a unicidade da natureza e, portanto, dissolve a hierarquização aristotélica entre os dois mundos. Galileu não irá fazer distinção entre o mundo celeste e o terrestre. Rompe, assim com o mundo de duas regiões, ou seja, a concepção de que os corpos celestes são homogêneos e de formas perfeitas, ao contrário da Terra, onde os acidentes geográficos apresentam grande heterogeneidade de formas. Além do rompimento com a cosmologia aristotélica, Galileu opera uma transformação no interior da ciência como conhecimento necessário, generalizando o uso da matemática, especialmente da geometria, como linguagem da ciência da Natureza.
Embora as obras e cartas de Galileu contenham observações, como as que acabam de ser citadas, sobre o método e a maneira como deve ser concebida a ciência, ele não escreveu um “Discurso do método”. Seja qual for a posição que se adote na complexa questão do “método de Galileu”, fica clara na carta a Cristina de Lorena a relevância tanto da experiência sensível como da demonstração necessária.
Quanto a esta última, Galileu a distingue claramente da opinião, que se apoia em razões prováveis, e mais ainda de um simples relato:
“Além disso, que também nas proposições que não são de Fide a autoridade das próprias Sagradas Escrituras deva ser anteposta à autoridade de todas as escrituras humanas escritas, não com método demonstrativo, mas a modo de pura narração ou ainda com razões prováveis, eu diria que isto se deve reputar tanto mais adequado e necessário quanto a própria sabedoria divina supera todo juízo e conjectura humanos.”
Um ponto que merece destaque é que, para Galileu há uma nítida distinção entre filosofia e religião ou fé: ”e por isso desamparados, enfim, de defesa enquanto permanecem no campo filosófico, resolveram tentar escudar as falácias de seus discursos com o manto de uma religião fingida e com a autoridade das Sagradas Escrituras”. Mas não parece haver, para ele, uma distinção muito clara entre ciência e filosofia nos termos mais recentes. Ambas se fundam em experiências sensíveis e razões necessárias: “sendo que aquele que sustenta a verdade pode dispor de muitas experiências sensíveis e de muitas demonstrações necessárias para a sua parte, ao passo que o adversário não pode valer-se de outra coisa senão de aparências enganadoras, de paralogismos e de falácias.”
Há mesmo, na Carta a Cristina de Lorena, passagens em que ciência e filosofia são mais aproximadas do que distinguida, chegando a dizer que a astronomia e a filosofia se ocupam com a constituição das partes do mundo e sustentam as teses copernicanas, como podemos ler no seguinte trecho:
“Persistindo, pois, tais adversários no seu primeiro plano de querer por todo meio imaginável derrubar-me e às minhas coisas; sabendo como eu, nos meus estudos de astronomia e de filosofia, sustento, a respeito da constituição das partes do mundo, que o Sol, sem mudar de lugar, permanece situado no centro das revoluções dos orbes celestes e que a Terra, que gira sobre si mesma, se move em torno dele.”
O máximo que se poderia talvez dizer é que, aqui, Galileu alude à astronomia (matemática) e à filosofia (da natureza).
Na carta a Cristina de Lorena, há bastante vezes o par “experiências sensíveis” e “demonstrações necessárias” como fundamento das conclusões científicas. J. Dietz Moss chegou mesmo a fazer uma listagem destas passagens.
Nesta carta, o conceito de experiência não parece ter o sentido de experimentação mas de observação (controlada), na medida em que não haveria sentido em se falar de experimentação em astronomia: “parece, quanto aos efeitos naturais, que aquilo que deles a experiência sensível nos coloca diante dos olhos, ou as demonstrações necessárias nos fazem concluir.”
As demonstrações necessárias eqüivalem a concluir e são operadas pelo intelecto e pela razão como se mencionou anteriormente. Se associam a compreender, por oposição a ver “Porque não somente se lhes ordena que não vejam aquilo que eles vêem e que não compreendam aquilo que eles compreendem, mas que, pesquisando, encontrem o contrário do que lhes chega às mãos.” Assim como as experiências sensíveis se opõem às aparências enganadoras, elas se opõem aos paralogismos e falácias: “Sendo que aquele que sustenta a verdade pode dispor de muitas demonstrações necessárias para a sua parte, ao passo que o adversário não pode valer-se de outra coisa senão de aparências enganadoras, de paralogismos e de falácias.”
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É isso!
Fonte:
ANA PAULA BROLLO: "Galileu Galilei: Carta à Senhora Cristina de Lorena, Grã-Duquesa de Toscana." (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História da Ciência sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC. São Paulo, 2006.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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