Alguns antecedentes históricos do racismo

“O tratamento científico do racismo é relativamente novo. As principais teorias racialistas foram formuladas no século XIX. Isso não significa que não tenhamos antecedentes históricos importantes, cuja formulação escapa das elaborações de cunho mais teórico, por estarem ligadas às imagens ancestrais tributárias dos mitos de origem, dos discursos religiosos e dos usos e costumes de diversos povos antigos, forjadores das mentalidades que concebem o diferente e o estrangeiro como um inimigo potencial. Como já me referi anteriormente, a democracia grega, se foi capaz de formular conceitos como o de autonomia, também o circunscreveu ao exercício dos cidadãos, deixando de fora os não-proprietários, os escravos, os estrangeiros, além das mulheres.

Se, às principais teorias racialistas, já não se credita valor científico, de modo que, hoje, soam inócuas, porque os próprios critérios de cientificidade e de racionalidade as derrubaram, o mesmo não se pode dizer da herança cultural que, a partir das suas imagens, símbolos e arquétipos, retroalimenta nossas atitudes contemporâneas de injustificáveis xenofobia, preconceito e racismo
.

"Consta que as opiniões mais ou menos articuladas sobre as diferenças entre os “nossos iguais” e as pessoas de outras culturas remontam aos escritos humanos mais remotos. No entanto, os critérios para essa diferenciação atinham-se à aparência física e à ascendência comum. Podemos identificar duas importantes contribuições, na Antigüidade, no que diz respeito às raízes etnocêntricas da nossa civilização: Grécia Clássica e Antigos Hebreus. No século V a. C., na Grécia, imperava uma concepção que atribuía as características de um povo a seu meio ambiente. Hipócrates (460 a .C – 375 a .C), por exemplo, procura explicitar a suposta superioridade do povo grego, em relação aos povos da Ásia ocidental, alegando que o solo da Grécia, por ser árido, favorecia aos gregos se tornarem fortes e independentes. Mais tarde, a diferenciação dos povos passou a residir tanto em aspectos biológicos - como a cor da pele, dos olhos e do cabelo - quanto em questões culturais. Embora a maioria das culturas não gregas fossem encaradas de forma negativa – os estrangeiros eram chamados de bárbaros – era comum os gregos respeitarem os indivíduos de aparência diversa.

A visão que os gregos tinham sobre os estrangeiros era a de que certas raças são, por natureza, livres, enquanto outras possuem uma natureza inferior e, portanto, servil. Os legados de xenofobia, que nos foram deixados pela Grécia e por Roma, porém, não são associados somente a pré-julgamento de cor. Os gregos se consideravam superiores aos “bárbaros”, embora essa superioridade fosse cultural e não racial.
Vejamos esta afirmação:

“The Greco-Roman view of Blacks was [...] a fundamental rejection of color as a criterion for evaluating men.[…] There is nothing in the evidence, however, to suggest that the ancient Greek and Roman established color as an obstacle to integration into
society”
.

Em relação aos hebreus, à luz do Antigo Testamento, são menos considerados, nos povos, como elemento de diferenciação, a aparência e os costumes do que sua relação, através de um ancestral comum, com Deus. Assim, muitos grupos eram reputados, explicitamente, como descendendo, em última instância, não apenas de Adão e Eva, porém, mais particularmente, dos três filhos de Noé. Desse modo, os israelitas seriam os chamados filhos de “Sem” – daí o designativo semita - e os filhos de “Cam” e de “Jafé” responderiam pelo resto da ‘família’ humana. Uma outra variante bastante difundida indicava que Cam era o antepassado dos servos, Sem o dos clérigos e Jafé o dos senhores.

É importante assinalar que, embora o argumento bíblico não tenha nenhuma comprovação científica, ele é recorrente nas crenças populares. A própria exegese entende o relato da embriaguez de Noé, ultimado pela cena da maldição, no término do capítulo nove do Livro do Gênesis, como um artifício literário do autor bíblico para justificar a perda de interesse por Jafé, Cam e seus descendentes.

Uma passagem do Gênesis serviu para o mesmo fim e, também, para justificar a escravidão, mais tarde: o relato da maldição de Cam . Segundo o texto bíblico, Cam, filho de Noé, teria cometido um pecado contra seu pai, que o condenou - e a seus descendentes – a tornarem-se “servos dos servos”. Os negros, supostamente, seriam esses descendentes de Cam. Não se tem clareza, ainda, de que forma foi sendo tecida essa interpretação particular dos referidos versículos. De acordo com a tradição, os descendentes de Cam teriam se espalhado pela África do Norte, dando origem a outros povos. Nota-se que tal passagem da Bíblia repercute, até hoje, no imaginário popular.

Vejamos a citação:

“Da maldição de Cam, a quem a exegese rabínica e, depois dela, a exegese protestante, censuravam os crimes de castração e de incesto, até à classificação de Lineu e às descrições de muitos filósofos das Luzes, os homens negros serviram de alvo às impiedosas censuras dos homens brancos, a negrura e com ela a vasta gama de suas associações maléficas, opondo-se à brancura, como crime à inocência, ou o vício à virtude, ou ainda, a bestialidade à humanidade. O rigor das condenações permite inferir a força das tentações, a repugnância cultural, atesta a severidade de um tabu que só podia estimular a atração biossexual contrariada. Também a Antigüidade tinha em conta a sensualidade ou o impudor dos negros, aos quais a ciência moderna atribuía obstinadamente um pênis monstruoso. [...] as paixões mais generalizantes procuravam exprimir-se através de generalizações com pretensões científicas, os fantasmas da bestialidade dos negros se deixavam transmutar em teorias antropológicas por intermédio dos relatos de viagens” .

A mesma referência à suposta maldição do negro encontra-se num panfleto anônimo publicado em Lisboa, três anos após a abolição da escravidão negra, em Portugal, por Pombal.

Vejamos:

"Nova e curiosa relação de hum abuzo emandado, ou evidências da razão; expostas a favor dos homens retos em hum diálogo entre hum letrado e hum mineiro” (Lisboa, 1764).
Eis os termos do diálogo: “... pois nós os brancos somos descendentes de Adão e os negros de Caim, que era negro e que morreu amaldiçoado pelo próprio Deus, conforme relata a Escritura[...]”.

A maldição de Noé contra Cam é também tema do quadro “Redenção de Cam” pintado por Modesto Brocos y Gómez (1852-1936). O quadro demonstra claramente a crença na mestiçagem como forma de dirimir essa maldição do negro. Na família retratada, a neta é já quase branca, a mãe, mulata clara e o pai branco. No entanto, a avó negra e ainda escrava reverencia os céus pela brancura da neta. Essa mesma maldição é evocada, desde o século XV, para justificar a escravidão, como vemos abaixo:

“ e aqui avees de notar que estes negros posto que sejam Mouros como os outros som porem servos daquelles per antigo costume, o qual creo que seja por causa da maldiçom que depois do diluvyo lançou Noé sobre seu filho Caym, pella qual o maldisse que a sua geraçom fosse sogeita a todallas outras geraçoms do mundo da qual estes descendem segundo se escreve o arcebispo de dom Rodrigo de Tolledo e assy Joseph no livro das antiguidades dos judeus e ainda Gualtero, com outros autores que falarom das gerações de Noé depois do saimento da Arca
.

Esse mito – um dos que legitimam a escravidão – constitui uma das representações do negro no imaginário popular, cujas origens remontam à tradição bíblica e que perpetua, até hoje, um lugar de inferioridade para o negro. Outra versão, entre as inúmeras interpretações da Bíblia que conferem à negritude valor pejorativo, identifica o negro com a reencarnação do diabo, de modo que a cor negra passa a simbolizar o demônio, reforçando a idéia de maldição da raça negra assemelhada à imagem diabólica, como veremos a seguir.

Sobre essa questão, recorremos aos estudos de Juan Comas, que lhe acrescenta alguns dados interessantes. Comas afirma que a mais antiga referência de discriminação contra negros, se bem que tivesse sido ditada antes por motivos políticos do que por preconceitos raciais, é encontrada em um marco mandado erigir, por ordem do Faraó Sesóstris III (1887-1849 a.C.), acima da segunda catarata do Nilo. Eis o seu texto:

Limite Sul. Erigido no VIII ano do reinado de Sesóstris III, Rei do Alto e Baixo Egito, o qual viverá através das idades. Nenhum negro atravessará este limite por água ou por terra, de navio ou com seus rebanhos, salvo se for com o propósito de comerciar ou fazer compras. Os negros que atravessarem para este fim serão tratados com hospitalidade mas proíbe-se a todo negro, em qualquer caso, descer o rio de barco além de Heh” .

Comas reforça a idéia, já levantada, sobre a visão que os gregos tinham dos estrangeiros, ao acrescentar algumas formulações de Aristóteles (384–322 a.C.), usadas para justificar o que ele chama de “ambição grega de hegemonia universal”. Esse filósofo formulou a hipótese de que certas raças são, por natureza, livres, enquanto outras possuem uma natureza inferior e, portanto, servil. Acerca desse tema, podemos buscar, na “Política”, as seguintes passagens: alguns homens são dependentes porque são incapazes de se comportar de maneira racional, só podendo compreender e obedecer (1254, b, 19 – 23); eles são ‘phsei doùloi’ (naturalmente escravos); sua dependência é, portanto, normal, como a do corpo diante da alma (idem); mas, ao contrário, é injusto reduzir à escravidão homens que têm a natureza de serem livres; assim, um prisioneiro de guerra grego, se tiver a alma livre, não deve ser escravizado (6, 1255, a, 21).

As mesmas teses aristotélicas serviram de base para justificar os argumentos apresentados em defesa da escravidão dos ameríndios e dos negros, no século XVI, engrossando as disputas, como as acontecidas, na Universidade de Salamanca, opondo Bartolemé de Las Casas, defensor e protetor universal de todos os povos indígenas – como ele próprio se denominava, e Juan Gines de Sepúlveda, partidário da servidão natural dos indígenas. Baseando-se na hipótese de Aristóteles, Sepúlveda teria admitido a “inferioridade e perversidade naturais do aborígene americano”, tachando-o de ser irracional. Por suas palavras, “os índios são tão diferentes dos espanhóis como a maldade é da bondade e os macacos, dos homens”.

A doutrina de Aristóteles, amalgamada à concepção hegeliana sobre a história, é reinvocada, no século y XIX, por uma Europa neocolonialista, decidida a “civilizar” o continente africano, onde vigoravam a “selvageria”, a “escuridão” e o “primitivismo”, aspectos tão bem acentuados no grande conto de Conrad, “Heart of Darkness”.

A partir dos primeiros contatos com os africanos, os europeus elaboraram suas próprias versões dos bárbaros, dando lugar a inúmeros estereótipos sobre a raça negra, na maioria dos casos, ainda presentes na atualidade. A representação do africano, na literatura de viagens, amplamente difundida já na literatura portuguesa do século XIV e dos inícios do século XV, bem como no Ocidente Cristão em geral, é dominada por uma série de estereótipos.

Por exemplo, o diabo – uma obsessão da alma medieval – era chamado por certos ocultistas de “O Grande Negro”. O próprio Cyrano de Bergérac representa o diabo como “Un grand homme noir tout velu. Mais tarde, os relatos de viagem vão substituindo, pouco a pouco, as lendas sobre os negros. No entanto, na literatura medieval, o negro é uma figura praticamente desconhecida e aparece muito raramente. Quando muito, é representado como uma personagem mítica e monstruosa, identificada com o inimigo e ainda vagamente associado, pelos supersticiosos, à figura do diabo. Pela imaginação coletiva medieval, também o negro desempenha um papel religioso. Segundo uma tradição popular, os abissínios descendem de Salomão devido aos filhos que este rei teve com a rainha de Sabá.

Segundo estudo de Horta, um exemplo interessante da representação do africano nesse tipo de literatura são os relatos contidos na “Crônica da Tomada de Ceuta”. Neles o negro é representado como diabo e a cor negra associada à maldição. Para além de “negro”, os adjetivos “espantoso”, “temeroso”, “perigoso” são típicos da descrição do demônio e do inferno. Também na “Crônica dos Feitos da Guiné”, pode ser percebida uma conotação demoníaca e desvalorizante do negro, porém menos direta.

Vale constatar um traço desse imaginário no seguinte trecho da obra “Melanges Intéréssants:

“ … tous les voyageurs qui les ont fréquentés, tous les écrivains qui em ont parlé, s’accordent à les représenter comme une nation qui a, si l’on peut s’exprimer ainsi, l’âme aussi noire que le corps. Tout sentiment d’honneur e d’humanité est inconnu a ces barbares: nulles idées, nulles connaissances qui appartiennent à des hommes. S’ils n’avoient le don de parole, ils n’auraient de l’homme, que la forme…”

Carvalho, ao refletir sobre a alteridade nos textos da literatura de viagens, anota que o negro é representado, nesse tipo de narrativa, “numa variada gama de aspectos que podem ir de ‘admiração’, ‘respeito’, ‘estima’, até ao extremo oposto de ‘desconfiança’ e ‘temor’, demonstrando uma concepção de negrura segundo um ponto de vista e em referência a um padrão civilizacional, cultural e religioso europeu”. Segundo ele, em determinados textos, algumas etnias africanas são assim descritas:

“Nesta terra há uns homens selvagens que habitam nos montes e arvoredos desta região aos quais chamam os negros do Beni “Òsà” e são muito fortes e são cobertos de sedas como porcos. Tudo tem de criatura humana, senão que, em lugar de falar, gritam. E eu ouvi já de noite os gritos deles e tenho üa pele de um destes selvagens[...]”.

Como vemos, narrativas como esta demonstram a estranheza com que esses viajantes captavam a realidade da África, tanto em termos de sua fauna e flora quanto em seus aspectos étnicos, possibilitando, assim, a criação de um imaginário sobre os africanos, sempre evidenciando certa monstruosidade e animalidade. “Negros com rabo de cão e cobras de quarto de légua corriam soltos na Guiné são repertoriados como exemplos da monstruosidade existente na África”. Ou seja, circunstâncias que faziam da África “o continente de todas as bestialidades, o território de eleição do demônio. Nota-se que esse imaginário se amplia nos “descobrimentos”, mas não muda, na sua estrutura fundamental, a forma de ver o negro. Continuam prevalecendo os mesmos princípios estigmatizadores por séculos a fio.

Somente no século XV, a África negra começa a ser descoberta pelos navegadores portugueses. Antes disso, como vimos, ela era conhecida pelas lendas e pelas tradições elaboradas por geógrafos, nas quais era imaginada repleta de monstros e os seus habitantes identificados como demônio.

Assim, mais tarde, essas mesmas narrativas que se referiram à “bestialização” dos negros da África, ao canibalismo e ao paganismo acabaram nutrindo argumentos justificadores do caráter redentor do tráfico negreiro, até mesmo conferindo princípios evangelizadores a tal empresa. Como assinala ainda Alencastro, as justificativas para a escravização dos africanos eram muitas e variadas. Entre elas, o argumento de salvação de seus corpos e almas. O próprio padre jesuíta Antonio Vieira acabou adotando os mesmos princípios justificadores ao encarar o tráfico africano como um “grande milagre”. Ou seja, uma “benesse” a esses “pagãos” que se matavam e esquartejavam uns aos outros.

O início da colonização africana, a descoberta da América e do caminho marítimo para as Índias, o progresso do racionalismo e do espírito científico permitem abandonar as noções fantasiosas e até mesmo supersticiosas, estimulando acirrados debates sobre as diferenças humanas e culminando na definição de determinadas concepções que, mais tarde, no século XVIII, viriam a exacerbar os preconceitos de raça e de cor.”

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É isso!


Fonte:
EUGÉNIA DA LUZ SILVA FOSTER: “RACISMO E MOVIMENTOS INSTITUINTES NA ESCOLA”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação. Orientadora: Prof. Dra. CÉLIA FRAZAO SOARES LINHARES). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.

Nota:
As imagens inseridas no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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