“O universo em direção ao equilíbrio: a interpretação nietzscheana da 2ª lei da termodinâmica A teoria mecanicista, para Nietzsche, não passava de uma hipótese provisória: “o mecanicismo há de valer, para nós, como uma hipótese incompleta e somente provisória” (KSA, 13: 14 [188], de 1885). Deve-se ter cuidado com este “não passava”, principalmente em conjunção com a afirmação nietzscheana de que o mecanicismo vale como uma “hipótese incompleta”, pois além de simular um falso tom de desprezo, a incompletude do mecanicismo poderia nos seduzir a acreditar que uma teoria completa e definitiva seria por fim alcançada. Não é este o caso. O perspectivismo é incontornável. Apenas como hipótese as teorias têm direito de cidadania nas ciências.
Dentre os motivos pelos quais o mecanicismo deve ser considerado uma “hipótese incompleta e somente provisória”, além daqueles elementos da teoria que já observamos como sujeitos ao crivo crítico de Nietzsche, estariam as implicações da segunda lei da termodinâmica. Para o filósofo, entremeada à referida lei estaria ainda uma concepção finalista do universo156. A interpretação da segunda lei da termodinâmica e de seu conceito associado de entropia, figura como um dos temas mais controversos da literatura científica desde quando fora formulado, em meados do século XIX. A idéia de entropia encerra diversas interpretações, dentre as quais se destacam a macroscópica, formulada por Clasius, a microscópica, elaborada por Carnot e a interpretação estatística de Boltzman.
O contato de Nietzsche com os princípios elementares da termodinâmica, segundo Scarlett Marton, advém de sua leitura da obra de Vogt, Die Kraft – eine realmonistische Weltanschauung (1878), na qual Nietzsche vai buscar a idéia de que a soma das forças no mundo permanece constante, assim como seu corolário: de que a cada aumento de forças em um ponto qualquer corresponde, em outra zona, igual diminuição. Pela primeira lei da termodinâmica, pois, a soma de energia do universo permanece sempre constante, de tal modo que o aumento de energia em uma determinada região, a concentração de força num ponto, requer a diminuição proporcional da energia em outra região. Estes aspectos da primeira lei da termodinâmica são formulados por Nietzsche nos seguintes termos: “a energia do conjunto do devir permanece constante” (KSA, 12: 10 [138], de 1887) e “Posto que o mundo dispusesse de uma quantidade de força, então é evidente que todo deslocamento de poder para qualquer lugar condiciona todo o sistema” (KSA, 12: 2 [143], de 1885/1886).
Nietzsche assume a primeira lei da termodinâmica, a lei de conservação de energia, considerando que as forças que compõem o universo são finitas, apesar de múltiplas: “A medida da força (como grandeza) como fixa; sua essência [Wesen], porém, fluida” (KSA, 11: 35 [54-55], de 1885). Nenhuma objeção é feita à primeira lei.Nela Nietzsche não percebe qualquer tentativa de submeter o universo a uma finalidade pré-estabelecida, a um desígnio teleológico. O que existe são forças em interação, “quantidades dinâmicas em uma proporção de tensão em relação a todas as outras quantidades dinâmicas” (KSA, 13: 14 [79], de 1888) e da relação de tensão entre estas forças determinadas configurações são formadas, alcançam uma duração relativa, opõem-se a outros centros de força e finalmente se dissolvem, num processo ininterrupto de nascimento e destruição.
Já da segunda lei da termodinâmica e os rudimentos do conceito de entropia, Nietzsche tomou conhecimento a partir da Historia do materialismo de Lange, onde teve contato com a versão macroscópica do conceito, elaborada por Clasius: a de que a totalidade da energia cósmica está num contínuo decréscimo, perdendo-se em calor, de tal modo que o universo tende a um estado de equilíbrio termonuclear ou estado final que também ficou conhecido como “morte térmica”.
A crítica de Nietzsche a esta formulação, com efeito, pressupõe a aceitação prévia de uma série de enunciados, como bem percebeu Richard Schacht159: 1) a de que as forças que compõem o universo são finitas, de que “a energia do conjunto do devir permanece constante” (KSA, 12: 10 [138], de 1887)160; 2) a de que não existe “nenhum Deus” (KSA, 11: 25 [299], de 1884), nenhum poder transcendente que pudesse em algum momento injetar mais energia no mundo para compensar aquela que fora expendida; 3) ele assume a “infinitude temporal do mundo para tras” (KSA, 13: 14 [188], de 1885), interditando com isso a possibilidade de que o mundo tivesse tido um início (não haveria, pois, um poder transcendente que o tivesse criado) e; 4) assume que se o mundo atingisse um estado final de inércia, não teria como dele emergir novamente, reabastecendo de alguma forma a energia gasta a partir de si próprio.
Dadas estas pressuposições, assegura Nietzsche, e assumido ainda algo que ele considera incontroverso, o fato de que o mundo não está ou não atingiu este estado de inércia ou equilíbrio final, segue-se que “o mundo não almeja um estado duradouro” e de que, portanto, esta “é a única coisa que esta provada” (KSA, 12: 10 [138], do outono de 1887). Mas este estado final de equilíbrio do universo é requerido pela teoria mecanicista, ao menos a partir da formulação da segunda lei da termodinâmica, donde se conclui que ela deva ser refutada.
O que está em jogo, aqui como nas críticas de Nietzsche ao materialismo atomista (no qual o mundo contém partículas que não estão sujeitas à mudança), é a suposição de que o mundo se dirige a um estado de equilíbrio final ou de inércia no qual o devir é finalmente estancado, ou seja, as implicações da segunda lei da termodinâmica remetem diretamente a uma concepção finalista do universo que se opõe diametralmente à experiência sensível de um devir constante.
Se o mundo tivesse um fim, ele haveria de já ter sido alcançado. Se houvesse para ele um estado final não intencional, então este haveria de já ter sido, do mesmo modo, alcançado. Se ele fosse capaz, em geral, de um persistir, de um tornar-se petrificado, de um “ser”, tivesse ele, em todo o seu devir, somente por um momento, essa capacidade do “ser”, então ele teria chegado, mais uma vez, há muito tempo, ao fim do devir, também ao fim do pensar, ao fim do “espírito”. O fato do “espírito” como um devir prova que o mundo não tem nenhum fim, nenhum estado final e é incapaz de ser. (KSA, 11: 36 [15], de 1885).
Mesmo que não possamos afirmar que a segunda lei da termodinâmica imponha ao mundo uma finalidade intencional, através dela o mundo adquire um fim não-intencional. Este fim a que as implicações da referida lei conduzem o universo, para Nietzsche, deve ser rejeitado, tendo em vista que “nada pode me impedir de dizer, contando para trás, ‘nunca chegarei a um fim’” (KSA, 13: 14 [188], de 1888), ou seja, dado que o tempo para trás é infinito, se o universo se dirigisse para uma finalidade qualquer, se ele quisesse “ser”, atingir um estado final de equilíbrio termodinâmico, ele já o deveria ter alcançado: “Que a situação de equilíbrio nunca tenha sido alcançada prova que ela não é possível” (KSA, 11: 35 [54-55], de 1885).
O fato de que o mundo não tem nenhum fim, contudo, não deve ser tratado como se o universo estivesse intencionalmente tentando se esquivar de uma finalidade, controlando suas configurações para não atingir um estado final. Para Nietzsche, o hábito de pensar que todo acontecimento ocorre com vistas a um fim, e de que o mundo tem um Deus criador e condutor, pode levar o filósofo ou o cientista a “pensar para si próprio a falta de finalidade do mundo, por sua vez, como uma intenção” (KSA, 11: 36 [15], de 1885). Desse modo, assegura Nietzsche, “o mundo intencionalmente se esquiva de um fim e sabe até se prevenir artificialmente o cair em curto circuito” (Ibidem), ou seja, teria a “capacidade maravilhosa da infinita reconfiguração de suas formas e situações” (Ibidem). Mesmo que tal modo de pensar exclua Deus, nele permanece a capacidade da força criadora divina, da força de transformação infinita que lhe permitiria a faculdade da eterna novidade. Nesta forma de pensar, pois, incrusta-se ainda um modo religioso de considerar, “uma espécie de nostalgia de acreditar que em qualquer parte o mundo é igual ao velho Deus, querido, infinito, criador ilimitado” (Ibidem). Mas acreditar que o mundo tenha a capacidade da “infinita reconfiguração de suas formas” significa dizer que o mundo, uma grandeza limitada de força, possa ser pensado como ilimitado. Nietzsche, contudo, escreve que a virada decisiva do espírito científico sobre o religioso é justamente o fato de que a força não possa mais ser pensada como ilimitada:
o mundo, como força, não pode ser pensado ilimitado? Pois ele não pode ser pensado assim – proibimo-nos o conceito de uma força infinita como sendo inconciliavel com o conceito “forca”. (Ibidem)
A ausência de finalidade, pois, além de ser algo que resulta da incapacidade do mundo para “ser”, não deve ser pensada ela mesma como uma finalidade, pois aí recairíamos novamente num modo de pensar religioso-metafísico, no qual um poder transcendente injeta sempre mais força no universo. O mundo não foi criado, não tem uma causa primeira, uma força transcendente que continuamente lhe reforce. Ele também não tem um fim, intencional ou não, ele apenas persiste:
ele não é nada que se torne, nada que passe. Ou antes: ele torna-se, passa, mas nunca começou a tornar-se e nunca cessou de passar – ele mantem-se em ambos... vive de si mesmo: seus excrementos são seu alimento. (KSA, 13: 14 [188], de 1885)
Com a formulação da segunda lei da termodinâmica, todavia, o devir contínuo das forças seria finalmente estancado. O universo atingiria um estado final de inércia do qual não mais poderia sair, ficaria preso na forma do “ser”, cristalizado na imutabilidade. Na suspeita de Nietzsche a motivação oculta da segunda lei da termodinâmica talvez seja da mesma ordem do preconceito metafísico com tudo o que é contingente, finito, mutável, talvez neste ponto também como em outros a ciência estivesse dentro do espírito ascético, da vontade de algo permanente, eternamente pacificado. Impõe-se finalmente ao mundo o cessar de todo devir. Ao
determinar o estancamento do fluxo, a forma impertinente e trágica da vida e da natureza é finalmente abolida. Daí que, para Nietzsche, o mecanicismo deva ser refutado: ele contradiz a mais básica de todas as nossas experiências sensíveis, a de que tudo passa. Na concepção de Nietzsche, por conseguinte, a interpretação do mundo segundo o conceito “vontade de poder” se mostraria mais adequada: em sintonia com a multiplicidade perspectivística constituinte do mundo, suas características não a comprometem com uma interpretação moral da existência, não promovem uma duplicação ontológica ao gosto metafísico, nem muito menos subordinam o devir a um telos finalmente pacificado. A eternidade da mudança, eis a única coisa que se conserva."
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É isso!
Fonte:
Daniel Filipe Carvalho: “Nietzsche e o naturalismo: a crítica ao ascetismo científico”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Filosofia junto ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará – UFC. Área de concentração: Filosofia. Linha de pesquisa: Filosofia da Linguagem e do Conhecimento. Orientador: Prof. Dr. José Maria Arruda). Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
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