A mercantilização do desejo

“O desejo é algo impossível de ser plenamente realizado. Embora seja inata, incansável e incessante a busca obcecada pelo desejo, ele não está livre de uma brutal perversão do seu sentido. As satisfações dos desejos oferecidos na atualidade estão alicerçadas – em grande parte – numa regulação monetarista que têm na lei da oferta e da procura a sua lógica estrutural. O mercado se põe como o agente principal da realização dos desejos, que os confunde à capacidade individual de consumir bens. Deste modo, a satisfação dos desejos não se realiza sem que se produzam sofrimentos, seja o auto-sofrimento dos que buscam o prazer e que por alguma razão não o realizam e frustram-se; seja o sofrimento projetado nos indivíduos que não possuem os meios (principalmente econômicos) de satisfazer seus desejos. Isso vem ocorrendo porque a excessiva busca pela segurança moderna que exigia a renúncia das pulsões foi sendo substituída por uma excessiva busca por liberdade num contexto em que a segurança (individual) se fragilizou. Essa observação se aproxima de uma proposição de Bauman na qual ele afirma que

Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais (1998: 10).

Essa segurança (individual e coletiva) diminuta que se instalou, proporcionada em grande parte pelos processos de desregulamentação e flexibilização das políticas sócio-econômicas de cunho neoliberalizante, tem sido a causa de muitos dos medos e, por conseguinte, dos mal-estares atuais. E essa é uma condição cujas conseqüências são importantes para explicar as respostas ao medo (difuso) expressas pelo conjunto de ações dominantes postas em prática nos países de industrialização mais antiga, especialmente os europeus. Mas são, certamente, insuficientes, como veremos, para explicá-las no caso de sociedades como a brasileira, onde padrões de desigualdades são sustentados por padrões de alteridades historicamente enraizados em formações sociais onde o racismo desempenha uma função decisiva na regulação pelo medo.

As formas de manifestação do mal-estar na atualidade são múltiplas. Todavia, o quadro social atual tem apontado como uma de suas causas precípuas o fortalecimento da insegurança não apenas como uma sensação, mas um fato concreto que produz reações diversas, onde numa relação de simbiose aí reside o medo. O aumento da insegurança privatizada na figura do indivíduo pós-moderno vem minando os alicerces que estruturavam uma ordem sócio-espacial que conseguiu garantir – sem a omissão dos conflitos e interesses de classe – uma regulação na qual a segurança coletiva de certo modo funcionou numa conjuntura de reordenação do capitalismo do pós-guerra, em especial nos Estados-nacionais da Europa onde o regime de acumulação fordista , com o respaldo do Welfare State, efetivamente se impôs. Cabe ressaltar, que esse cenário não é suficiente para a compreensão do mal-estar na sociedade brasileira, por exemplo. Aqui o racismo é um dado analítico indispensável para a compreensão do medo do modo como a regulação social é operada pela manipulação dessa emoção.

O reordenamento atual ao deslocar a insegurança de um plano coletivo para o individual corrobora para que o mal-estar contemporâneo seja compreendido em termos de inferência à subjetividade. Isto porque não se pode falar de mal-estar sem que se aluda ao sujeito, na medida em que a morada existencial do mal-estar reside na subjetividade. O mal-estar é a matéria sempre recorrente e recomeçada para a produção de sofrimento nas individualidades de acordo com Joel Birman.

A importância da subjetividade para a explicação do mal-estar é fortalecida não pelo desejo em si, mas pelos destinos do desejo na atualidade. Por esse trajeto se podem compreender as referências que engendram as novas formas de subjetivação. Como salienta Birman

O rastreamento de alguns desses destinos nos possibilita uma leitura acurada das subjetividades. Com isso, podemos nos aproximar do que há de sofrente nas novas formas de subjetivação da atualidade, circunscrevendo então o campo do mal-estar contemporâneo (2005: 16).

Das diversas manifestações do mal-estar contemporâneo as diversas modalidades de violência são apenas uma das que compõem o seu amplo rol. Os altos índices de vítimas de depressão, o avanço da síndrome de pânico, a morbidade crescente das doenças cardiovasculares, a bulimia e a anorexia que vitima muitos jovens, em especial do sexo feminino e o avanço dos toxicômanos são apenas algumas das formas do mal-estar se apresentar (Birman, 2005).

Os sofrimentos que tanto mal-estar produz nas subjetividades são, em larga escala, produzidos por desejos reprimidos e não satisfeitos, tendo em vista que a busca pela realização e satisfação dos desejos tem se consubstanciado muito mais aos desejos fabricados pela lógica do mercado, isto é, pelo consumo não satisfeito ou simplesmente pela não satisfação quanto aos resultados de um dado produto consumido. Essa busca produz uma relação onde os padrões de consumo e de comportamentos e de construção de “novas identidades" se retro-alimentam. Trata-se de identidades de palimpsesto. Transita-se de “identidade” numa troca sem constrangimento ou pudor. Mudam-se os gostos, os caracteres, os comportamentos,os códigos e as demais “marcas identitárias” para adequar-se a um novo padrão, uma novidade colocada na maioria das vezes como fashion ou chique, ou que represente algum status ou, ainda, alguma projeção social. É na verdade uma falsa identidade. Ela não é o particular (identidade) destacando-se do homogêneo (totalidade), ao contrário, ela é o homogêneo no falso particular. É o particular se mimetizando da totalidade homogeneizante. O que se pensa como identidade é a essência do projeto de homogeneização pelo consumismo incitativo do desejo aprisionado na lógica do mercado. Nesse caso, há uma instância poderosa do mercado – as agências de propaganda e de marketing – que incita o consumo ilimitado confundindo-o com o desejo. Um desejo monetarizado, não ecessariamente inato. Isto é: o desejo é inato, mas o seu inatismo é corrompido quando é estimulado e lançado na lógica do mercado.

Os ornamentos e acessórios sempre acompanharam a humanidade na tentativa de impressionar alguém. Esse movimento está presente em todas as formações culturais, pois não é um simples elemento da cultura: é uma condição humana inata do desejo, onde o Eu só se realiza na mediação com o Outro. O flerte, onde o macho procura seduzir a fêmea ou a fêmea ao macho para a satisfação do seu desejo é um exemplo. O que significa que o ato de ornamentar-se tenha que ter a mediação de alguém. O ornamento é a forma de se mostrar de modo a despertar o desejo do outro. Ele é a mediação. Entretanto, o ornamento em si não precisa de uma grife ou de uma marca, isto é, um valor monetário associado ao ato do desejo por tais recursos para se ter prazer por meio da incitação da propaganda. Duas camisas ou dois calçados deixam de cumprir a finalidade pura e simples de vestir e de calçar pela novidade “estética” mediada pelo consumismo fashion, chique ou de status que a marca confere. A mesma lógica aplica-se para outros bens de consumo onde a propaganda se encarrega de fabricar subjetividades desejosas de novidades tecnológicas ou de produtos forjados como sendo da moda. Portanto, as identidades de palimpsesto são forjadas por comportamentos associados aos produtos ofertados pelo mercado e suas poderosas agências de propaganda e marketing que atuam com a missão de induzir o consumo. A moda é o exemplo cabal. Abordando essa questão Henry Lefèbvre escreveu sobre a “obsolescência da necessidade” onde, para ele:

Aqueles que manipulam os objetos para torná-los efêmeros manipulam também as motivações, e é talvez a elas, expressão social do desejo, que eles atacam, dissolvendo-as. Para que a usura "moral" e a obsolescência das coisas trabalhem rapidamente, é preciso também que as necessidades envelheçam, que jovens necessidades a substituam. É a estratégia do desejo (1991: 91b).

As necessidades de estímulo do consumo incessante pela produção social dos desejos enveredam para a confirmação de que a tal liberdade individual, umbilicalmente associada ao prazer, têm produzido reações em que felicidade e consumo se mesclam e se confundem a ponto de o abandono da segurança coletiva pela aventura incerta e recalcitrante deste prazer ter ganhado a prioridade nos rumos de muitas vidas. Reforçando a proposição de Lefèbvre, Bauman afirma que:

Nessa mudança de disposição, são ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos, e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e sempre novas experiências (1998: 23).

Nota-se que a associação do desejo com o consumo tem um vínculo seminal com a propaganda ao buscar a insatisfação permanente do eu que deseja categorizado como consumidor, seja ele potencial ou não. Aqui reside, necessariamente, conflito entre os Eus desejantes: o consumidor potencial e o não potencial, sendo este limitado por razões econômicas e que não por isso deixa de ser constantemente instigado a consumir. A propaganda incita virulentamente a necessidade do consumo por meio da obsolescência do desejo (da necesidade). A questão está em estabelecer instrumentos reguladores que façam com que os consumidores não-potenciais – instigados a buscar prazer no consumo e limitados economicamente em alcançá-lo – ameacem os consumidores potenciais. Essa questão é fundamental para a compreensão do medo e da cultura do amedrontamento. Do modo como a cultura do amedrontamento opera e legitima as chamadas ações dominantes que são praticadas no combate ao medo apoiadas nos discursos e nas práticas de violência. A novidade que se percebe atualmente vai além do momento em que as empresas manipulavam a opinião do consumidor pela publicidade, incitando-o ao consumo mediante a fabricação de novos desejos. O que se verifica é que as empresas hegemônicas, questão bem exposta por Milton Santos,

(...) produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos [...] Na cadeia causal, a chamada autonomia da produção cede lugar ao despotismo do consumo (2000: 48).

O prazer embutido no desejo via consumo não é, como se sabe acessível a todos, haja vista que só tende a ser ampliado o número de impotentes no tocante à participação de modo ativo do consumo. Deste modo, os desejos são reprimidos para boa parte dos indivíduos. Ao lado da poderosa propaganda, que invade lares,locais de trabalho, escolas, bares, biroscas e tantos outros locais, uma perversa e grotesca contradição se instalou: o estímulo frenético à satisfação de desejos via consumo e a impotência crescente de milhares de indivíduos em poderem alcançar a realização dos desejos oferecidos pelo mercado. E o processo de desregulamentação capitalista amplifica ainda mais a sensação de mal-estar e os sentimentos de medo.

É nesse sentido que podemos situar o medo condicionado ao materialismo vulgar que tem dominado as relações subjetivas e intersubjetivas ancoradas no consumismo. Para Adauto Novaes, duas espécies de medo rondam os homens da sociedade contemporânea: o poder e a ameaça da perda dos bens não naturais e não necessários. Segundo ele

(...) o medo se refugiou nas idéias de interesse e consumo e, portanto, no mais puro egoísmo. O mundo profano e o desejado declínio das superstições, decorrentes em grande parte do prestígio da razão, não aboliram o medo. Paradoxalmente, ao deixar de ser teológico apenas, o medo perdeu corpo. Ele se torna duplamente temido porque, além do imaginário, como o medo tradicional, nem mesmo tem nome. Muitas vezes não se sabe do que se tem medo. Mais: o medo é uma paixão irredutível, que jamais pode ser suprimida pela razão (NOVAES, 2008:12).

O medo engendrado por esse materialismo vulgar, dependente da esfera do consumo, tem corroborado a conformação de uma realidade na qual o momento atual está respaldado na fragmentação das subjetividades e em processos que se fundam na cultura do narcisismo e na espetacularização excessiva em que se converteu a sociedade, conforme aponta Joel Birman (2005). Esta fragmentação não se refere tão-somente a uma nova forma de subjetivação, mas no modo em que outras modalidades de subjetivação são forjadas tendo como componente fundamental a exterioridade e o autocentramento como indicam este autor.

Em todas essas novas maneiras de construção da subjetividade, o eu se encontra situado em posição privilegiada. No entanto, esse autocentramento do sujeito no eu assume formas inéditas, sem dúvida, se considerarmos a tradição ocidental do individualismo iniciada no século XVII. (...) a subjetividade construída nos primórdios da modernidade tinha seus eixos constitutivos nas noções de interioridade e reflexão sobre si mesmas. Em contrapartida, o que agora está em pauta é uma leitura da subjetividade em que o autocentramento se conjuga de maneira paradoxal com o valor da exterioridade. Com isso, a subjetividade assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar do outro no campo social e midiático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica (Birman, 2005: 23)."

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É isso!


Fonte:
MARCUS ROSA SOARES: “MAL-ESTAR NA CIDADE: Ordem e contra-ordem sócio-espacial na cultura do amedrontamento”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: Ordenamento Territorial e Ambiental. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ester Limonad). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2010.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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